TERESA ALMEIDA SUBTIL |
Ela não sabia que aquela viagem poderia ser tão evasiva e tão íntima. Ela não sabia fazer grandes discursos, mas sabia entusiasmar toda a carruagem com os seus espantos, vertidos em gritinhos de ave das arribas: mãe, olha! E todos olhavam e sorriam como se extravasassem a poesia húmida, escrita nas delícias de um rio de ouro, ventre de excessos de beleza, de ternura e de fartura. Mãe, olha! E levantava-se, como se o corpo não aguentasse tanto voo.
Parecia que o comboio deslizava - rente à linha de água - com o vagar turístico de quem tem o tempo todo do mundo, só para podermos desfrutar. O olhar era vadio, por natureza, o olhar só pode ser vagabundo quando mergulha e serpenteia em beleza.
Havia um despojamento total do ser como se o filme não terminasse jamais, como se o deslumbramento dos 10 anos viajasse na alma de cada um. E continuávamos a sorrir no vale do crescimento, num pedacinho da viagem da vida.
Tocado pela energia do momento, um dos companheiros de viagem levantou-se e, perante o olhar incrédulo dos presentes, foi jogando pela janela: o casaco, as meias, a camisa, as cuecas: tudo o que levava no saco. Por último, o saco. Num assomo não sei se de lucidez, se de loucura, foi-se despindo de tudo o que o esperava, em jeito de quem balança e acompanha o ritmo da viagem: pouca-terra … pouca-terra … Parecia pouca a esperança e breve o sonho. Poderia até ser uma cena de um filme de Manuel de oliveira, justamente no espaço mítico de “ Vale Abraão”. Para mim será, sempre, um guião para reflexão. Parece ser preciso despojarmo-nos de tudo para prosseguirmos viagem e levar connosco apenas o que de melhor possuímos: o que somos.
Sempre procurei lugar à janela do comboio, desde pequenina. Havia épocas em que, ao entrar na Régua, vinda do CIC em Lamego, só apanhava lugar entre as malas e os tropas. Abriam a porta a todos no mesmo dia. Era mesmo complicado, sobretudo quando os solavancos eram muitos e o meu estômago entrava em revolução. Como me lembro da chuva, do vento e do carvão nos meus cabelos… Mas desta vez a janela era também o olhar da minha filha, a crescer nos desejos e na esperança, e o despojamento de um homem a descer a colina da vida, sem saber onde arrumar o inverno.
Na verdade o nosso olhar é imbuído de cenários feitos e pejado de análises talhadas à nossa medida, mas - sabemos - que há muito para desvendar nos meandros da mente humana.
Não soube em que estação desceu o nosso misterioso viajante, ligada ainda, pelo cordão umbilical, à minha menina e à sua nova experiência: a primeira viagem de comboio. Na verdade é um percurso que até dispensa companhia, dado que vamos recolhidos naquele nosso espaço de interiores encantamentos. Não sei quantas viagens fiz na linha do Douro, a crescer e a aprender: a ler a vida. Esta teve, no entanto, um sabor de ventre, de nascimento, de comunhão, de gratificação total. E eu, com ela, subia, enquanto o meu rio descia em ânsias de foz e conquista. Não é um vale, não é um rio, é um sentimento. Talvez por aí nascessem pássaros nos olhos e palavras no coração. O comboio, em curvas e contracurvas, ora varanda, ora picão, era sempre vibração e desassossego.
Olha, amiga... ler-te é escrever contigo, como quem viaja pela mão dos sonhos. Ah, sonhos, não!, que essa liberdade de voar cá dentro é mais que sonhar - é SENTIR! É. Como quem viaja pela mão das sensações. Tão de herança comum, tão de alma em partilha.
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