domingo, 30 de novembro de 2014

MUSICAL(MENTE)

MIGUEL GOMES
Fico parado, atrás do cortinado, a ver a luminosidade que se vai espreguiçando entre sombras. 
Os paralelos da rua parecem pequenas teclas de piano, sombreadas pelos vários pés que os pisam sem se aperceberem da música que carregam. 
Crianças fazem música por elas próprias sem grande necessidades de perceber que é Outono e que as folhas caem, como as pessoas, porque o seu ciclo se soltou das amaras de uma existência pré concebida. 
Um pouco como as palavras, que se vão moldando e caindo, desacordadamente ortografias que se movimentam por entre interessados indivíduos que se estimulam ao esquecimento. 

Creio que história evolucionária não permitirá que no nosso ADN se eternize a avareza, no entanto, parece ser, nos dias correntes, a louca tendência do consumismo uma forte componente oncológica da nossa condição de doentes. 

Talvez seja agora o espectro, o infra humano, a desarmonia de uma sinfonia por não nos sabermos notas musicais tocadas por nós próprios. 

Talvez, repito, seja uma negativa forma de ver a positividade. 

Afinal, ciclos, círculos, circulo por aí sem me deter na espiralidade de um sentido. 
A vida vai vivendo devagar apesar dos dias me saírem curtos à medida, vou alçando uma ruga e outra pelos carvalhos ou plátanos que nos deixam. 

Parágrafo.

Ouso fechar os olhos e sentir o calor na cara. 
Está um belo dia de chuva luminosa, caem e volitam electrões, alguém faz chover sobre uma viatura, um cigarro é fumado por uma boca desconhecida. 

A vitrina ondula ao sabor do vento, mesmo sem se deter. 
A roupa arrepia-se, o vento seca-se, o chão humedece a esfregona que o quer lavar. 
A vida, sempre a vida, a vida que me faz soçobrar, o meu casaco quente, azul, o sabor a mar que a interioridade de mim tem. 

As palavras. 

A nuvem que não vem.
Penso muitas vezes no dedilhar de umas cordas de guitarra, no sopro contínuo e na dança do ar rarefeito por entre concavidades e convexidades da mão do flautista. Até as árvores, as esquinas, o primeiro sopro de um bebé, tudo traz música, vibrações que se medem pela quantidade de sorrisos despoletados, pelos olhos molhados, pelo abraço no final. 

Olha, é quase Natal.
Nasço sem me ver nascer. Acolhido pelos seres a quem chamo pai, mãe, sei o suficiente de mim para saber que tu és eu, um pouco de mim, sim, um pouco de tudo o que escrevo, sem verbo, sem adjectivo. Escrevo porque sou de mim servo. Da ritmicidade do meu caminhar sobre as teclas de piano que são os chãos que piso. 

Parágrafo. Novamente. Canso-me.

Vou viver. Vens?
Acabei onde comecei, como estava, indagando-me sobre as curvas da água condensada que nos orbita a atmosfera. Todo o homem é animal, fera. Mas tem todo o animal é homem. Felizmente.
Resta-nos a complacência com que a natureza nos mira e se arrepia, quando sobre uma luz que já teima em vaguear para outras latitudes um rosto surge sob a sua própria luz, uma mão afasta o cabelo e um universo nasce de novo em forma de beijo na face.

Porque não me nascem letras a cada olhar? Grafiar a mente, o pensamento... A intolerância perante a dualidade, a compreensão da estrada que nos permite navegar sem sermos marinheiros. Ah, os pinheiros. Como sou feito de orvalho de felicidade, ouvido de escuta ao vento encostado a um pinheiro, um cedro. Enquanto ameaça chover, não se cumprem as trovoadas que me lembram a fragilidade sonora de um clarão em forma de corpo que se quer juntinho a nós, no coração.

sábado, 29 de novembro de 2014

APRENDIZAGENS ELEMENTARES

J. EMANUEL QUEIRÓS
O homem realiza-se no pensamento e na palavra se materializam as suas referências e propósitos. A opinião é uma das fórmulas de exprimir o pensamento pela palavra oralizada ou escrita, mas o pensamento, em que a palavra se funda (ou afunda) e onde ganha sustentabilidade, pode tomar impulso em impressões, sugestões, compromissos e emoções. Pode ser portadora de valores, construtora de pontes, indicadora de rumos… 

Constituindo uma expressão de liberdade resulta sempre de algum vínculo a sistemas culturais e sociais onde vigoram aprendizagens informais e formais perpetuadoras de tradições, mitos, preconceitos e interesses, com uma proeminência mais ampla e mais elementar.

Todo o tempo de vida é tempo de aprendizagem, mesmo quando as escolhas mais comuns não vão no sentido esperado pelos outros, e, nessa medida, podem criar surpresa e incómodo no grupo social mais próximo ou no mais lato. Todavia, o indivíduo, o homo humanus de que falava Martin Heidegger, só se realiza plenamente projectado no mundo quando esse mundo lhe concede a liberdade para o «ser», de pleno direito, conquistando a sua própria «humanitas». Essa propriedade, intrínseca ao homem «projectado de sua essência» em que o mundo é a sua própria «clareira», está presente em todo o indivíduo redescoberto na Terra em assumido compromisso consigo mesmo, mais do que com qualquer vínculo societal que por mero valor antropológico lhe possa ser circunstancialmente atribuído como por definitivo. 

Na realidade, nada neste mundo é definitivo, nada nele permanece imutável ou inalterável, mesmo que assim sugira ou pareça ao nosso imprevidente olhar.

Vem a matéria a propósito de um tema actual, recorrente, que se prende com a actuação comum de indivíduos tendencialmente integrados em grupos condutores das sociedades e dominados por eles, herdeiros de uma prática política de revanche, remontante ao não raciocinado instinto de defesa grupal que, na sua versão história mais acirrada, encontramos patente na Igreja do Renascimento com a perseguição aos hereges colocados às ordens da Santa Inquisição. Se assim foram perseguidos e assassinados na praça pública por heresia cidadãos inocentes só porque não se submeteram aos ditames da verdade oficial, presentemente tem vindo a perpassar uma tendência de semelhante ordem de valores e que se espelham nas tentativas de condenação pública categórica de cidadãos que, por razões equívocas, encontram e assumem seus rumos próprios sem abdicar do exercício dos seus direitos cívicos e políticos. 

Os tempos correm velozes e é genericamente manifesta a pouca disponibilidade que concede às pessoas para reflexão fora dos preconceitos, dos quadros mentais comuns e das ideias preconcebidas e transmitidas nos grupos. Ainda é mais relevante o facto quando, por via do vínculo a alguma instituição cívica, partidária e política, os indivíduos se mobilizam na forma de estar comum para dizer o que todos no grupo gostam de ouvir. Torna-se ambígua, deficitária e débil esta forma de realização do indivíduo como «ser», procurando no mundo a desocultação da sua própria humanidade, ou como homo humanus, embora possa ser reconhecida e premiada no contexto grupal, tal qual a forma comum de reconhecimento pelo feito em que o grupo se sente resguardado e protegido.

Desde há muito, venho observando e tento perceber como nos grupos político-partidários se manifestam simpatias, abrotoejas, afectações e sectarismos travados nos meandros do poder. Manifestamente não simpatizo com essa forma de estar nem com esse comportamento colectivo dimanado pelos homens das instituições partidárias que tendem a segregar, excluir e a humilhar, ainda que por palavras, quem pensa por sua própria cabeça. 

O poder e a sua conquista parecem configurar uma oportunidade para alguns absurdos ajustamentos de contas. Sugere atribuir toda a razão do mundo aos conquistadores e parece querer conferir o direito a interditar, humilhar e até excluir quem tem pensamento próprio. No entanto, isso acontece como reflexo instintivo consequente quando o poder é tido como fim último da acção política e nessa medida condiciona seus actores, impedindo-os de vislumbrarem algo mais edificante e menos maniqueísta com a sua própria conquista, sem a pretensão da obtenção de unanimismos fictícios, federacionismos tutelares de grupos ou de regimentos.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

SMART OR NOT SMART?

GABRIEL VILAS BOAS
Dizer que o telemóvel é a imagem de marca dos nossos dias talvez não seja uma ideia assim tão disparatada, pois já é difícil encontrar alguém que voluntariamente o dispensa. Possivelmente até nem devíamos falar de telemóvel, mas antes de smartphone, uma maravilha tecnológica que nos permite estar, permanentemente, online com o mundo, mas completamente offline para aqueles que, afetivamente, nos são próximos. 

O smartphone mudou o estilo de vida das pessoas. Acho que, na maioria dos casos, capturou o nosso dia a dia totalmente. Usamos o pequeno computador de bolso, essencialmente, para nos divertir. 

Desde que o acesso à internet se tornou mais económico, o telemóvel inteligente é um passaporte para um mundo maravilhoso e virtual, que muitas vezes pensamos ser exclusivo, secreto, recortado à nossa medida. Sem grande esforço, ouvimos música, vemos um trailer, espreitamos as últimas notícias, apreciamos dezenas de fotos, pomos em dia o “pecado” da cusquice, deixamos uns “likes” ou um apontamento no facebook, resolvemos pequenos problemas por sms ou por telefone. Tudo isto com a enorme vantagem de quase ninguém dar por nós. O smartphone permite uma atuação discreta que agrada muito à maioria dos seus utilizadores. 

Virtualmente, um aparelho, de quatro ou cinco polegadas, torna-nos parceiros de várias histórias emocionantes, pseudo decisivas e, por vezes, secretas.

O smartphone faz muito pela nossa autoestima diária. Tê-lo, usá-lo, disfrutá-lo é estar “in”, é ser ativo, considerado, moderno. As suas vantagens são inquestionáveis e derrubam a tradicional argumentação dos velhos do Restelo. Claro que aproxima as pessoas distantes, claro que facilita imenso a comunicação de dados e informações, claro que torna a vida mais aprazível…

Não vale a pena culpar o telemóvel (ou o smartphone) pelas entorses que o seu uso causa em muitas vidas porque ele não tem culpa nenhuma.

Obviamente é sempre mais fácil culpar um objeto pela nossa falta de tempo para os filhos, pelo alheamento nas reuniões familiares ou nas conversas, pela superficialidade no trato, pela violência verbal descontrolada, pela falta de foco nas tarefas, pelo ar enjoado ou irritado com que nos dispomos a ouvir o(a) companheiro (a). É bem mais fácil, bem mais cómodo, bem mais cobarde!

Ainda que detestemos a ideia, estamos a ficar viciados no smartphone. Ele tornou-se uma dependência psicológica, afetiva e física. Como qualquer viciado, negaremos até ao limite essa dependência, mas isso só adia e aumenta o problema de cada um. 

Tal como acontece com as baterias dos telemóveis, o excesso de uso vicia-nos de tal modo que vivemos cada vez menos. Em pouco tempo, as maravilhas reais e virtuais do mundo e das pessoas deixarão de ter interesse para nós e até o bendito smartphone perderá encanto.

Habituados que estamos a encontrar fora a culpa dos nossos erros, culparemos, então, o smartphone, que rapidamente passará a ser “pig” ou “ugly”. Pode ser que, entretanto, surja nova droga que alimente o ego e o desejo e faça deste “mais do que tudo” apenas o ex. mais do que tudo. Correremos então para esse novo elixir da juventude, convencidíssimos que “esse é que é”.

O smartphone olha para mim novamente. Sorri sarcasticamente. Enquanto escrevia este texto, peguei nele três ou quatro vezes, todas elas desnecessárias. Se pudesse falar, talvez me dissesse:


«I’m smart, but you not… yet»

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

IN(DEPENDÊNCIAS)

HÉLDER BARROS
Existe hoje em dia, uma casta de políticos na nossa praça que, ao fim de muitos anos de tentativa de assalto ao poder, por formas e meios diversos, estribados em organizações e/ou ideologias políticas, descobriram recentemente uma excelente forma de se catapultarem para mais altos voos na política, de uma forma mais rápida e bombástica, atalhando caminho.

Alguns destes seres, por exemplo, enquanto enquadrados em organizações partidárias, tornaram-se famosos por realizarem campanhas de oposição interna, fora dos locais próprios para tal, fazendo deste modo mais oposição, que a verdadeira oposição, passe a redundância. Na maior parte dos casos, com um pé dentro e o outro pé de fora… dá sempre muito jeito, para urdir as intrigas… (in)dependências…

É do conhecimento geral que, quando se faz parte de uma organização, seja ela de que cariz for, não se deve quebrar o sigilo sobre a informação critica ao funcionamento da mesma. Mas, neste caso, como se trata de gente com um ego que ultrapassa a sua dimensão física e humana, consideram perfeitamente normal este tipo de comportamento, que, no entanto, corroi até destruir qualquer organização.

Claro está que são pessoas que se pronunciam muito na primeira pessoa em tons estridentes – eu isto, eu aquilo, eu… aqueloutro – com sérias limitações no trabalho em equipa e que não são capazes de gerarem consensos, avessos à colegialidade, simplesmente porque se consideram seres especiais, iluminados por entidades divinas, incapazes de partilhar ou de aprender algo, com algum semelhante. A procura de soluções interpares, ou de discussões procurando um consenso o mais alargado possível, torna-se numa derrota para eles. Isso não, as suas ideias são sempre luminosas, únicas, brilhantes na sua obscuridade...

E que se passeiam em diferentes areópagos com a vaidade dos convencidos, daqueles que sabem tudo, considerando todos os outros ignaros, levando a que a sua própria mesquinhez acabe, mais cedo ou mais tarde, por se revelar.

Outros lavram opiniões e manifestos escritos, de tal modo herméticos na sua forma, cujo objectivo dos mesmos deverá passar certamente pela sua não compreensão integral, mas antes por evidenciar um estilo linguístico muito elaborado, no sentido de alimentar a sua vaidade intelectual.

O populismo brota das suas manifestações públicas, como a chuva cai neste outono aguadeiro, apresentando soluções para todos os males. Aos olhos destes visionários tudo está mal, nada é bem executado pelos outros, só eles têm a panaceia para todos os problemas, a solução para todas as obras, enfim, autenticos predestinados.

Nos últimos tempos, este tipo de populismo acentuou-se e aglutinou-se num conceito político dos chamados independentes, facto que até considero lógico, dado que estes seres não estão predispostos a cumprir minimamente os estatutos de qualquer organização política. Quem não viu antigos autarcas retirados coercivamente de candidaturas autarquicas, por práticas de abuso de poder, corrupção e diversos processos judiciais, a criarem imediatamente um putativo movimento independente?... Independentes de quê e de quem!

E como são individualistas e muito senhores das suas opiniões, tendo solução fácil para tudo, pelo menos do seu ponto de vista, nada como um agrupamento destas personalidades raras, para o fervilhar de todo um ideário sóciopolitico que reformulará de forma celestial o funcionamento da nossa República.

A bem da verdade, deve-se dizer que quase todos andaram atrelados a algum partido político no início das suas carreiras políticas, ou em qualquer momento da sua vida. Alguns quando se viram aflitos, até encontraram refúgio em partidos e/ou organizações, cujos líderes eram autênticos arrivistas e populistas. A sua inspiração política tinha que beber em alguma fonte ideológica e de especial modus operandi

O atual funcionamento dos partidos é muito criticável, todos temos que concordar com isso. Os cerca quarenta de anos de funcionamento da nossa Democracia começam a revelar vícios de funcionamento e uma falta de renovação das instituições e de insuficiente participação cívica que urge combater. É absolutamente verdadeira e inconstetável esta realidade.

A corrupção, um flagelo que atinge a sociedade Portuguesa desde tempos imemoriais, que inclusive disseminamos pelos quatro cantos do mundo, não nos dignifica, nem nos fortalece enquanto nação, com este deficiente e indecoroso funcionamento das nossas instituições, que acarretam graves repercussões sociais, como temos assistido ultimamente.

Penso, contudo, que não será de forma individual, mas antes de forma colectiva, com uma maior e melhor participação civica no funcionamento nas instituições, que poderemos melhorar de forma significativa a gestão da coisa pública.

Eu acredito em movimentos legitimos de independentes que defendam causas coletivas. Mais, considero que fazem falta à nossa Democracia, serão ótimos contrapoderes ao poder das classes dominantes, como diria Manuel Sérgio. Mas, movimentos independentes de políticos frustrados, de seres que nas estruturas partidárias nunca conseguiram alcançar os seus objetivos de poder, só podem redundar em mais do mesmo. Nada para construir, um Mundo inteiro para destruir...

E é muito difícil conciliar egos que transbordam aos corpos dos seus portadores e agregá-los numa organização, denominando-a de independente, para dar um ar moderno à coisa... tal é contranatura, como se poderão opor uns aos outros dentro de quatro paredes?... como irão depois todos a  todos os lados contar as suas aventuras que alimentam o seu ego?...


A pior atitude que se pode ter em Democracia, passa pelo alinhar no coro dos anunciadores de uma nova era, da tal organização baseada no poder decisório de seres independentes sequiosos de poder, atacando os partidos políticos por fora e por dentro, com a demagogia dos iluminados. Se os políticos não servem, mudemo-los, mas a nossa Democracia baseia-se numa estrutura partidária. E apesar desta ter muitos defeitos, que os tem, até esta data ainda não apareceu melhor forma de governação... e o populismo é um risco demasiado perigoso para um jovem Estado  Democrático como o nosso...

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

GRUPO CORAL SEM NOME

PAULO SANTOS SILVA
DR
Vivemos tempos egoístas em que o “eu” se sobrepõe a tudo o resto. A culpa é de uma sociedade que cada vez menos se preocupa com o bem-estar de todos, deixando a cada um a tarefa de “fazer pela sua vida”. 

As diferenças são óbvias, em relação a tempos não muito distantes e nem seria preciso recuar muitos anos para termos a perceção clara desta realidade. Não exercendo a minha atividade como professor assim há tantos anos (17 anos para ser mais exato), recordo com alguma nostalgia o meu primeiro dia como docente. 

A imagem mais forte que guardo desse dia, é a do Presidente do Conselho Diretivo (ainda era assim que se chamava) numa tremenda azáfama, a apresentar todos os novos professores a todos os colegas que faziam parte do quadro da escola. Segundo ele, o ambiente educativo propício ao melhor desenvolvimento do processo de ensino/aprendizagem, era aquele em que os alunos sentiam que toda a Comunidade Educativa se encontrava imbuída de um espírito de entreajuda e cooperação, assente em princípios sólidos de amizade e respeito entre todos. Foi, sem dúvida, das melhores lições que um jovem professor em início de carreira poderia ter recebido. Acontece que os tempos mudaram desde então. Não foi só o sistema educativo que mudou. Acima de tudo, foi a própria sociedade que mudou o seu paradigma e que consequentemente mudou as pessoas. Talvez por isso, não deve se deve deixar passar em claro o aparecimento daquele que não tendo nome, o tem por natureza – o Grupo Coral Sem Nome do Agrupamento de Escolas de Amarante. 

GRUPO CORAL SEM NOME
DR ELSA CERQUEIRA

Este grupo vocal e instrumental nasceu da vontade, do esforço e do empenho de “meia dúzia de carolas” que se juntaram para assinalar a passagem do 40º aniversário do 25 de Abril. Primeiro, para uma apresentação na escola sede do Agrupamento. Mas já agora, podíamos ir atuar na inauguração da exposição “Abril Saiu à Rua” que vai estar patente na Biblioteca Municipal Albano Sardoeira?... 

Sim, podíamos! 

E podíamos ir atuar à I Feira do Livro a decorrer no Campo da Feira?... 

Pronto, porque não?!... 

Bom, já que somos do Agrupamento, se calhar faz sentido atuar na Festa de Encerramento do Ano Letivo… 

Pois faz!... 

E… e se fizéssemos uma arruada/desfile/atuação na Feira à Moda Antiga, trajados a rigor e tudo?... 

Boa ideia!!!

Bem, agora vamos de férias e chegados a setembro, logo vemos no que isto dá, diziam…

Olha… Agora fomos convidados para a apresentação de um livro do jornalista Agostinho Santos, integrado na Onda Pina – A Poesia em Movimento!... 

Já lá estamos!!!

Aqui chegados, somos neste momento mais de 30. Mais de 30 educadores, professores, professores aposentados, funcionários e alunos. Toda uma Comunidade Educativa (sim, porque alguns dos elementos são também Encarregados de Educação) reunida em volta de um projeto comum. Um projeto construído com base em pessoas e afetos. A música, na minha modesta opinião, só pode ser feita desta forma – com notas de música que expressem sentimentos. Muitas das pessoas que integram este grupo, certamente que nunca tinham integrado um projeto musical até hoje. Nem integrariam se não fosse este projeto. Há mais do que música neste grupo – há pessoas, há relações de amizade construídas num ambiente de escola que não se esgotam na mesma, mas que a cada momento são postas ao seu serviço e dos alunos. Há cumplicidades, há diferenças que se complementam e que se ultrapassam, em prol de um objetivo comum. Apesar das agressões que têm vindo a sofrer a Escola Pública e todos aqueles (como nós) que por ela lutam diariamente, continuaremos orgulhosamente a resistir através da nossa música, da nossa boa disposição, da nossa camaradagem e da nossa resiliência. O nosso Agrupamento merece. A nossa Comunidade Educativa merece. Nós merecemos porque, como dizia o grande Miguel de Cervantes, “onde há música não pode haver coisa má”!!!

*PS 1 – As fotos foram surripiadas do blogue da minha amiga e colega Anabela Magalhães (www.anabelapmatias.blogspot.com), sendo os créditos das mesmas pertencentes a Elsa Cerqueira.
PS 2 – Lá estaremos, na apresentação do livro “Inês na EB2/3 – 2º Período” da escritora Luísa Aires, que decorrerá na Biblioteca Municipal Albano Sardoeira, no próximo sábado dia 29 de novembro.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

A CEGUEIRA E A LUCIDEZ

REGINA SARDOEIRA
José Saramago escreveu dois livros intitulados, respetivamente, “Ensaio sobre a Cegueira” (1995) e “Ensaio sobre a Lucidez” (2004); e serão estas duas obras literárias, de alto calibre, os guias da minha crónica de hoje.

No primeiro, uma epidemia de cegueira branca, um vírus desconhecido e altamente contagioso, acomete todos os habitantes de um certo país sem nome. Logo que é dado o alerta, os infetados são arrastados para uma ala de um manicómio abandonado, entregues a si próprios, enquanto outros, ainda não declarados doentes, de facto, mas potencialmente contagiados, são enviados para a outra ala. Os alimentos eram-lhes atirados por cima do portão, mas nenhum dos cegos poderia aproximar-se, a partir de uma certa marca, sob pena de ser abatido a tiro. 

No meio dessa horda de cegos, caminhando às apalpadelas, pelos corredores do manicómio desativado, deslocava-se também uma mulher que, apesar de ser a companheira de um dos primeiros infetados, manteve a visão. Porém, querendo acompanhar o marido, crendo que, mais tarde ou mais cedo, chegaria a sua vez de cegar, fingiu, também ela, ter sido apanhada pela doença e, continuando a fingir que estava cega, tal como os outros, pôde testemunhar as ignomínias, os sofrimentos, os horrores, de tal modo descritos pelo insigne escritor, que a simples leitura do livro provoca um enorme sofrimento e uma sensação abominável de repugnância, como se nós próprios partilhássemos, com os cegos, aquela tremenda odisseia.

Aos poucos, todos cegam, naquele território nunca nomeado, e os internados só o descobrem porque deixam de lhes levar o alimento e eles percebem que podem sair, porque já ninguém exerce vigilância ou os inibe de transpor o portão. A custo, embora guiados pela única testemunha, percebem o absoluto caos instalado nas ruas, nos armazéns saqueados, nas instituições públicas abandonadas, tomam consciência de que o mundo, tal como o conheciam, antes de cegarem, já não existe. 

Depois e bruscamente, o primeiro indivíduo que havia cegado, recupera a vista e, progressivamente, a epidemia dissolve-se, tal como havia começado.

No segundo livro, publicado nove anos depois, Saramago cria nova situação, também ela a decorrer num local sem nome: numas certas eleições municipais, uma inusitada abstenção às urnas, faz tremer os líderes partidários. No entanto, ao fim do dia, milhares de pessoas saem de casa, dirigem-se às assembleias de voto e exercem o seu direito. Porém, o inédito acontece; e, quando são contados os votos, verifica-se que mais de 70% dos eleitores votaram em branco. Alucinados, os dirigentes decidem marcar outras eleições; e novamente o voto branco ganha, atingindo, desta vez, os 80%. Tal como acontecera em “O Ensaio Sobre a Cegueira”, o caos instala-se e, sem saberem o que fazer, os dirigentes prendem cidadãos, cometem atos de uma demência espantosa e acabam por abandonar o país, deixando os cidadãos entregues a si próprios. 

Os demais pormenores não são pertinentes neste meu contexto: o que me move é a simbologia da cegueira e da lucidez, plasmadas num país cujos habitantes cegam, na sua totalidade; e, no final dessa crise de cegueira, que destrói tudo o que existia o voto em branco surge como ato lúcido, tácito – ninguém combina, ninguém se reúne para tomar a decisão – de cidadãos que, pelo seu gesto coletivo, afastam os governantes, impotentes e desvairados, perpetradores de crimes, criando culpados para o acontecimento, mas abandonando, por fim, o povo a si mesmo.

Em 1995, Saramago sabia que a democracia havia falido e deu-nos esta saga terrível, esta metáfora alucinante, onde os horrores da decadência de uma ordem estabelecida são levados ao extremo. Decerto, ele queria denunciar os abusos, as corrupções, as fraudes, o excesso de poder e tudo o que, já na época, era a marca da política que nos governa; e queria também que os portugueses o lessem e percebessem que haviam sido acometidos de cegueira, sem saber porquê; e que, quando despertassem dessa espécie de olvido, encontrariam um caos que necessitariam de erguer com as próprias mãos. 

Foi-lhe atribuído o Premio Nobel, na sequência dessa obra magistral e pungente, o mundo tomou conhecimento da clarividência do genial escritor: mas os portugueses não tiveram olhos para se verem naquele livro que era, exatamente, o seu espelho.

E a destruição do país, levada a cabo pelos conluios governamentais, prosseguiu, enquanto o povo ia elegendo e voltando a eleger, em absoluta cegueira coletiva e altamente contagiosa, novos carrascos, novos delapidadores. 

“O Ensaio Sobre a Cegueira” não dá soluções: mostra o trajeto destrutivo de uma sociedade alienada, rumo à sua própria condenação; “O Ensaio Sobre a Lucidez” apresenta, com toda a objetividade, o que deve ser feito, quando chegar a hora dos votos, para pôr em debandada uma horda de usurpadores, restituindo ao povo a sua dignidade. 

José Saramago viu, em 1995 e depois, que o seu livro, clarividente, mas também clarificador do descalabro de um povo, no ápice de uma cegueira branca, turva, leitosa, não demoveu os seus compatriotas do vício da eleição dos seus próprios carrascos; e, em 2004, com crueldade perante si mesmo e pelas suas crenças, querendo ser cruel para com aqueles que desejava alertar, apresentou a receita salvadora. «Não lhes deem de novo o poder, saiam de casa, se quiserem, vão às urnas, mas atirem-lhes à cara com o branco do vosso voto!» - foi esse o grito contido do autor, nas páginas da lucidez.

Mas os portugueses não leram, não ouviram, encolheram os ombros, porque, afinal, aqueles livros são romances, e logo ficções, que não podem ser levados ao pé da letra!

E continuaram a ir, obstinadamente, à mesa dos votos, elegendo uns e destronando outros, para a seguir, elegerem os que destronaram antes! 

Já passaram 10 anos desde que “O Ensaio Sobre a Lucidez” foi publicado, e ele continha a solução para ser aplicada logo…uma vez que já haviam passado 14 desde que “O Ensaio Sobre a Cegueira” mostrara a decadência horrível de um mundo auto ludibriado.

A democracia tem esta caraterística peculiar: como é o governo do povo e, no ato de eleger, se escolhem os representantes, para servirem os interesses de todos, quando o sistema falha, falhamos nós também! Ora, se fomos nós os causadores da nossa própria tragédia, elegendo os nossos próprios carrascos, apenas nós poderemos ser os autores da nossa própria libertação, não elegendo ninguém e tomando nas próprias mãos o poder que delegamos em quem – está provado à saciedade! – nunca o mereceu, nunca o honrou. 

Se Saramago não vos convence, se a leitura destes dois romances, muito intencionalmente designados como “ensaios”, não é o que vos interessa fazer neste momento, ao menos abri os olhos, afastai as cataratas que vos têm acometido há décadas, na hora em que insistis em acreditar nos presumíveis salvadores, e lhes dais autoridade, através do voto, salvai-vos a vós próprios, tomai nas mãos o vosso destino e fazei-o, tão cedo quanto possível…porque o caos está instalado há muito, e estais a ver, agora mesmo, o levantar das pontas do véu que o tem coberto.

E termino, não citando Saramago, mas o livro que, há muitos anos, adotei, como uma espécie de Bíblia:

“O espírito, como a virtude, cem vezes se perdeu e iludiu até ao dia de hoje. Ai de mim! todas essas loucuras e ilusões habitam ainda o nosso corpo; e eis que se fizeram corpo e vontade.
O espírito, e a virtude com ele, de cem modos diferentes se perderam até ao dia de hoje. O homem não passa, ele próprio, de um esboço. Ai de mim! quanta ignorância, quanto erro se encarnaram em nós!
Não é apenas a razão dos séculos mas também a sua loucura que em nós se manifesta. Como é perigoso ser o detentor de uma herança! Lutamos ainda, frente a frente, contra o gigante Acaso; sobre toda a humanidade reinou até ao dia de hoje a insensatez, o absurdo.
Que o vosso espírito e a vossa virtude, meus irmãos, sirvam o sentido da terra; pesai de novo o valor de todas as coisas. Para tal devereis combater. Para tal devereis criar.
O corpo purifica-se pelo saber; eleva-se por tentativas conscientes; para o servidor do conhecimento todos os instintos são sagrados; e, chegada ao cume, a alma enche-se de alegria.
Médico, cura-te a ti próprio; será esse o modo de curares o teu doente. A melhor cura será mostrares-lhe um homem que se curou a si próprio.
Há ainda mil caminhos que ninguém pisou, mil fontes de saúde, centenas de secretas ilhas da vida. Ainda se não esgotou nem descobriu o próprio homem, nem a terra do homem.”
  

Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra , Editorial Presença (página 83)

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

VERDADES OCULTAS DO SNS

CATARINA DINIS
Uma família de 4 elementos, raramente consegue uma consulta digna, num médico de família, que realmente trate da Saúde e os possa ajudar a crescer com o passar dos anos. Pior é existir um plano de vacinação e de consultas de vigilância infantil, que em certas zonas do pais são obrigatórias e em outras, esquecidas, ignoradas e mesmo “ destruído” esse plano de saúde obrigatório. Um filho desse casal vê a consulta dos 12 meses ser um circo, a dos 16 meses ser suspensa e ignorada e a dos 18 meses, inviável até alguém a marcar para o dia em que esse mesmo menino faz 19 meses, mas essa dita “ consulta de vigilância” é nada mais do que um “calar” a mãe. Enquanto a situação real é não ter “ saúde” de verdade.”

Esta situação sucede de verdade a inúmeros portugueses, por este pais fora, que devido a politicas erradas, politicas de poupança em sectores básicos, ou a famosa “ Crise” que é sempre a culpada de tudo ( porque na verdade é melhor culpar algo ou alguém abstrato), nem sempre se consegue ter um seguro ou a oportunidade de serem atendidos por um médico no sistema privado.
Já nem me refiro ao caos de muitos hospitais mas sim aos centros de saúde e suas unidades familiares…

A verdade é que conheço duas realidades bem distintas… uma nos limites de uma grande cidade, grande densidade populacional, famílias carentes a todos os níveis… mas que ainda não sei bem porque ( talvez organização?)

Há diversos médicos de família, inclusive com jovens médicos que estam a estagiar, a preparar-se para igualmente serem médicos de família, e até somos atendidos por ambos, para ajudar a ultrapassar certas dificuldades, guiar os utentes, ajudar na prevenção de certas doenças, tratar do planeamento familiar, da vacinação etc… nesta unidade de saúde familiar se o nosso médico de família não puder atender, há sempre outro(s) médico (s) escalonados para naquele determinado dia façam o atendimento dos utentes que necessitem de algo urgente ou imprevisto, como um exame necessário, uma baixa ou tratar de uma dor de garganta, além do mais temos sempre o serviço de enfermagem que ajuda a avaliar a situação. Eu diria que aqui funciona, também tem de certeza os seus defeitos com toda a certeza, mas assim numa avaliação no seu global “ Muito Bom”…

No entanto como tudo em Portugal parece uma moeda, sempre com duas faces e o outro lado é mesmo muito negro…é instável e interfere demasiado na vida pessoal de cada um de nós.

Existem centros de Saúde em que não se respeita o utente, que não há organização, nem “saber fazer ou falar”, de um momento para o outro os médicos reformam-se, vão de baixa, vão de ferias e o que é compreensível, mas não há quem substitua?!... e como ficam os utentes? Como fica a saúde e as famosas alíneas de direitos e deveres do cidadão fixados na parede desse mesmo centro de saúde… E nós quando queremos prevenir uma situação? E quando se tem uma doença cronica? E quando há crianças e idosos, que são sempre mais vulneráveis?

Por vezes sinto que esta é uma luta perdida… e que não vivemos todos no mesmo Pais… há sempre duas leis, duas intenções, dois fazeres, talvez exista até é duas constituições… já que cada um interpreta sempre a sua maneira as leis e códigos

E eu só quero uma consulta e o seu seguimento… tão simples de falar, tão difícil de conseguir.

domingo, 23 de novembro de 2014

GAVETA ABANDONADA

MIGUEL GOMES
Faço dos meus dias de ontem, porque hoje não me chega o dia, o fundo da gaveta onde percorro tacteando o fundo de um rascunho. Que me perdoem lascas que não escrevi.

Começo a viagem de regresso já a noite empurra o que resta do dia pelas montanhas abaixo. Ganha-lhe posição com umas estrelas mais fortes e, depois, fincada a parca luz da noite, sacode o dia, não sem antes este, numa saída de movimento poético, pincelar um pouco das abas da noite, em tons que só encontro nos meus sonhos ou nos raros momentos em que me deixo acordar entre um sonho e outro.

Já a chuva escorreu das nuvens e das resistentes margens verdes que dão o seu lugar a vegetação cor de Outono, para eu deixar que o meu corpo tome as rédeas da viagem, enquanto eu vou dar uma volta, por aí, recordando sonhos que deixei a secar nas eiras perdidas desta minha alma em forma de montanha.

Estou cansado, vá-se lá saber porquê, durmo poucas horas para aquilo que preciso... E talvez isto me permita ver rebanhos onde eles não existem... 

O vento frio leva-me para uns anos atrás, alma de velho em corpo de criança, na traseira de uma motorizada, o ruído estridente cai do escape e cola-se desesperado ao vento, que me devolve o som em ruídos distantes. Agarro-me a este meu eu que me conduz, a face direita encostada ao blusão de cabedal, com aquele cheiro característico a pele curtida e molhada.

As mãos, geladas, apertam meus próprios dedos, como se tivessem medo de voar junto com o som da motorizada. Mas não, estou protegido, um corpo franzino esconde-se atrás de um outro grande e o vento, é sabido por todos, não leva crianças sonhadoras, apenas sons e ruídos.

Fecho por momentos os olhos, as lágrimas que o frio faz nascer embaciam por momentos o mundo lá fora e é nesse momento, em que as lágrimas servem de janelas para as luzes matizadas pelo Sol, que os olhos sorriem muito, fechando um pouco o mundo aos sentidos, apenas para saltitarem para o rosto e desenharem um sorriso grande na face.

O som da motorizada vai longe, pergunto-me onde vou agora, mas não me respondo, gosto de me surpreender e deixar embalar pelo aquilo que de inevitável a vida tem: a inevitabilidade de sonhar.
A Farrusca bate-me com a cauda nas pernas, em pé, à minha frente, aguarda uma ordem para eu a lançar.
À falta de ovelhas, pastoreio sonhos. Falta-me cajado, um curtido pelo tempo, pau de sobreiro ou uma vara qualquer, não sou esquisito, qualquer bocado de lenha dá para desenhar no chão, que não nas pedras, rostos e estradas que ainda não percorri.

Ah cabras que os pariram! 

Sonhos inquietos, farejam e ocultam pastos onde nem sequer o tempo imagina! Vão saltitando e fugindo, ora voltando a mim, roçando nas pernas e esticando o pescoço para receber um afago. Alguns, mais velhos, seguem confiantes à minha frente, cientes que sei o caminho enquanto eu, desconfiante, sigo na peugada deles na esperança que eles me levem aonde nascem. Outros não saem daqui, da minha beira, parecem aguardar a oportunidade para saltarem para um dos meus desenhos na terra, olham desconfiados e com medo, há sempre um som de motorizada que o vento brincando traz, olhos esbugalhados e caminhar atento, na traquinice típica de quem acabou de se encontrar como sonho.

Pastoreio sonhos. 

A Farrusca vai correndo, latindo, não deixando um sequer tresmalhar-se...

Um latido mais alto faz-me olhar em frente, a cauda continua a bater-me nas pernas, qual pêndulo esquivo, marcando a cadência do meu sonhar. 

Abro os olhos. 

A Farrusca deixou de abanar a cauda. Parece-lhe, digo eu, que isto dos cães é mundo pouco frequentado, eles que vêm aquilo que vejo e, muitas das vezes, aquilo que não vejo, parece-lhe, dizia eu, que algo desapareceu da frente dela, mas não, continuam ali, uns correndo, outros descansando e outros nascendo para a vida dos sonhos... 

"Menina, não os deixes ir para longe!" sussurro-lhe e os olhos vivos dizem-me que compreendeu. Um afago na cabeça, uma cócega no ventre, ela fecha os olhos e é neste momento, em que a meus olhos os sonhos vão já longe, que ela os leva para o mundo dela, a salvo dos dias em que me esqueço das nuvens, dos sons no vento, de faces desta e doutra cara.

Pastoreio sonhos. Feliz.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

ESTÁ NA HORA DE ACERTAR O RELÓGIO DA JUSTIÇA

GABRIEL VILAS BOAS
Os representantes da justiça em Portugal costumam dizer, num tom mais ou menos professoral, que o tempo
da justiça não é o tempo dos media. Não precisavam de o dizer, pois sabemo-lo bem. A questão é saber se o tempo da justiça é um tempo justo.

A minha opinião acompanha a da maioria dos meus compatriotas: a justiça em Portugal é insolentemente demorada e essa demorada transforma-a em algo muito injusto. Ninguém ganha com uma justiça que não cumpra a sua função principal.

Fico perplexo que os principais agentes, da máquina judiciária, em Portugal, não sintam verdadeiro incómodo quando a sua principal missão fica por cumprir. 

Juízes, procuradores do Ministério Público, advogados, queixosos, arguidos, legisladores empurram, divertidamente, a culpa uns para os outros e nada resolvem que alter radicalmente a situação. 

Acho que todos sabem que o sistema jurídico português parece perfeito, mas, muitas vezes, se tem revelado perfeitamente inútil. Cada um dos “jogadores” defende a sua quinta e não quer abdicar das suas garantias. O legislador cria uma lei cheia de exceções, onde exceional é cumprir-se a regra; o advogado explora todas as convenientes alíneas da lei até onde a carteira do seu cliente permitir; o juiz cumpre “cinicamente” a lei e lava daquilo as mãos como Pilatos; os queixosos lamentam-se, mas dispensam alterações de legisladores; os arguidos proclamam que todas as garantias são mínimas; o Ministério Público contenta-se a com a justiça dos media. O povo, que somos nós, lamenta, tem pena e atira, invariavelmente, a culpa para “eles”. Eles dizem que o povo tem razão, sorriem e seguem em frente, mantendo tudo igual a ontem.

Como a única coisa que não tem solução ainda é a morte, a justiça também tem resolução. Fazer leis sem alçapões para poderosos; cortar garantias e prazos sem sentido para os arguidos se defenderem; organizar, apoiar e executar um trabalho de investigação criminal e acusação que não deixe pontas soltas ou por explicar; impor limites ao número de testemunhas que vão apenas repetir o que outras já disseram ou atestar a honorabilidade dos arguidos (afinal já todos sabemos que eles se presumem inocentes); acabar com os megaprocessos com dezenas de milhares de páginas para um pequeno coletivo de juízes ler, analisar e julgar; terminar com a ditadura dos pareceres dos ilustríssimos doutores de Coimbra ou de Lisboa, que são fortíssimos a argumentar em defesa da posição de quem lhes encomendou o sermão. Será que a justiça não lhes importa nada? Que pensarão os seus ex. alunos, entretanto advogados, juízes, magistrados do MP, ao lerem tais pareceres comparando com aquilo que ensinavam nas faculdades de Direito?

Não, não me digam que a justiça não tem solução, porque não é verdade. Nem me digam que é algo muito difícil de fazer, pois nem isso é inteiramente verdade. Complicado é fazer de alunos muito limitados pessoas capazes de intervir ativamente na sociedade. Irresolúveis são determinadas doenças. 

Na justiça, sobram pessoas capacitadíssimas, gente experiente e capaz de descobrir as mais mirabolantes soluções para casos perdidos. Está mais do que na hora de acertarem esse relógio trôpego e caro, que nos impede de progredir e nos traz desconfiados uns dos outros.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

EMPREENDEDORISMO NO FEMININO: FAZ SENTIDO

ANABELA BORGES
Há dias, fui convidada a participar numa conferência à luz do aprazível título: ELAS – EMPREENDEDORISMO NO FEMININO. Levantou-se um pequeno alarido, um burburinho próprio de quando se fala em especificidades. Neste caso, terá sido o termo ‘feminino’ a causa do alarido. Era essa a especificidade. E, neste caso também, o alarido levantou-se no feminino: que não, que não fazia sentido, nos dias que correm, falar-se de ‘empreendedorismo no feminino’, que coisa e que tal, até que alguém, ainda no feminino, ripostou que falar de ‘empreendedorismo no feminino’ lhe parecia uma questão machista.

Eu achei bem que se levantasse o debate muito antes de ter acontecido a própria conferência. Deu-se, então, o caso de o debate ter nascido antes da causa que o daria à luz (a conferência). Era um debate prematuro, mas com força para vingar. Eu achei bem.

E foi graças a essa liberdade de expressão de os debates nascerem a qualquer instante, que eu pude reflectir melhor sobre a questão que me levaria a dar o meu humilde testemunho na dita conferência. E pude pensar, embora não tendo chegado a resposta nenhuma em concreto, sobre o que poderia levar mulheres a acharem que não fazia sentido falar-se de empreendedorismo no feminino. 

A conferência correu muito bem e o debate que se seguiu também, com uma plateia suavemente equilibrada no que respeita aos géneros, masculino e feminino.   

‘ELAS’ surgia como um acrónimo interessante e bem conseguido: E-empreendem; L-lideram; A-agem; S-sentem.

E, de facto, foi uma tarde interessante de partilha e de afectos, porque, sobretudo, ‘elas agem’; ‘elas sentem’.

Sou mãe, esposa; também sou, obviamente, dona de casa; sou professora de Português; sou autora. Tenho publicados para cima de uma dúzia de contos e alguma poesia. Comecei a publicar em 2011. Guardo o que escrevo, desde que me sei ser dez reis de gente a gostar de escrever. Tenho duas novas obras prestes a serem publicadas, uma infanto-juvenil (ou seja, para a faixa etária dos 3 aos 103 anos), outra juvenil (ou seja, para a faixa etária dos 12 aos 112 anos) – gosto de brincar com isto, porque faz-me sentir optimista em relação às obras que publico. E mantenho a publicação de um texto de opinião (semanal ou quinzenalmente), neste espaço da revista online ‘Bird Magazine’.

Fui criada num seio familiar feminino empreendedor. Mas, acima de tudo, fui habituada a fazer pela vida. Sempre me foi dito que as coisas não caíam do céu, que era preciso trabalho, era preciso ir à procura das coisas.
Eu não sei se sou empreendedora. Mas quando tenho uma ideia em mente gosto de concretizá-la. E é isso o empreendedorismo: pôr em prática, concretizar, realizar. Se eu tenho algum empreendedorismo, é disso tão simplesmente que estou a falar. Nunca fui de baixar os braços, de desistir das coisas que me fazem sentido. Raramente deixo a meio uma tarefa ou projecto que iniciei. Não passo para os outros o que me compete fazer.
Mas como não? Eu pergunto: como não?
Com uma mãe doméstica, que tinha na costura o seu ofício e trabalhava dia e noite para ajudar ao sustento da casa, com seis filhos?

Eu costumo dizer que o meu dia tem exactamente 24 horas, nem mais nem menos um minuto, porque perguntam-me muitas vezes como é que consigo dar cumprimento a tantas tarefas. E costumo acrescentar como resposta: “há muitas coisas que eu não faço”. Há, sem dúvida, muitas coisas (que não vou estar aqui a enumerar) que eu não faço.
O empreendedorismo é, certamente, um caminho mais árduo no feminino. Atravessemos as ténues cortinas da História, olhemos para os fios do tempo que tecem as sendas dos séculos. Passemos os olhos pela Literatura. Vejamos como o papel da mulher em acções empreendedoras está implícito, e, ainda assim, tantas vezes silenciado, desvalorizado, negado, passado para segundo plano. Vejamos o carácter empreendedor das personagens femininas de Agustina – as sibilas –, mulheres que fazem girar o mundo a partir do seu humilde meio, a partir do seu lar, do seu quintal.

Eu própria tenho como personagens centrais dos meus contos mulheres: mulheres rudes, mulheres sensíveis, mulheres sofridas, mulheres que se impõem, mulheres que gerem casas e negócios. Mulheres empreendedoras, capazes de levantar o dedo indicador quando é necessário.

É inegável que o caminho de uma mulher na área do empreendedorismo é muito mais trabalhoso: à mulher são pedidas outras responsabilidades; a sociedade olha-a, à partida, com desconfianças e descrenças. A mulher tem mais a provar para convencer, porque assim lhe é exigido. A mulher tem mais portas fechadas para abrir.
E isto não é assim apenas em Portugal. É assim no mundo inteiro. É assim, com situações muito mais gravosas em determinadas partes do mundo (onde a expressão ‘empreendedorismo no feminino’é tão-somente desconhecida), que nem lembra aqui ao diabo evocar. Que é das crianças noivas islâmicas? Que é das mulheres que não podem votar? Que é das vozes femininas caladas por vidas inteiras?

Eu faço um périplo anual por escolas, bibliotecas e outras instituições. Levo comigo palavras. Levo histórias, livros, aventuras, referências, experiências. São partilhas, leituras. Dinamizo a “hora do conto” desde que, pela primeira vez, fui bibliotecária numa escola, desde 2009 a esta parte. Faço apresentações dos meus livros e dos livros de outros autores. Abarco públicos de todas as idades. Faço tudo isto a expensas próprias, com grande prazer.Mantenho o sonho / ideia de começar a fazer voluntariado de leitura para idosos, assim que arranjar tempo.

E no meio disto tudo, que é o princípio: a família.
Nunca perco uma oportunidade de almoçar com as minhas filhas, se calha uma folga no trabalho; de as ir buscar à escola, se calha sair mais cedo; de ver um filme com elas, mesmo se estou a morrer de sono.
E nada disto eu conseguiria sem o apoio da família, sem a divisão de tarefas, mas, sobretudo, sem o apoio emocional.

Não sou, em nada, mais que ninguém, apenas procuro fazer o que me compete.
E quando uma menina, aluna do 2.º ano do Centro Escolar de Freamunde, vem abraçar a minha barriga e me diz que eu sou a autora mais importante que ela já conheceu, eu sei que ela ainda conhece poucos autores, ou, provavelmente, ainda só me conhece a mim… Mas sei também que aquele dia marcou-a de alguma forma, e a mim também.

Que comece agora o debate!

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

AUTO-ESTIMA E VIDA

SARA MAGALHÃES
A Auto-estima é a experiência pessoal de se ser capaz de enfrentar os desafios que a vida contém. Esta
definição parece-me a mais correta e ao mesmo tempo inquietante.

Saber avaliar qualquer ato, por si próprio, exige a cada pessoa cuidar de si mesma independente do resultado que essa ação possa ser. Quando tudo acontece como queremos e quando queremos é fácil gostar de nós. Todavia, quando acontece o contrário, pomos em causa as nossas capacidades e culpamo-nos. E aí entra em campo a desvalorização do nosso ego.

Ter autoestima é saber avaliar-se, apreciar-se, estimar-se, mesmo quando o resultado não depende exclusivamente de nós.

Ter a capacidade de sermos nós mesmos, nesta cultura atual, é dos desafios mais difíceis. Custa-nos muito afirmamo-nos pessoalmente, pois ainda somos fracos no autoconhecimento. Queremos ter mais conhecimento dos outros do que nós próprios. Preferimos ser bombardeados com todo o tipo de informação externa do que perder tempo a conquistar o nosso eu, o nosso espaço interior.

O “Conhece-te a ti mesmo!” implica gostar de si mesmo e, com frequência, solicitar a ajuda dos outros, porque reforçar os aspectos positivos das pessoas com quem partilhamos a existência, ajuda a cultivar a autoestima (a nossa e a dos outros).

A autoestima potencia o autoconhecimento; ajuda-nos descobrir os nossos talentos, as inteligências que nos caraterizam; valoriza as nossas caraterísticas pessoais; permite ter uma visão positiva de nós próprios; possibilita saber aceitar as limitações inerentes à condição humana, acreditar que somos um ser único e irrepetível e, ao mesmo tempo, responsabiliza - nos pelas nossas escolhas, pelos nossos atos e respetivas consequências.

Ter a autoestima é andar pela vida, sem medo de rasgar caminhos; é ir em direção a si mesmo sem medo de se descobrir e se conhecer; é encontrar e reconhecer os outros no caminho, sem medo de perder a identidade; é arriscar-se a cair e a levantar-se, sem receio de voltar a caminhar; é errar e corrigir, com vontade de aprender com os erros, assimilando as lições; é fazer e refletir, com vontade de ser membro ativo e cooperante para o bem de si próprio e o bem comum; é parar e meditar, com vontade de mergulhar nas questões que surgem a toda a hora e descobrir as respostas adequadas; é assumir desafios, com determinação, disciplina e vontade de os superar; é tomar decisões nas encruzilhadas, com honestidade, para se responsabilizar pelas consequências, sem culpa.

Em todos estes atos de relação, proporciona-se o bem-estar, a que vulgarmente chamamos Felicidade, pelo mero prazer da nossa EXISTÊNCIA!

terça-feira, 18 de novembro de 2014

DOS MUROS

REGINA SARDOEIRA
Evocar hoje o Muro de Berlim, evocar hoje o Derrube do Muro de Berlim não passa de um pretexto para outras digressões especulativas. Se assim falo é na exacta medida em que o nosso mundo vive de efemérides e uma efeméride não é mais do que uma recordação descontextualizada de fenómenos cuja especificidade já não é possível entender cabalmente. Os documentários, filmes e exposições sobre o evento têm sido a nota dominante dos últimos dias, pelo que será desnecessário aludir às circunstâncias históricas e políticas que determinaram a construção do Muro em 1961 e que conduziram ao seu derrube 48 anos depois, há vinte e cinco anos, portanto. Circunstâncias históricas e políticas: é preciso não esquecer. Circunstâncias que estavam presentes em 1961 e que, quase cinco décadas depois, subitamente, deixaram de fazer sentido: porque o Muro de Berlim caiu, aparentemente, por si mesmo, sem convulsões, sem luta. A História é isto mesmo: um ciclo racional engendrado pelas necessidades ou pelos desejos ou pela insanidade dos povos, uma espiral dialéctica em que as contradições, submersas em períodos mais ou menos longos de aparente estabilidade, se enunciam de súbito provocando revoluções, guerras, chacinas, atentados e discórdias de todos os géneros. Poderíamos dizer que tais momentos deveriam ser evitados, poderíamos lamentar os períodos sangrentos de hostilidade e de luta fratricida, poderíamos mesmo desejar a utopia da paz perpétua, a lenda da confraternização universal. E contudo os milénios transcorridos da história dos homens atestam, com evidência plena, a inevitabilidade da guerra, da revolução, da luta ao mesmo tempo que demonstram a sua necessidade em prol da evolução. 

A guerra é então uma necessidade, uma condição de progresso? A guerra não pode ser suprimida sob pena de assistirmos à inevitável degeneração dos povos, ao seu declínio e estagnação? Não responderei a tal questão porque as evidências estão aí, hoje, como na antiguidade, hoje, como no contexto das duas grandes guerras mundiais, hoje, como num futuro próximo, em que o homem terá que combater o homem, terá que combater-se a si mesmo, portanto, para poder erguer-se e suportar-se enquanto homem.

Entretanto, os muros construídos e a construir, os muros abatidos e a abater representaram e representam ocasião de defesa de princípios, de ideais, de sensibilidades – o muro é uma parede levantada atrás da qual nos protegemos e nenhuma habitação humana se manteria erguida sem semelhantes suportes – mas o muro é simultaneamente a barreira que impede o devassar da intimidade, a dissolução dos princípios, a quebra dos ideais, o prejuízo das sensibilidades. E por muito que queiramos hoje olhar o Muro de Berlim como a imagem macabra de um ultraje aos direitos humanos, à lógica civilizacional, à sensatez, por muito que aludamos à construção e manutenção do Muro de Berlim como sendo um atentado à liberdade e à livre circulação dos povos, o certo é que não temos outro remédio senão justificá-lo, à luz da circunstância que o engendrou. E será esse o caminho inicial que seguirei nesta exposição.

Na época que marcou a construção do Muro de Berlim, uma dicotomia politica atravessava a Europa: do lado ocidental, e após os tratados decorrentes do final da Segunda Guerra Mundial, o capitalismo e os regimes, designados como democráticos, firmaram-se, gerando uma economia de mercado centrada no consumismo, na ostentação, na busca de riqueza e prosperidade económicas e onde se desfraldava a bandeira enganosa da liberdade, segundo a qual a oportunidade de viver bem era uma premissa a todos possível. Basta, contudo, lançar os olhos sobre as condições que permitiram o desenvolvimento do mundo capitalista para percebermos que nelas esteve sempre implícita a exploração do homem pelo homem, a fabricação da pobreza de muitos, como condição do enriquecimento de alguns. Era assim em 1961, quando o muro foi construído em Berlim e o ocidente se atirava para a escalada do capitalismo, suportado politicamente por regimes democráticos, capazes de criarem nos povos a ilusão de que podiam sempre lutar em liberdade pela riqueza, pelo conforto, por tudo o que parecia ser, segundo o modelo capitalista o melhor dos bens, e contudo sempre afastados dessa meta; e continua a ser assim, hoje em dia, quando o capitalismo emerge desenfreadamente e as franjas de pobreza e de miséria são cada vez mais palpáveis e cada vez mais atingem núcleos sociais, antes preservados. A pobreza alargou-se, portanto, e foi o capitalismo que possibilitou semelhante alargamento, para se poder manter, enquanto tal. Por outro lado, a parte oriental da Europa, delimitada pelo Muro de Berlim, quis destacar-se dessa onda de materialismo e de desumanidade, estribada num ideal humanista cujos princípios visavam a supressão das classes sociais baseadas no poder económico, o desenvolvimento de condições sociais capazes de dotarem todos, de modo equilibrado, de condições básicas de sobrevivência digna e de, para além da busca de bens de consumo, criar uma sociedade propiciadora de valores humanos, culturais, artísticos em que o homem pudesse erguer a sua verdadeira face. «O livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos» e esta máxima do pensamento prático de Marx e Engels congrega em si, de modo simples, toda a articulação social e política necessária para erguer o verdadeiro mundo dos homens. 

Na sociedade capitalista o livre desenvolvimento de uns – a minoria – é condição para a escravização dos outros – a maioria - e esta máxima tem valor recíproco, pois a minoria só se ergue, economicamente, à custa da degradação da maioria. Foi assim no início da escalada capitalista, é assim no tempo que vivemos agora. E foi por isso que se ergueu o Muro de Berlim. Era necessário preservar um conjunto de grupos sociais capazes de porem de pé um mundo, no contexto do qual as desigualdades económicas se esbatessem a tal ponto que o verdadeiro homem pudesse nascer, desenvolvendo, de facto, os valores intrinsecamente humanos que não são económicos, que não são materiais, que não se medem pelo Ter, mas pelo Ser. À semelhança dos pais que protegem os seus filhos, enquanto crianças, nos limites de um espaço dentro do qual não lhes chegue a violência do mundo exterior, os perigos e as derrocadas do tempo adulto para o qual não estão preparados, enquanto crianças, também foi necessário erguer uma barreira para que a utopia, ainda impúbere, de uma sociedade justa e digna pudesse desenvolver-se arredada das tentações perigosas de um jogo de poder pernicioso e desumano. Aquele Muro, chamado da Vergonha pelos ocidentais, aquele Muro erguido no meio da cidade de Berlim, policiado e interditador da circulação livre foi o símbolo da protecção de um modelo de sociedade que, a desenvolver-se harmoniosamente, a estender-se gradualmente aos restantes países teria poder para pôr em prática a máxima de Marx e Engels citada antes. No momento em que os povos do Leste da Europa tivessem aderido à nova imagem do homem, dando de si testemunho ao resto do mundo, no momento em que a exploração do homem pelo homem, a abolição das classes, o respeito pela diferença e o estabelecimento da igualdade de direitos e de deveres prenunciasse uma nova etapa para o mundo humano, o muro poderia ir abaixo – à semelhança do que fazem os pais quando os filhos crescem e eles percebem que podem dá-los por inteiro à liberdade e à auto-determinação.

Sendo assim, que foi que correu mal, para que o Muro de Berlim se transformasse num sinal de repressão e de violência, de atentados às vidas e aos direitos daqueles que queria proteger? O que foi que não se cumpriu, do lado oriental da Europa, para que o descontentamento dos povos, aí confinados, almejasse pelas benesses da sociedade, aparentemente triunfal, do ocidente? O que foi que falhou no passar à prática da máxima de Marx e Engels, para que os povos da Europa de Leste rompessem a fronteira que o Muro fixava e tentassem fugir, arriscando a vida, para o outro lado do mundo?

Uma vez mais não irei recorrer aos circunstancialismos históricos, datados e contextualizados, porque eles estão todos aí em manuais, documentários e filmes e darei, em vez disso, a resposta simples, nua e crua como são todas as respostas verdadeiras, dá-la-ei sem contemplações para que conste, para que possa ser alvo de reflexão – se acaso houver ainda disponibilidade para reflectir com autonomia.

O homem corrompe a pureza dos ideais engendrados de boa-fé, o homem ilude e ilude-se uma e muitas vezes, e julgando semear trigo deixa crescer o joio, o homem constrói o ninho e depois, esquecido que esse ninho é a sua morada, suja-o, quebra-o, torna-o gradualmente inabitável. Foi assim que a Europa de Leste, abrigada pela fortaleza do Muro, se foi degenerando, enquanto, aparentemente, o mundo ocidental desabrochava num esplendor feito de cintilações enganosas – mas nem por isso menos incandescentes. A corrupção ocidental estava disfarçada com as cores poderosas do consumismo alienante, mas encantador; a corrupção oriental tinha um sabor amargo, era cinzenta e apagada e os povos, para além do muro, pareciam a imagem pálida do mundo policromático divisado, a espaços, pelas frinchas, apesar de tudo abertas para o outro lado.

Por isso, naquele dia 9 de Novembro de 1989, abrir o muro e derrubá-lo foi ocasião de festa; e os povos de Leste respiraram, por fim, o ar que lhes havia sido retirado durante décadas e sentiram que eram livres, sentiram que, doravante, os privilégios, as ousadias, os luxos e as aventuras do ocidente também lhes seriam permitidos e que, desse modo, seriam cidadãos completos!

Vinte e cinco anos passaram, desde então. Poderemos afirmar, com verdade, que derrubar o Muro de Berlim e atravessá-lo foi, efectivamente, a ocasião de encontro daqueles povos consigo mesmos? Poderemos afirmar, com verdade, que hoje os homens e mulheres da Europa de Leste, apresentados à sociedade de consumo e nela imbuídos de corpo e alma, são mais autenticamente humanos do que o foram à sombra ignominiosa da parede que derrubaram? Uma vez mais não responderei a semelhantes questões: as evidências andam por aí e também esses homens, essas mulheres e essas crianças; encontramo-los um pouco por todo o lado – às evidências e aos homens – e basta querermos reflectir e ponderar para darmos a resposta, nem que seja apenas de nós para nós mesmos.

Evidentemente que uma sociedade adulta e razoável não deveria necessitar de muros para fazer vingar os seus ideais. Evidentemente que um mundo, onde todos são semelhantes na sua comum humanidade, deveria escancarar todas as portas e deixar entrar e frutificar e crescer em pleno todos e cada um. Evidentemente que os muros, construídos, objectiva e concretamente, enquanto barreiras físicas, e os outros todos que, oriundos das nossas defesas psicológicas nos isolam dos outros homens, deveriam ser derrubados, para que a concórdia e a autenticidade fossem possíveis.

Não nos iludamos porém: caído o Muro de Berlim, outros se ergueram, provavelmente mais vexatórios ainda, provavelmente mais destituídos de sentido e as evidências históricas e documentais estão aí para atestar a sua existência; quanto aos muros psicológicos, às barreiras comunicacionais de homem para homem, às fortalezas erigidas por cada um na desconfiança perante o outro, nunca, como hoje, eles representaram tão agudamente a evidência palpável dos muros que urge derrubar.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

CONFIANÇA PRECISA-SE

CATARINA DINIS
Depois de uma semana inteira, a escutar nos meios de comunicação palavras como “responsabilidade” e "confiança”…
Decidi partilhar com vocês um breve texto que escrevi há uns anos, na altura senti falta dessas mesmas palavras em relação ao trabalho que exercia e isso abala qualquer relação, pessoal, laboral, politica etc… 
Assim fica esta pequena mensagem, quando dia-a –dia a nossa pátria caminha para a autodestruição…


Em quem devemos confiar?

A vida ensinamos tantas lições, uma delas é sobre a confiança.
A confiança é a base de todas relações pessoais, laborais, de amor, de amizade. Ela é imprescindível no nosso dia-a-dia e faz com que as nossas tarefas ou decisões nem sempre sejam assertivas.
Quem já não se questionou sobre em quem confiar? E aqui somos defrontados com tantas situações. Antes de confiar nos outros devemos confiar em nós próprios, fazer um compromisso com as nossas palavras e ações.
Não existe uma receita mágica para criarmos confiança... Ela é que nos envolve se estivermos dispostos a deixa-la entrar.

domingo, 16 de novembro de 2014

DOMINGO, NUM DIA CHUVOSO

MIGUEL GOMES
Vou passando por aqui, paro, olho, leio, penso e vou embora. As palavras ainda não estão maduras ou, talvez, eu esteja muito verde ainda.

Valha-me este tempo cinzento, a chuva, os eucaliptos a dançarem à minha frente. Há um fascínio neste tempo, sinto-me calmo, mais calmo, com vontade de abraçar sonhos. Ser pastor, trabalhar a terra, escrever e saborear uma chávena de café quente com um pouco de boroa.

Por vezes é como se vivesse duas vidas, uma consciente do que sou e outra sendo o que insconscientemente todos somos, pessoas. Pergunto-me, várias vezes, o porquê e fico contente com a minha resposta: porque sim. Poderia despoletar uma dissertação esquisotérica sobre o que andamos cá a fazer, de onde vimos, para onde vamos, etc., mas, na verdade, estes discursos cansam um pouco. Não porque sejam fúteis, mas porque não conduzem a lado algum, são círculos e não espirais, não libertam, criam dependências, gurulatrias, aglutinam energias e, acima de tudo, são discursos culturais, variando de local para local.

Estamos tão habituados e condicionados a sermos descendentes de algo e a caminharmos para um destino, que nem pensamos que não somos nada.
Estamos habituados a uns serem melhores que outros, maiores que outros e isso leva-nos a colocar-nos em comparação com tudo e todos.

Partilhamos o mesmo pedaço de terra, no entanto criamos fronteiras, conflitos, não sabemos viver em comunidade, somos capazes de sonhar tão alto e de construir pesadelos cada vez maiores...

Deixo-me suspirar, continuo sentado no muro, com as mãos apoiadas no musgo, a balançar as pernas e a olhar em frente. No meio de este barulho. Pessoas em viagens sem destino, correrias para fugir do cansaço, hipotéticas espiritualidades amparadoras.

Acho que a nossa maior conquista nesta batalha é sermos nós próprios, sem demagogias ou falsas ideologias, apenas sendo. Sinto-me bem assim, quase sem nada, não sonho nem conquisto, apenas vivo e respiro.

Penso todos somos a peça do mesmo puzzle. Ou um puzzle de uma só peça. 

Não temos noção da distância a nós próprios e vamos encontrando pessoas que nos mostram que a distância é menor do que pensamos.

A distância a nós mesmos depende do quanto de nós trazemos no olhar, o quanto de nós fica na paisagem, nas pessoas, nos gestos, nos abraços e o quanto de barreiras perdemos quando alguém nos olha com amizade e sinceridade.

Acho que, no fundo, todos somos felizes, mas ainda não o sabemos...