ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA |
A especificidade
cinematográfica fica incompleta só com palavras. É muito difícil contar
um filme através de palavras
porque se esquece o valor do som, da música e do ritmo. É muito difícil contar
por palavras a luz e as
tonalidades de uma paisagem, a duração de um plano de ternura ou de medo, a
expressão e o olhar dos atores. É difícil traduzir por palavras a força
magnética que os atores exercem sobre nós! Eles constroem personagens
inesquecíveis e nós assistimos a uma misteriosa metamorfose! Na nossa memória
visual e íntima, eles jamais se desligarão das personagens que interpretaram.
Senti esse tipo de metamorfose e de atitude no passado dia
28 com a notícia do falecimento de Emmanuelle
Riva (1927-2017) e John Hurt (1940-2017). Partiram os dois no mesmo dia e foram
protagonistas de dois filmes que me marcaram profundamente. Emmanuelle Riva
tornou-se a essência de Hiroshima mon
Amour, de Alain Resnais, em 1959 e John Hurt tornou-se o Winston Smith de Nineteen Eighty-Four, de Michael
Radford, em 1984. Dois atores que me transportaram de uma forma inexorável para
o mundo literário de Marguerite Duras e George Orwell. Para mim, estes dois
atores são, acima de tudo, estes dois filmes.
Deixaram-nos no mesmo dia! E deixaram-nos num período da
nossa história em que precisamos muito de rever Hiroshima mon amour e Nineteen
Eighty-Four. Porque são duas visões da barbárie humana. O rosto e o corpo
destes dois atores tornam-se, nestes dois filmes, armas contra o esquecimento,
a repressão e o extremismo. São obras que refletem sobre o medo e o avolumar da
desumanidade no mundo, pela ascensão ao poder de ideologias despóticas que
legitimam, por todos os meios, a sua superioridade.
Em Hiroshima mon
amour e em Nineteen Eighty-Four,
Elle e Winston representam a luta pela legitimidade do amor, a luta pela
dignidade humana sem extremismos e sem preconceitos. Eles são as vítimas da
barbárie e o símbolo de uma resistência altamente dolorosa contra essa mesma
barbárie. Eles são os protagonistas de duas indiscutíveis reflexões sobre as
consequências dos totalitarismos e dos extremismos.
No rosto de Emmanuelle Riva, espelha-se a inevitabilidade
dos amores simples mas proibidos, a construção dos afetos, num mundo retalhado
pela guerra, pelo ódio e pelo preconceito. Emmanuelle Riva concentra nos seus
gestos e olhares, os amores proibidos pelo oficial alemão, durante a ocupação
nazi em França. Concentra o sofrimento das mulheres perseguidas pela depuração
da pós-libertação. Concentra, em Hiroshima, a reflexão sobre as consequências
da bomba atómica e a decisão da escolha da vontade humana. Enquanto mulher,
representa a inevitabilidade e a beleza do amor como primordial resistência.
No rosto de John Hurt define-se a vontade de lutar contra
a tortura, a uniformização dos gestos humanos, a manipulação coletiva e a
vigilância implacável! Ele concentra, nos seus gestos e olhares, uma força que
tenta preservar o seu amor com Julia. Concentra, no seu rosto, a luta desigual
contra a tortura, contra aqueles ratos que são os instrumentos macabros de uma
sórdida lavagem cerebral. Ele é a força máxima de uma luta desigual contra
sociedades totalitárias e contra o poder quase indestrutível do manipulador
supremo. E nós vivemos num mundo de subtis manipuladores supremos.
Dois atores magníficos, protagonistas de sequências
intensas. Quero partilhar convosco duas dessas sequências. Serão, ao mesmo
tempo, uma homenagem ao seu talento e uma chamada de atenção para que, por um
lado, a História de invasão nazi e a Bomba de Hiroshima não se repitam e, por
outro lado, para que a terrível e distópica visão de George Orwell nunca seja
uma realidade total. Porque ela existe, nos nossos dias, de uma maneira bem
mais sofisticada mas igualmente incapacitante.
E escolho os grandes planos do rosto de John Hurt que
definem o horror, o medo, a inevitabilidade de uma lavagem cerebral, a negação
de um sentimento individual perante a manipulação suprema de um resistente que
perpassa toda a sequência da tortura da gaiola dos ratos. A resistência de uma
personagem à bárbarie de um regime. São planos rápidos, intensos, detalhados
que nos fazem sentir a terrível experiência da personagem.
E escolho os olhos de Emmanuelle Riva que nos revelam a
dimensão dos sentimentos e das emoções que troca com o seu amante japonês. É o
seu corpo e o seu rosto que enunciam o que se passou em Nevers. É no olhar de
Emmanuelle Riva que nos apercebemos da inevitabilidade da memória sobre o que
se passou em Nevers e são as mãos dela que nos transportam para as mãos que
arranham as paredes da cave de Nevers. E, na cave de Nevers, lambendo o sangue
das unhas, Emmanuelle encarna as mulheres perseguidas pela depuração cruel
construída no ódio da guerra. E temos duas mulheres, dois rostos, dois momentos
chave em dois espaços diferentes: Nevers e Hiroshima.
John Hurt celebrizou-se através de outras personagens em Allien, O Oitavo Passageiro, O Homem Elefante, Harry Potter e a Pedra Filosofal, entre outros. Para mim, será
sempre o Winston. Emmanuelle Riva celebrizou-se em Thèrèse Desqueyroux, Blue,
entre outros. Em Amour, de Michael
Haneke (2013) voltei a encontrar nela aquele olhar e aquela serenidade que
exige o cumprimento do amor. Mas, para mim, ela será sempre a mulher de
Hiroshima e a mulher de Nevers.
Nessa metamorfose entre ator e personagem, estes dois
atores foram duas armas contra a bárbarie. Para que nada desse mal se repita.
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