segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

EDUCAÇÃO E AUTONOMIA EM KANT E SÓCRATES

ISABEL ROSETE
As notas escritas por Kant acerca da educação (pedagogia) não constituem um desvio meramente acidental de uma actividade filosófica perpassada por questões metafísicas. São, antes, uma parte integrante e fecunda do seu pensar, tão essencial, como qualquer outra. A metafísica intervém directamente no projecto pedagógico kantiano, não tanto para nos conduzir à elaboração de abstracções, mas para nos enviar para a essência da realidade educacional, dada na sua concretude. Para o autor da “Crítica da Razão Prática” e “Das Reflexões sobre a Educação”, o pensamento e a experiência esclarecem-se e guiam-se mutuamente. Um lema indiscutível que perpassa o pensar do filósofo, em qualquer dos domínios a que este se aplique. A pedagogia fornece ao filósofo quadros de pensamento específicos já anunciados em outras obras que, só em aparência, ultrapassam o domínio estritamente educacional: existe uma disciplina da “Razão Pura”, entendida num sentido eminentemente pedagógico, tal como nos é anunciado na parte final da “Crítica da Razão Pura”, sendo a “Metodologia da Razão Prática”, que conclui a “Crítica da Razão Prática”, não mais do que a ideia de uma pedagogia moral. Encontramos, também, na “Crítica da Faculdade de Julgar”, reflexões essenciais sobre as noções pedagógicas de “disciplina” e de “cultura”.

Kant mostra-se-nos verdadeiramente interessado nos problemas pedagógicos. Defende os conceitos de “bom senso” e de “equilíbrio” – que propõe como fundamento de todo o processo de ensino-aprendizagem – tão adversos aos programas educacionais da época, onde a escola se manifestava como o meio menos apropriado para a promoção da educação da Humanidade. O projecto pedagógico kantiano é o revés do estado deplorável do ensino na Alemanha do século XVIII, cuja programação, para além de desequilibrada, incoerente e desclassificada, mantinha-se desadequada à ordem natural do educando que, em matéria de educação, deve ser tomada como absolutamente prioritária. Na Informação acerca da “Orientação dos seus Cursos nos Semestres de Inverno de 1765/1766”, Kant apresenta-se-nos deveras preocupado com o problema da discordância entre os conteúdos dos ensinamentos leccionados e as potencialidades intelectuais do educando propondo, por isso, que este dispense os conhecimentos que não sejam susceptíveis de serem assimilados convenientemente. Pretende-se estabelecer uma adequação entre as capacidades intelectuais do aluno e os ensinamentos ministrados, de molde a evitar o obscurecimento da ordem natural da criança, cuja estrutura intelectual deve ser devida e dignamente considerada: em vez de opormos Ensino e Natureza, devemos realizar uma coligação harmoniosa entre estas duas instâncias, porque, opondo-as, estamos a contribuir para a formação de falsos sábios, nos quais a ciência não penetrou de modo a tornar-se conhecimento, mas, tão-só, uma amálgama confusa de teses que poderão proporcionar, apenas, a verbosidade (cega e incurável sendo, por isso, preferível a ignorância) precocemente sábia do jovem pensador.

Uma vez estabelecida, para o processo de ensino-aprendizagem, a necessidade rigorosa do requerimento da ordem natural do educando, toda a instrução, em particular, e a educação, em geral, deve pressupor, como fios condutores, a maturidade do entendimento, a razão experimentada e exercitada, assim como a pré-disposição conceptual do aluno para a aprendizagem. A postulação destes critérios deixa antever uma concepção orgânica e arquitectónica do aparelho intelectual do sujeito cognoscitivo, a qual supõe, por sua vez, uma estruturação rígida que não admite passagens vertiginosas ou o descuramento de algumas das etapas constitutivas dessa mesma estrutura. Seguindo este critério, o pedagogo deve formar, em primeiro lugar, o homem que entende, em segundo, o que raciocina e, em terceiro, o sábio. Esta hierarquização qualitativamente processual da estrutura intelectual do sujeito faz desabrochar uma noção progressiva da educação: o saber é algo que se vai construindo ou perfazendo ao longo da vida de cada indivíduo e, jamais, um patamar fundado numa rigidez absoluta, apriorística e definitivamente sedimentada para todo o sempre, cuja natureza pertença à esfera da perenidade.

Kant não nos induz à consideração de uma concepção estática da educação, mas, pelo contrário, ao seu visionamento numa perspectiva que implica a dinamicidade, o contínuo, o progressivo. O filósofo defende, tal como Rousseau, que o aluno não pode aprender pensamentos, mas aprender a pensar; que não se deve levá-lo, mas guiá-lo, se se pretende que, no futuro, seja capaz de caminhar por si mesmo. A educação torna-se um processo de auto-construção guiada, reservando-se para o pedagogo o papel de orientador, de formador ou modelador de uma matéria que, não obstante todos os gérmenes potenciais que intrinsecamente a compõem, se encontra, de certo modo, desenformada. Surge, neste contexto, a fundamental diferença conceptual entre o preceptor, que é o professor, e o pedagogo, que é o guia (“Führer”) - o primeiro educa em vista da escola, o segundo, em vista da Vida. A primeira época é, para o aluno, aquela em que ele deve fazer prova da sua submissão e obediência passiva; a segunda corresponde ao momento em que o deixamos, mas sobre leis, fazer uso da sua reflexão e da sua liberdade. A coacção é mecânica, na primeira época. Moral, na segunda. Mas, note-se, o discípulo, o aluno, não deve ser escravo do mestre, dessa pressuposta figura ideal a seguir. Deve sentir, sempre, a sua própria liberdade, de tal modo que ela jamais se oponha à liberdade do outro. Educar é formar o Homem, conduzi-lo pelo caminho que a sua própria natureza exige, em permanente consonância com a dimensão da alteridade.

A educação não pressupõe, propriamente falando, a introdução de algo novo, mas o fazer desabrochar do já existente. Aproximamo-nos, deste modo, do método socrático, relativamente ao qual Kant manifesta a sua preferência, por oposição ao método catequético, que introduz a mecanização na alma. Trata-se de desenvolver, não a razão especulativa, mas a razão reflexionante, a razão prática na sua economia e direcção. É imperativo ter absoluta consciência de que cada indivíduo só apreende e detém, solidamente, o “manancial teórico” que extrai de si mesmo, a partir de si mesmo. Urge, portanto, proceder socraticamente na educação da razão. Sócrates, que se auto-nomeia “parteiro” dos conhecimentos dos seus auditores, dá-nos nos seus diálogos – que Platão nos conservou de certa maneira – exemplos do modo como podemos, mesmo se se tratar de pessoas idosas, conduzir o aluno a extirpar muitas coisas da sua própria razão. Confrontamo-nos com a defesa de um método investigativo, progressivo e não dogmático: não há modelos a seguir; apenas pistas indicadoras que se destinam a promover uma busca contínua, sobre as quais é susceptível exercerem-se juízos pessoais, os quais não obedecem a cânones estabelecidos pela exterioridade. A educação torna-se um processo interior progressivamente realizado, mediante as potencialidades que comandam a ordem natural do sujeito. A concepção kantiana de educação encontra na natureza humana a sua justificação e razão de ser. Nesta medida, a educação consuma aquilo que aquela doou ao homem como gérmen e possibilidade. É neste sentido que devemos interpretar a tese kantiana, segundo a qual o homem só se pode tornar Homem pela educação, não sendo senão o que a educação faz por ele. Por conseguinte, urge trabalhar no plano de uma educação conforme aos princípios humanos, legar à posteridade as instituições que permitirão a sua realização plena. Nem os mais pessimistas deverão encarar esta ideia como quimérica, ou, simplesmente, rejeitá-la por a considerarem como um belo sonho minado pela utopicidade de um ideal inalcançável, não obstante encontrarem obstáculos à sua consumação plena, pois uma ideia - salienta o filósofo - não é senão o conceito de uma perfeição que não está ainda concretizada na experiência. A ideia da existência de uma educação que desenvolva absolutamente todas as disposições naturais do homem é, certamente, verídica. A Humanidade, presente e futura, deve canalizar todos os seus esforços para levar a cabo a concretização deste supremo e necessário ideal.

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