ISABEL ROSETE |
As notas escritas por Kant acerca da educação (pedagogia) não constituem um desvio meramente acidental de uma actividade filosófica perpassada por questões metafísicas. São, antes, uma parte integrante e fecunda do seu pensar, tão essencial, como qualquer outra. A metafísica intervém directamente no projecto pedagógico kantiano, não tanto para nos conduzir à elaboração de abstracções, mas para nos enviar para a essência da realidade educacional, dada na sua concretude. Para o autor da “Crítica da Razão Prática” e “Das Reflexões sobre a Educação”, o pensamento e a experiência esclarecem-se e guiam-se mutuamente. Um lema indiscutível que perpassa o pensar do filósofo, em qualquer dos domínios a que este se aplique. A pedagogia fornece ao filósofo quadros de pensamento específicos já anunciados em outras obras que, só em aparência, ultrapassam o domínio estritamente educacional: existe uma disciplina da “Razão Pura”, entendida num sentido eminentemente pedagógico, tal como nos é anunciado na parte final da “Crítica da Razão Pura”, sendo a “Metodologia da Razão Prática”, que conclui a “Crítica da Razão Prática”, não mais do que a ideia de uma pedagogia moral. Encontramos, também, na “Crítica da Faculdade de Julgar”, reflexões essenciais sobre as noções pedagógicas de “disciplina” e de “cultura”.
Kant mostra-se-nos verdadeiramente interessado nos problemas pedagógicos. Defende os conceitos de “bom senso” e de “equilíbrio” – que propõe como fundamento de todo o processo de ensino-aprendizagem – tão adversos aos programas educacionais da época, onde a escola se manifestava como o meio menos apropriado para a promoção da educação da Humanidade. O projecto pedagógico kantiano é o revés do estado deplorável do ensino na Alemanha do século XVIII, cuja programação, para além de desequilibrada, incoerente e desclassificada, mantinha-se desadequada à ordem natural do educando que, em matéria de educação, deve ser tomada como absolutamente prioritária. Na Informação acerca da “Orientação dos seus Cursos nos Semestres de Inverno de 1765/1766”, Kant apresenta-se-nos deveras preocupado com o problema da discordância entre os conteúdos dos ensinamentos leccionados e as potencialidades intelectuais do educando propondo, por isso, que este dispense os conhecimentos que não sejam susceptíveis de serem assimilados convenientemente. Pretende-se estabelecer uma adequação entre as capacidades intelectuais do aluno e os ensinamentos ministrados, de molde a evitar o obscurecimento da ordem natural da criança, cuja estrutura intelectual deve ser devida e dignamente considerada: em vez de opormos Ensino e Natureza, devemos realizar uma coligação harmoniosa entre estas duas instâncias, porque, opondo-as, estamos a contribuir para a formação de falsos sábios, nos quais a ciência não penetrou de modo a tornar-se conhecimento, mas, tão-só, uma amálgama confusa de teses que poderão proporcionar, apenas, a verbosidade (cega e incurável sendo, por isso, preferível a ignorância) precocemente sábia do jovem pensador.
Uma vez estabelecida, para o processo de ensino-aprendizagem, a necessidade rigorosa do requerimento da ordem natural do educando, toda a instrução, em particular, e a educação, em geral, deve pressupor, como fios condutores, a maturidade do entendimento, a razão experimentada e exercitada, assim como a pré-disposição conceptual do aluno para a aprendizagem. A postulação destes critérios deixa antever uma concepção orgânica e arquitectónica do aparelho intelectual do sujeito cognoscitivo, a qual supõe, por sua vez, uma estruturação rígida que não admite passagens vertiginosas ou o descuramento de algumas das etapas constitutivas dessa mesma estrutura. Seguindo este critério, o pedagogo deve formar, em primeiro lugar, o homem que entende, em segundo, o que raciocina e, em terceiro, o sábio. Esta hierarquização qualitativamente processual da estrutura intelectual do sujeito faz desabrochar uma noção progressiva da educação: o saber é algo que se vai construindo ou perfazendo ao longo da vida de cada indivíduo e, jamais, um patamar fundado numa rigidez absoluta, apriorística e definitivamente sedimentada para todo o sempre, cuja natureza pertença à esfera da perenidade.
Kant não nos induz à consideração de uma concepção estática da educação, mas, pelo contrário, ao seu visionamento numa perspectiva que implica a dinamicidade, o contínuo, o progressivo. O filósofo defende, tal como Rousseau, que o aluno não pode aprender pensamentos, mas aprender a pensar; que não se deve levá-lo, mas guiá-lo, se se pretende que, no futuro, seja capaz de caminhar por si mesmo. A educação torna-se um processo de auto-construção guiada, reservando-se para o pedagogo o papel de orientador, de formador ou modelador de uma matéria que, não obstante todos os gérmenes potenciais que intrinsecamente a compõem, se encontra, de certo modo, desenformada. Surge, neste contexto, a fundamental diferença conceptual entre o preceptor, que é o professor, e o pedagogo, que é o guia (“Führer”) - o primeiro educa em vista da escola, o segundo, em vista da Vida. A primeira época é, para o aluno, aquela em que ele deve fazer prova da sua submissão e obediência passiva; a segunda corresponde ao momento em que o deixamos, mas sobre leis, fazer uso da sua reflexão e da sua liberdade. A coacção é mecânica, na primeira época. Moral, na segunda. Mas, note-se, o discípulo, o aluno, não deve ser escravo do mestre, dessa pressuposta figura ideal a seguir. Deve sentir, sempre, a sua própria liberdade, de tal modo que ela jamais se oponha à liberdade do outro. Educar é formar o Homem, conduzi-lo pelo caminho que a sua própria natureza exige, em permanente consonância com a dimensão da alteridade.
A educação não pressupõe, propriamente falando, a introdução de algo novo, mas o fazer desabrochar do já existente. Aproximamo-nos, deste modo, do método socrático, relativamente ao qual Kant manifesta a sua preferência, por oposição ao método catequético, que introduz a mecanização na alma. Trata-se de desenvolver, não a razão especulativa, mas a razão reflexionante, a razão prática na sua economia e direcção. É imperativo ter absoluta consciência de que cada indivíduo só apreende e detém, solidamente, o “manancial teórico” que extrai de si mesmo, a partir de si mesmo. Urge, portanto, proceder socraticamente na educação da razão. Sócrates, que se auto-nomeia “parteiro” dos conhecimentos dos seus auditores, dá-nos nos seus diálogos – que Platão nos conservou de certa maneira – exemplos do modo como podemos, mesmo se se tratar de pessoas idosas, conduzir o aluno a extirpar muitas coisas da sua própria razão. Confrontamo-nos com a defesa de um método investigativo, progressivo e não dogmático: não há modelos a seguir; apenas pistas indicadoras que se destinam a promover uma busca contínua, sobre as quais é susceptível exercerem-se juízos pessoais, os quais não obedecem a cânones estabelecidos pela exterioridade. A educação torna-se um processo interior progressivamente realizado, mediante as potencialidades que comandam a ordem natural do sujeito. A concepção kantiana de educação encontra na natureza humana a sua justificação e razão de ser. Nesta medida, a educação consuma aquilo que aquela doou ao homem como gérmen e possibilidade. É neste sentido que devemos interpretar a tese kantiana, segundo a qual o homem só se pode tornar Homem pela educação, não sendo senão o que a educação faz por ele. Por conseguinte, urge trabalhar no plano de uma educação conforme aos princípios humanos, legar à posteridade as instituições que permitirão a sua realização plena. Nem os mais pessimistas deverão encarar esta ideia como quimérica, ou, simplesmente, rejeitá-la por a considerarem como um belo sonho minado pela utopicidade de um ideal inalcançável, não obstante encontrarem obstáculos à sua consumação plena, pois uma ideia - salienta o filósofo - não é senão o conceito de uma perfeição que não está ainda concretizada na experiência. A ideia da existência de uma educação que desenvolva absolutamente todas as disposições naturais do homem é, certamente, verídica. A Humanidade, presente e futura, deve canalizar todos os seus esforços para levar a cabo a concretização deste supremo e necessário ideal.
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