segunda-feira, 31 de agosto de 2015

SETE DIAS EM PARIS. DIÁRIO. DIA 1 #

(#Aeroporto Sá Carneiro – Orly #Reconhecimento da Rue de La Verrerie e zonas envolventes #Hôtel de Ville #Île de La Cité #Notre-Dame # Ponte dos Cadeados, ao rio Sena # Sainte-Chapelle)

Família Borges Lopes: "Hotel de Ville à Paris"
Não importa se já fomos antes a Paris. Se temos filhas adolescentes, elas vão querer voltar lá.

Chegar a Paris às 14:00 (hora local) pode ser encantador. Na verdade, pode ser perfeito para primeiro dia de viagem.
Depois de instalados num pequeno apartamento na Rua de La Verrerie, no Marais, reconhecido como um dos bairros mais “simpáticos” de Paris, guiados pela luz da “cidade-luz”, fomos fazer o reconhecimento das ruas envolventes.
O Hôtel de Ville é, sem sombra de dúvida, um dos edifícios mais belos de se contemplar. E a animação na praça, a prática de desportos, a vida circundante dão-lhe um charme ainda mais especial.
De todo o lado, avistávamos a catedral de Notre-Dame. O desejo era aproximarmo-nos mais e mais. A sua visão funciona como um íman, atraindo pela imponência das torres e o pináculo retorcido contra o céu. Depressa estávamos à porta. Todos os pescoços esticados procuravam escrutinar a complexidade de trabalhos catedral acima: torres, janelas de rosácea, portais, gárgulas, animaizinhos diabretes (como lhes chamávamos). Havia uma grande uma fila de turistas, mas a entrada foi rápida. A visita a essa que é uma das catedrais mais famosas do mundo faz-se calmamente: deixando-nos envolver pelo silencioso interior da pedra; contemplando os imensos arcobotantes, o intrincado trabalhado gótico, as altas abóbadas, as capelas, os vitrais, o órgão, a Pietá, de Nicolas Coustou – e eu, que me comovo de lágrimas com as “pietás”, como gostaria de conhecê-las a todas, as do mundo inteiro!
Voltando lá fora, frente à catedral, contrastando com os militares armados que patrulhavam a praça, dois noivos faziam uma sessão fotográfica. É frequente avistarmos noivos em Paris, muitas das vezes não se tratando do dia do casamento, apenas acompanhados por um fotógrafo. Julgo que será mais fogo-de-vista do que outra coisa, na inquietação de dizer que celebraram o casamento em Paris, na ânsia de registar essa fantasia em fotografia, nesse medo de não aparecer – essa fobia –, porque é preciso aparecer para parecer.
Atravessando os portões para o jardim, comprova-se que o pináculo e a Chapelle St.-Georges são de uma extravagância difícil de explicar. Logo se avista uma das pontes dos cadeados, neste caso, a Pont de l'Archevêché, debaixo do olhar complacente da estátua do Papa João Paulo II. Independentemente da campanha “Love Without Locks” (Amor sem Cadeados), levada a cabo pelas autoridades parisienses, milhares de cadeados continuam a ser colocados nos gradeamentos, selando promessas de amor, numa tradição secular, vinda de lendas e histórias contadas em vários lugares do mundo. Será a tradição, se assim se pode chamar, uma forma de pôr trancas ao Amor – “Tu só, tu, puro Amor, com força crua / Que os corações humanos tanto obriga / […]” (já dizia o nosso Camões), não o deixando correr, amar, louvar-se, honrar-se livremente? Uma forma de o agrilhoar? Ah, essas coisas do amor são muito complicadas. É a loucura! Um casal português pediu-nos que lhes tirássemos uma foto. No Sena, os barcos recheados de pessoas. Acenavam, felizes, passando debaixo da ponte carregada de amores selados com cadeados. Como? Queriam saber se lá deixei o meu?

Ao fim da tarde, fizemos o caminho a pé até à Sainte-Chapelle. É magnífica a Île de La Cité. Barraquinhas estendem-se a perder de vista nas margens do Sena, com pintores, alfarrabistas e diversas vendas de “souvenirs”.
Tudo concorria para a magia que sempre guardamos da “cidade-luz” – e aquele era um fim de tarde especial de calor e luz –, enquanto se ia cobrindo de ouro a planície parisiense.
Na Sainte Chapelle, no Palais de Justice, o controle é apertado, sendo necessário passar uma enorme fila com detector de metais. A pequena capela, obra-prima do estilo gótico, construída para alojar relíquias acumuladas durante as Cruzadas, é, para muitos, a mais bela do mundo. Para nós, avistá-la a partir dos pesados portões dourados, fotografá-la longe da multidão, na sua beleza impregnada de sobrenatural, com a simpática permissão dos dois monsieurs gendarmes que os fechavam (os portões) de-va-ga-ri-nho, debaixo do olhar atento do anjo que atira uma flecha para o céu, símbolo maior do desejo do homem de subir até Deus, foi um gosto surreal, como o são tantas outras coisas que fomos encontrando na cidade. E eu, que amo os anjos, vejo nesse um dos mais belos que já vi – eu que gostaria de conhecer todos os anjos, os de pedra e os de carne que habitam o planeta.

Foi ainda tempo para visitar a misteriosa tour de Saint Jacques, outro marco que, pela beleza e altitude, nos serviria, doravante, de orientação dos dias.

E pronto. Perto daí, avistávamos os imponentes edifícios do Musée du Louvre. A visita estava guardada para outro dia. Foi mesmo, como dizia o outro, um “adeus compadre, até outro dia”, porque era tarde e estávamos cansados e o museu estava a fechar e as coisas estavam programadas assim… Ai, que vontade de entrar logo! As filhas queriam entrar logo. Diziam que queriam ir lá. Agora!

Aspectos positivos: é muito agradável, fácil e relativamente seguro, andar a pé em Paris. A cidade é plana e temos a oportunidade de observar tudo com bastante calma e atenção. É possível sentir, debaixo da pele, a pulsação da cidade.


Aspectos negativos: para este dia, nada. Ainda mal começámos a viagem, não é verdade?

domingo, 30 de agosto de 2015

REI, NÍCIO LECTIVO

MIGUEL GOMES
Era uma vez, o mundo, redondo, há quem o tenha visto nascer arestizado, mas a berlindada a que foi submetido arredondou-o numa eternidade que tem durado até os dias de hoje. Haja moratória e berlindará por mais algum tempo.

Perdoe-se-me a desatenção.

Era uma vez, o mundo começava a outonizar depois de um veraneio quente de serrim colado ao corpo tangido de cansaço pueril, de gotas de suor a marcar as frontes sujas do pó do campo de futebol improvisado entre pinheiros e relva feita de mato e silvas, balneários feitos da parte de trás de um pinheiro manso largo o suficiente. Quando o Verão se carpia em fins de tarde cada vez mais frios, ainda sem ninguém que gostasse do que dizíamos em forma de gostos, sabia-se vir aí o tempo de procurar no fundo da gaveta quais os cadernos ainda mal preenchidos, com folhas pautadas ou quadriculadas, sebentas não sebentas, impolutas, para pousar o pulso e girar um compasso assemelhado a ele mesmo, sem seguranças ou travagens de emergência, apenas a certeza rodopiante de um ângulo de 360º na simetria da exactidão matemática, a científica forma de reproduzir uma divindade deificada, o rei rainha.

Não sobrando cadernos, fazia-se conta às aulas diferentes que surgiriam, sem contudo deixar de sentir o borboletear no estômago da indecisão de se saber decidir, seria fácil ou difícil? Ouvi dizer que é muito difícil, mais difícil do que no ano passado, um pouco como a vida, ou vidas, mais difíceis que as anteriores. Descia-se a rua, se de manhã fresca, fecha-se os olhos e deixa-se a respiração para daqui a uns segundos quando o camião verde escuro, cansado mas tenaz, passar lentamente pela rua acima bafejando a negritude do esforço quente nas arrepiadas pernas de catraio. 

O supermercado, sem qualquer super poder, tinha duas, no máximo três, prateleiras com cadernos todos iguais, negros ou com padrão de mala de viagem, um rectângulo de cantos arredondados (ou seria um círculo de lados rectilíneos?) branco onde poderíamos escrever o nome, número, ano e turma ou, então, apenas o nome da disciplina. Um por cada uma delas, as disciplinas ou aulas.

O caminho inverso custava mais, pela subida e pela ideia fixa nas aulas prestes a começarem, a certeza de conhecidos na turma, a incerteza de desconhecidos na turma, o rosto a mudar, a voz a engrossar, as borbulhas e os cabelos da moda. Nada muda. Ou tudo moda. 

O estojo, daria o do ano passado?, guardava algumas canetas cuja tinta resistiu aos combates do ano lectivo anterior, e acolhia outras, novas, quase novas, dos brindes antigos da época do Natal ou uma e outra nova, com sorte um conjunto tricolor, preto, verde e vermelho, cujas tampas não furadas convidavam a qualquer inocente incauto perder o ano lectivo por morrer engasgado e sufocado. Recordo o olhar apetitoso para novos modelos (já lhes chamavam porta-lápis e não estojo), plástico brilhante e colorido, imitação de rostos de super-heróis que estava habituado a ver apenas a preto e branco. O fecho magnético, os locais exactos para encaixar as canetas, lápis e borracha (qual delas, a verde, a branca ou a multifuncional castanho e azul?).

A mochila teria agora mais ombro onde assentar, os nomes riscados e o remendo cosido, o espelho parecia convencer-nos que estávamos prontos para o embate e as séries televisivas de verão tinham-nos ensinado uns poucos truques para o sucesso.

As prateleiras vazias, os livros plastificados, o temor dos novos professores, o respeito pelos professores anteriores, o medo também dos professores anteriores. O dono do tempo era o próprio tempo e perante a rebeldia inocente da inocência a que éramos votados por nós próprios, afinal, a principal característica da adolescência, entrávamos pela escola pequenos senhores do nosso nariz, mudos e calados até ao primeiro olhar de uma menina/o, até aos primeiros trabalhos de casa (fogo, logo no primeiro dia de aulas?), até ao trémulo sombreado da lâmpada atrás do candeeiro sobre os cadernos virginais onde se lia ainda “Lição nº 1”.

Houve tempo, quando a prioridade de quem se prioriza parlamentarmente era ensinar, que o respeito coexistia com a educação que se trazia de casa e o conhecimento passado pela voz, calduços e letra de professores, onde todos nos revezávamos na tríade de aprender, ensinar e desaprender, para depois, mais tarde, sem o apelo brutal ao consumismo, valorizarmos todos os elementos que nos avaliaram, as letras e palavras, até o som das guitarradas!, sabendo-nos mais adultos (salvos sejam!) porque éramos donos de nós mesmos.

Agora, pasmo-me, com a brutalidade consentida por quem se empoleira e sem se saber nu vomita legislareidades, apelando a que mais do que a preparação mental e espiritual para a partilha de conhecimento, se deixem colar ao corpo as etiquetas com que os querem carimbar, metafórica e literalmente, idolatrando a rectangularidade do que parece modelar as mãos e eles, petizes, andam de mãos cheias sem se saberem que as levam cada vez mais vazias.

Li algures, numa qualquer publicidade desviante, que se pode ter tudo o que se precisa para o novo ano lectivo, para o reinício, que “quem manda agora és tu”. 

E eles, elas, os pais, correm e poupam o que não têm em cupões para comprarem mais tarde o que não precisarão, camuflam-se com tudo aquilo que os pesa, esquecendo a leveza da filosofia própria de quem se sabe que quanto mais se carrega, menos se vai e, não, não se enganem, quem vos apela ao “quem manda és tu” é quem a vós pertenceis, o que vos cozinha lentamente, em fogo brando, e vos comerá depois de temperada a ignorância que te faz nu.

sábado, 29 de agosto de 2015

A INTELIGÊNCIA, OS ELEITORES E OS BURROS

JORGE NUNO
Partindo do nada, como de costume, logo pairou no ar a ideia de escrever sobre Bragança, pois – por mais estranho que pareça – foi considerada a 3.ª cidade mais inteligente do país, situando-se no Top 4, juntamente com Lisboa, Porto e Oeiras, num estudo independente intitulado “Portuguese Smart Cities Index 2015”, efetuado pela IDC – líder mundial em Market Intelligence.

Da inteligência, por oposição, surge-me de imediato a ideia de escrever sobre burros. Pode-se pensar, e com razão, que os decisores têm dificuldade em agir, em planear e, finalmente, colocar no terreno as condições necessárias à prevenção de incêndios, e pode-se intuir que estou a pensar em “burrice”, por essa falta de estratégia nacional. Na verdade, sabemos que anualmente os incêndios se tornam um flagelo, pondo em risco bens e pessoas, exigindo um enorme esforço humano e financeiro no seu combate, particularmente na época de verão, e que ano após ano vamos assistindo, nem que seja à distância, nos primeiros minutos dos telejornais. Foi com agrado que soube que burros de terras de Miranda do Douro iriam ser usados na prevenção de incêndios florestais, num projeto a cargo da Associação para o Estudo e Proteção de Gado Asinino (AEPGA) e a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), experiência que se vai iniciar em 2016, tal como tem vindo a apresentar resultados positivos o projeto que promove a terapia com burros destinado a crianças com deficiências físicas e mentais, incluindo crianças autistas ou com dificuldades de relacionamento, e também com o envolvimento da AEPGA e da UTAD.

Sinto um aviso sonoro de chegada de correio eletrónico, e interrompo o raciocínio e o início da escrita. Trata-se de uma mensagem, contendo um link, enviado por um amigo jornalista e escritor, por quem nutro uma grande estima, devido ao seu perfil e envolvimento generoso no associativismo e na cultura. Nesse artigo, aborda com incidência o interior do país, apesar de viver no litoral, no distrito de Setúbal. Realça a “alteração do mapa das freguesias”, levando ao fim de imensas sedes de Juntas de Freguesia, com “perda do poder autárquico”, o “fim do programa de apoio para a terceira idade”, o retirar de “Centros de Saúde, Repartições de Finanças, Tribunais, Escolas (…)”, originando um forte retrocesso nas vidas dos cidadãos, deixando no ar uma inquietante preocupação quanto ao défice de esclarecimento e à intenção de voto destes portugueses que vivem no interior, com tendência para favorecer “quem lhes fez tanto mal”.

Vivendo eu no interior, por opção, e conhecendo esta realidade, não posso deixar de concordar com a maioria do conteúdo deste artigo. Acrescento que políticas erradas, ao longo de décadas, acelerou a desertificação do interior e considero que o país, de forma desproporcionada, está mesmo inclinado para o litoral, onde se promove o investimento e se concentram populações. Mas quanto ao sistema eleitoral usado para as legislativas, ao método de Hondt e representatividade na Assembleia da República (AR), ao excessivo número de deputados eleitos, aos elevados gastos nas campanhas eleitorais, ao financiamento dos partidos, aos lobbiesinstalados, à falta de interesse dos partidos políticos em promoveram “reformas” internas, que apregoam para o Estado, com consequências no bolso do cidadão… em tudo isto, de forma corporativa, defende-se o status quo. Não é inocente, ingrata ou de gente “burra”, “atrasada” ou pouco esclarecida, a opinião generalizada que paira sobre a classe política, com políticos de topo na hierarquia do Estado a ter pontuação negativa, que é como quem diz: vergonhosamente abaixo de zero.

Os portugueses, seja de que região forem, são livres de votar na formação partidária que quiserem, de votarem em branco, ou de não votarem, engrossando a enorme lista de abstencionistas em todo o país, como aconteceu nas últimas eleições para as legislativas, com abstenção de 41,1% (a mais alta de sempre) e nas últimas presidenciais, com 53,37% (também número recorde), a que se juntam mais os votos nulos e em branco, levando a que a atitude dos portugueses fosse associada a “indiferença, laxismo e falta de confiança”, perante o ato eleitoral, a política e os políticos.

Mas se ainda resta a dúvida quanto ao peso pouco expressivo dos eleitores que vivem no interior do país, deixo aqui o número de eleitores e o número de deputados a eleger no próximo ato eleitoral de outubro. Na faixa interior do país, que considerei composta pelos círculos eleitorais de Bragança, Guarda, Castelo Branco, Portalegre e Évora (eliminando Beja, por também ter território no litoral), há um total de 735.141 eleitores inscritos nos cadernos eleitorais, que colocam 16 deputados na AR. No círculo eleitoral de Setúbal há 725.783 eleitores que colocam 18 deputados na AR. Constata-se que os cinco distritos do interior citados têm mais 9.358 eleitores e elegem menos dois deputados que o de Setúbal. Só cinco distritos do litoral – Aveiro, Braga, Lisboa, Porto e Setúbal – elegem 60% dos deputados.

Na hora de votar – e falta cerca de um mês – o esclarecimento é importante, e nem quanto a isso os partidos políticos chegaram a acordo, preferindo fazer debates televisivos prévios, relacionados com os ditos debates que (tudo indica) não se vão realizar. Entretanto, há que deixar os burros fazer o seu trabalho, desde que em prol do bem comum, seja em terras de Miranda ou onde quer que se encontrem. Na hora de votar… há que fazer uso da inteligência, consciente que todas as ações/decisões produzem consequências, e ainda mais, quando se fala de inteligência coletiva, a exigir “reformas” do sistema partidário e firme mudança de atitude.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

"FRANCISCO XAVIER DA SERRA CRAESBEECK ESCREVEU SOBRE O CASTELO DE FRE-GIM, AMARANTE, EM 1726”


Capela de Santa Cruz

HÉLDER BARROS
A primeira pessoa que me fez referência a este documento escrito de Cra-esbeek, foi o saudoso Amigo, Dr. Luís Coutinho, Senhor de um conhecimento profundo e apaixonado por tudo o que à História em geral se referia e à nossa amada Amarante, em particular. Quando, numa agradável conversa que tive-mos no Café Bar em Amarante, O Dr. Luís Coutinho me referiu a existência de uma Castelo em Santa Cruz, anterior à nacionalidade e que faria parte de uma corda defensiva ancestral que englobaria o Castelo de Arnóia, fiquei fascinado, pelo seu poder narrativo consubstanciado num forte conhecimento científico e literário. O que mais me impressionava naquele ser, era o brilho que sobressaía dos seus olhos, num corpo já frágil, mas com uma vontade de conhecimento infinita, mormente, em assuntos relacionados com a Princesa do Tâmega, que tanto amou! Nunca se pôs em bicos de pés, não buscava louvores nem passadeiras vermelhas, o ambiente sociopolítico até lhe era hostil… procurava o Conhecimento; sem mais! Tratava-se de um ser humano fantástico, como já há poucos, de uma nobreza de caráter exemplar!

Por sua sábia indicação, procurei então consultar este documento, escrito por Craesbeek em 1726 que não deixa margem para dúvidas. Amarante e mais propriamente Fregim, então pertencente ao concelho de Santa Cruz do Riba Tâmega, tiveram um castelo cujas fundações podem ser observadas ainda ho-je, no lado Sul da Capela de Santa Cruz, atualmente pertencente à Freguesia de Louredo.

(…) “1. O Concelho de Santa Cruz, chamado de Riba Tamega, fica cituado quatro legoas desta villa de guimarães, para o Sul; parte do Nacente com o rio Tamega, de junto à villa de Canavezes athe a villa de Amarante; e com terras da villa de Basto, por confrontação tem huma grande legoa. Parte do Norte com da dita villa de Basto e com terras dos concelhos de Unhão e Filgueiras: e poe esta parte tem outra grande legoa de distancia. Parte do Poente com terras do concelho de Lousada (que he da comarca e ouvidoria de Barcellos e da Serenissima Caza de Bragança) e tambem com a Honra de meinedo e concelho de Penafiel (termo e comarca da cidade do Porto), pella qual parte tem outra grande legoa. Parte do Sul com o concelho de Porto-carreiro, termo e comarca da cidade do Porto, e com a dita villa de Canavezes, athe chegar ao dito rio Tamega, por onde tem outra legoa grande. E assim vem a ter en circuito este concelho sinco legoas ordinarias ou quatro grandes; e em direitura, de Nascente a Poente pelo meio, tres legoas; e de Norte a Sul, duas e meias; pello que he concelho grande, mas montanhoso; derivado o seo nome de huma alta serra e castello, que houve antiguamente, na freguesia de Santa Maria de Fregim, de que faremos adiante menção. 2. O mais antiguo Senhor, que achamos desta terra e castello, he D. Mem Vie-gas e Sousa, por merce do Conde D. Henrique (a quem servio), pellos annos de 1112” (…)

É notória a importância da Freguesia de Fregim, como local estratégico, ligado ancestralmente a vias de comunicação importantes, quer para os viajantes pa-cíficos e romeiros, quer para quem nos queria atacar e tomar. Assim, a exis-tência de um Castelo não causa surpresa, dado que, na Capela de Santa Cruz, tem-se uma perspetiva privilegiada de todo o vale que o Tâmega enforma, entalado pelas Serras do Marão e da Aboboreira, e pela nossa Amarante. Craesbeek, narra assim acerca da Freguesia de Santa Maria de Fregim e que também pertence à Ordem de Malta: (…) “2. Tem esta igreja 5 cappellas filliaes, a saber: Nossa Senhora do Souto; São Sebastião; São Jorge, que hoje esta demoida; São Miguel o Anjo, na quin-ta de Gonçallo Pinto, homem honrado desta freguesia; e São Miguel, na quinta de D. Catherina. Em hum alto monte estão vestigios que nelle estivera hum castello, que os mouros fizerão, e inda se achão pedras lavradas e algumas pias e no outeiro alguns buracos, a modo de dornas, aonde disem que os mouros deixarão seos thesouros, quando os deitarão fora de Portugal; e he este monte muito aspero e inhabitavel e lhe chamão ao citio o castelo de Santa Crus, donde se derivou o nome deste concelho.” (…)

Neste excerto do texto pode-se constatar a antiguidade das diversas capelas que existem em Fregim e a existência da Capela de São Jorge à data demoli-da, não restando, hoje em dia, vestígios da sua existência. Quando frequentei a Escola Primária em Louredo, sempre se falava deste cas-telo de Santa Cruz de forma mágica, com túneis para o Rio Tâmega, tesouros escondidos, mouras encantadas, etc. 

Penso que é um Património que Amarante deveria preservar com muito mais cuidado e afecto, promovendo estudos e teses académicas sobre este local que tem muita história e muitas estórias guardadas da nossa ancestralidade. Para terminar, deixo aqui uma palavra de gratidão para o meu colega e Amigo, Dr. Pedro Carvalho, Professor de História do Agrupamento de Escolas de Celorico de Basto, que muito me tem ajudado na procura de documentação histórica relevante sobre Amarante e não só.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

CASA DA VENTUZELA

SARA MAGALHÃES
O mês de Agosto, para mim, é um mês sem tempo e com tempo para tudo: de encontros, de viagens, de férias, de pôr conversas em dia e o sono também.

Nestas viagens e conversas dei por mim numa casa de uma amiga, onde me perdi no tempo e no espaço, onde a paisagem, o clima, a tranquilidade me fizeram lembrar que a vida é tão boa e tão especial. 

Aprende-se a disfrutar do aqui e o agora e não importa o amanhã.Sabe tão bem sermos recebidos de maneira única e especial e sentirmos pedaços da historia do espaço onde estamos.

Por esse motivo quero dar a conhecer esta casa: Casa de Ventuzela.

A Casa de Ventuzela é uma quinta com casa senhorial situada no lugar de Ventuzela, freguesia de Vila Cova, concelho de Penafiel.

Esta casa é do séc. XVIII (1792) e tem grandes tradições culturais, arquitetônicas e históricas. Foi construída e habitada pela mesma família, onde foi transmitida de geração em geração até à atual.

Esta casa, pode dizer-se que foi o maior empregador agrícola durante anos de Vila Cova. A Ela pertenciam 12 quintas todas no concelho de Penafiel, 6 das quais em Vila Cova.

Mas o tempo, alterou o curso da história e hoje permanece a casa, transformada em Espaço de Turismo de Habitação em espaço rural.

Dou valor ao turismo rural porque valoriza o património cultural e natural e principalmente porque pratica a hospitalidade.

Gosto de casas, casas que me acolhem e me deixam Ser!


Com a Altura da Idade a Casa se Acrescenta

Com a altura da idade a casa se acrescenta. 
Não é que aumente a quantidade ao espaço. 
Mas, sendo mais longínquos, o desapego pensa 
maior distância quando se fica a olhá-lo. 
Ou, se quiserem, uma realeza 
se instala à volta dessa altura de anos, 
de forma a que os objectos apareçam 
na luz de quase já nem os amarmos. 
Então a casa distende-se na intensa 
inteligência de estarmos 
a ver as coisas amarem-se a si mesmas. 
Ou com a forma a difundir seu espaço. 

Fernando Echevarría, in "Figuras"

terça-feira, 25 de agosto de 2015

O PARADOXO DA VERDADE

A verdade?!

Querem-na?

Violem as flores, arrasem os campos, escavem trincheiras e comprem armas, profanem sepulturas, mutilem
REGINA SARDOEIRA 
cadáveres.

Verdade-conceito, verdade-morte, moribunda, recém-nascida, treva, céu-aberto!

Verdade-coerência. Verdade-acordo. Verdade-contradição. Verdade-fenómeno. Epifenómeno. Númeno. Arquétipo. Dicotomia. Transe. Esquizofrenia. Paranóia. Sonambulismo lúcido. Lucidez onírica. Verdade-símbolo, que tanto pode ser como não ser, estar como não estar. Verdade – Homem: medida de todas as coisas. Medida que a si própria não foi capaz de medir, medida que a mentira corrompeu, medida cujo metro não tem padrão, arcaboiço impalpável, flutuante, cujo esqueleto chocalha em qualquer esquina, com qualquer vendaval.

Homem. O idêntico. O uno. O mesmo. Aquele que se move, aquele que tem pés que o levam rumo ao destino que ele próprio estabeleceu, arrogantemente, desfrutando um destino não desfrutável. Homem suicida correndo atrás da nuvem que ignora para onde vai, que segue o homem que por sua vez a segue e é seguido. Como um espantalho pendura-se nos campos de trigo, de braços abertos, espanta pássaros inexistentes, que apesar disso comem todo o trigo do qual, apesar disso, os homens fazem pão.

A verdade, não se esqueçam da verdade, ouviram? Procurem-na.

Vêem ali aqueles baús carunchosos, aquelas malas ferrugentas, aqueles sacos cheios de bolor? São, sem dúvida (porque haveríamos de duvidar?) os fiéis guardiães da verdade. Procurem-na, abram as malas, violem os baús, rompam os sacos.

Perguntam-me pela chave? Ah, não existe, aliás, nem fechadura, já deram conta?

Mas violar é terrível, não é? Só que eu digo-vos: a verdade é aquilo que vedes ali.

Minto?! É claro que minto, não estou a ver nenhum baú e, ainda que o visse, de que serviria vê-lo, se vós não vedes?

Perdoai-me. Podeis?

Não, é claro, ninguém perdoa ser enganado: por isso a vida é um eterno rancor, uma eterna discórdia de ofendidos em busca do ofensor, de ultrajados sem bode expiatório.

Ah, já lá volto! Foi aquela teia de aranha que me enredou e já a aranha me pedia desculpas. Na sua fome viu-me mosca, eu fui a verdade do seu apetite. Tal como vós na vossa fome de certeza, vedes a certeza em qualquer miragem, a lua cheia em qualquer charco estagnado.

Chegou o tempo da lua cheia, perfumada e dúctil, espinhosa e plena de cetim!…Lua cheia… Cheia de quê a não ser da ilusão branca, do conceito aleatório, do leite, sim, do leite que o úbere das vacas rejeitou num esguicho e projectou no céu a via láctea. Ah, lua, rejeito-te. És falsa, quarto minguante, pequeno halo no negro do céu, lua-planeta, mas zero, zero, zero…

A verdade, não se esqueçam dela ouviram?

Tenho ali paradoxos infindáveis e todos eles exalam perfumes estonteantes, verdades irrefutáveis. Escavem, escavem sempre. O mapa do tesouro escondido aponta para baixo, não acreditem naqueles que levantam o dedo… é debaixo que nasce a fonte.

Sabem por que razão os homens lutam, porque discutem, porque colocam entre si fronteiras e grades? Ah, é uma simples brincadeira, não os tomem a sério, brincar é a única ocupação que resta e viver, afinal, é um luxo.

Um luxo!

Ah, vaidosos, arrogantes, comprastes essas vidazinhas crista de galo, corno de touro enfurecido? Comprastes?

Claro, só que a moeda era falsa, como toda a moeda, aliás: fostes iludidos pelo brilho, qualquer brilho ilude, o brilho é nada.

Mas o meu tema é só, unicamente, a verdade. E a verdade muda, muda, muda.

VERDADE, prestai atenção.

Este V de verdade chama-se letra, é a 21ª letra do alfabeto, até. Estou a ser exacta? Pois. O V existe e tanto existe que lá está, alinhado entre o U e o X. É importante. Tem um lugar. Soa. Ressoa. Sibila.

Chama-se também consoante e o meu dicionário diz que significa conveniente, logo deve significar porque um dicionário é… UM DICIONÁRIO, uma autoridade, tem a verdade, e o V é a primeira letra da verdade.

Começamos bem, como vêem. O V é conveniente – convém – é coerente, existe, como duvidar? Ora reparem: V. Pronunciem. Pronunciaram? Que tal? Podem acaso duvidar da conveniência absoluta, irrefutável, da letra V sem a qual nenhuma verdade seria possível?

Continuo?

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

FAÇA SOL...

CLARA CORREIA 
Não raras vezes no pino do Verão, em Agosto, um amigo meu que vive em Sintra, artilha-se com indumentária de Inverno para ir, tão só, passear o cão à noite; quem por lá mora ou quem conhece os caprichos meteorológicos da espécie de micro-clima sintrense não estranhará. Um destes dias, neste mesmo mês de Agosto, gracejei com ele mais o seu blusão de penas e gorro, dizendo-lhe que, dessa forma estaria a fazer um estágio térmico que lhe seria útil daqui a três meses, no máximo … quando estivéssemos quase no pico do Inverno. De imediato, estaquei mentalmente com a espontânea retrospectiva mental desde o final da última estação fria até ao presente avançado estival, constatando o ápice que me parecera este pedaço de ano. Se o Tempo é, realmente, psicológico (e é-o, sobretudo), não há, certamente, época do ano mais a mando da psicologia do Tempo do que esta … ilusoriamente, de muito tempo diário de sol e tempo, a saber sempre a pouco, de lazer e, eventualmente, tempo para algum afazer adiado para as almejadas férias de Verão.

“O que é bom, passa depressa” é uma das incontestáveis verdades universais … deste universo sazonal de veraneio e de qualquer outro universo que nos envolva e nos extraia, sem que o possamos controlar, as nossas melhores emoções. “O tempo, ainda que os relógios queiram convencer-nos do contrário, não é o mesmo para toda a gente.”, afirmou José Saramago numa das suas obras … outra verdade acerca do ditador a cuja tirania, embora ninguém escapando, é acrescentada a arbitrariedade da subjectividade, a única forma de condescendência que o Tempo tem para connosco, à sua mercê relativamente apenas se o fizermos ser o que fizermos dele. Só assim, pois! Só assim podemos viver conscientes da dádiva do “agora”, na medida em que, como consta ter dito Fellini, “ … a morte se esconde nos relógios.”, faça chuva ou faça sol, seja Inverno ou Verão, este ou outro … a que o Tempo nos conceda o privilégio de assistir.

domingo, 23 de agosto de 2015

À BOLEIA DE MIM

MIGUEL GOMES
Saí e ele já lá estava. Apesar do orvalho nos carros e na relva do jardim, permanecia sentado no pequeno muro que mais não é que berma, com as pernas flectidas, a cabeça a olhar para o chão e, com um pau, fazia pequenos desenhos na gravilha. Assim que saí do passeio e pousei o pé na gravilha, mesmo perdido nos desenhos e pensamentos dele, não pode evitar de me ouvir, levantou a cabeça na minha direcção e sorriu muito. Acenou-me e gritou

- “Ei!”

como se eu não o pudesse ver ou ouvir dos dez metros que me separavam dele. 

Tem corpo, cara, olhar e sorriso de criança, espera por mim onde quer que eu vá, onde quer que eu esteja, perdi a memória de quando o conheci, até mesmo de como o conheci. Aparece aleatoriamente, segundo os meus padrões, e conta-me histórias que depois escrevo, num qualquer caderno, em prosa, poesia ou chamemos-lhe o que entendermos. Por vezes pede-me que mude de direcção quando conduzo, já nem pergunto porquê, lá terá as suas razões, mas nem assim consigo, à boa maneira de psicologia invertida, 

- “mas que tem que ter razões?” pergunta-me ele a rir, naquele jeito de quem tem sempre um rebuçado de caramelo na boca, fazendo pequenos barulhos com os lábios para não deixar cair o suco. E mesmo quando respondo que a razão dele é dizer que nem tudo tem que ter razão, lá vem ele com as mesmas expressões e o mesmo encolher de ombros, - “e gostaindes de ter razão...”.

Quando cheguei ao carro, já ele me agarrava o casaco, - “onde vais?”

pergunta enquanto tento equilibrar os cadernos, carteira, telemóvel e chaves do carro. Meto a chave e abro as portas, troçando dele com o meu silêncio, repito a pergunta que ele me fez e ele ri-se, muito, como só as pessoas com olhar e sorriso de criança conseguem. - “Anda daí, vou ao ensaio do grupo”

Entro no carro, juntamente com ele, coloco o cinto de segurança e ele pede-me para ligar o limpa pára-brisas, o orvalho não o deixa ver a estrada e bem que se esforça!, lutando contra o cinto de segurança, e esticando o pescoço para ver por entre as zonas do vidro que ainda não ficaram embaciadas. Ligo o limpa pára-brisas e ele ri, acompanha o movimento com a cabeça e repete o mesmo som que as escovas semi-gastas (quer dizer, nem novas, nem gastas, a modos de assim-assim) fazem, como que acordam com preguiça.

Arranquei e vi-o pegar num dos cadernos , começou a desfolhar e a olhar para as letras, - “vais enjoar” disse-lhe automaticamente, porque como enjoo, deduzo que também ele enjoe, mas paro a tempo, ainda não tinha acabado de dizer a letra “r”, já ele me olhava com os olhos esbugalhados e contendo uma gargalhada. A troca de olhar foi o suficiente para nos rirmos durante grande parte do caminho. Há piadas que só fazem sentido com determinadas pessoas, em determinados momentos, com determinados indeterminados da vida.

Saio da autoestrada e ele, muito sério, adverte-me - “diz boa noite à senhora da portagem” antes de parar o carro tenho já na mão o cartão multibanco e o ticket, enquanto abro o vidro. - “boa noite” e sorri para a senhora. 

Tinha uma cara cansada, antipática, revoltada e triste, envolta numa pequena nuvem negra. Entrego o ticket e ele mete a mão no bolso, tirando um pequeno berlinde de algodão doce. Apertou-o e o tempo parou, eu estava imóvel, sem respirar ou pestanejar, conseguia-o ver mas sem poder mexer-me. 

Desapertou o cinto de segurança, pouso os meus cadernos no banco de trás, abriu a porta e dirigiu-se à senhora. Até o carro que passava na Via Verde estava imóvel. Abriu a porta e colocou-se por detrás dela. Fechou os olhos e sorriu, antes de fazer o habitual: soprou na direcção da nuca da senhora até aquela pequena nuvem escura desaparecer. Saiu da cabine da portagem, fechou a porta e tornou a entrar no carro, acomodando-se. Depois suspirou e levou à boca o bocado de algodão doce, altura em que tudo retomou o movimento usual, o carro passou na Via Verde e a minha respiração voltou a processar-se normalmente. 

A senhora, quando me entregou o recibo e o cartão multibanco sorria, retribuindo-me o - “boa noite, obrigado e boa-viagem” Eu sorri, ele também, e arranquei.

Ao entrar no ensaio ele ficou à porta, foi sentar-se sobre uma pilha de folhas de plátano que o vento, talvez por preguiça, não espalhou durante o dia.

Saio do ensaio e ele ainda lá estava, repetindo o mesmo procedimento, acenou-me como se não me visse há décadas, repetiu o mesmo ritual e fez-me as mesmas perguntas - ”onde vais?” - “sabes para onde vou, porque perguntas sempre a mesma coisa?” retribuí, a sorrir, vendo se pela primeira vez o apanhava sem resposta, mas ele sorriu e deu-me a mão - “eu sei para onde vais, é só para ver se tu também sabias...” O orvalho fez-me tiritar de frio, entramos no carro e fiz-me à estrada, ou seja, aos cerca de 700 metros que distava de casa onde, qual bela adormecida, a Ana dormia. Entrei sem fazer barulho, ou com o menor possível, pousei as tralhas e aqueci uma chávena de leite - “também queres?” perguntei por instinto, e por instinto foi que desatámos os dois, novamente, a rir. Há cada pergunta. Sento-me ao computador, ligo-o, olho para a folha branca e confidencio-lhe - “sabes, gostava de escrever alguma coisa diferente, mas não sei o quê” Só consegui perceber um pequeno berlinde de algodão doce na mão dele e um sorriso de criança, mostrou-o e disse - “fecha os olhos” Quando os abri, ele sorria para mim e com a cabeça apontou para o monitor, fazendo-me olhar também. Encontrei o que vejo agora mesmo, algumas linhas escritas, sem que me lembrasse de as ter escrito. - “Por agora chega”, engoliu o pequeno berlinde de algodão doce e deu-me um abraço.

Por momentos senti a vontade de lhe perguntar quem era, creio que nem o nome recordo. Vejo passar nos meus olhos um pequeno filme, de quando era um pequeno rapaz, e um outro pequeno rapaz, quase transparente como uma pequena nuvem, se desprendia de mim. Seria eu mesmo, em criança, a minha criança, o meu eu?

- “Até já”, concluiu, enquanto corria em direcção à parede e a atravessava, sorrindo como sempre...

sábado, 22 de agosto de 2015

CONSULTA DO VIAJANTE, UMA EXIGÊNCIA PARA QUEM VIAJA.

ANTONIETA DIAS 
A consulta do viajante destina-se fundamentalmente ao aconselhamento de medidas preventivas que devem ser adotadas, antes, durante e depois da viagem.

Esta consulta deve ser efetuada pelo menos, 4 a 6 semanas antes da partida, é realizada por médicos com competência para a sua efetivação, que se responsabilizam por prestar todo o tipo de cuidados médicos especializados e fornecer as recomendações, relacionados com os riscos para a saúde, nos países para onde os viajantes pretendem deslocar-se, quer a sua viagem se destine ao lazer ou ao trabalho.

Dentro do que é preconizado na consulta, faz parte a avaliação das condições de saúde da pessoa que pretende viajar, sendo os conselhos personalizados de forma específica de acordo com as características dos viajantes (adultos, crianças, grávidas, idosos) que padeçam ou não de doenças crónicas e que possam ou não necessitar de terapêutica. 

Estão incluídos no protocolo desta consulta, as vacinações (febre amarela e todo o tipo de vacinas obrigatórias ou recomendáveis nos países de destino), as prescrições medicamentosas para a profilaxia da malária ou outras doenças, bem como a abordagem e aconselhamento de medidas antecipatórias, designadamente no que se refere aos cuidados a ter com a exposição solar, com as medidas de higiene individual, o modo como devem utilizar as bebidas (informação sobre o risco e prevenção de doenças transmitidas pelas águas e alimentos contaminados) e ainda as atitudes a tomar perante a presença de uma toxinfecção alimentar a fim de obter a resolução da sintomatologia (vómitos, diarreias) de forma célere.

Nesta consulta recomenda-se, elabora-se e prescreve-se um “kit”de viagem (farmácia individual do viajante).

A prescrição da farmacoterapia, dependerá das necessidades individuais de cada viajante, depois de ponderados todos perigos/riscos existentes nos países de destino.

Os certificados internacionais das vacinas (ex. febre amarela) serão emitidos sempre que haja necessidade à imunização obrigatória.
A vacina contra a febre amarela é obrigatória nalguns países, sem a qual os viajantes não estão autorizados a entrar. Esta vacina é também recomendada noutros países, fazendo-se o aconselhamento e a sua ministração.

A vacinação deve ser efetuada preferencialmente com uma antecedência de trinta dias, sendo o mínimo recomendável de dez dias.

A periodicidade da vacina da febre amarela é de dez anos, sendo que apenas se encontra disponível nos centros estatais com poder para emitir os certificados internacionais da vacinação e que se encontram dispersos pelo País.

Existe um regulamento internacional das vacinas obrigatórias para cada país, sendo a vacina da febre amarela a que é mais exigida internacionalmente, sem a qual não poderá ser emitido o respetivo certificado comprovativo da vacinação ficando assim inviabilizada a entrada do viajante no país para o qual esta vacina é exigida.

Contudo, outras imunizações poderão ser obrigatórias nas quais se incluem a poliomielite, ministrada em dose única no adulto, mesmo que já tenha sido ministrada em criança.

O tipo de vacinas impostas para a entrada nos diversos países vai depender da legislação em vigor destinada à autorização da entrada de passageiros (turistas, executivos ou trabalhadores).

A título de exemplo temos o caso da Arábia Saudita que impõe a obrigatoriedade da imunização da poliomielite se o viajante vem de um dos quatro países onde o vírus é endémico(Índia, Nigéria, Afeganistão, Paquistão) e a imunização contra a meningite meningocócica.

O esquema vacinal será decidido e aconselhado na consulta, tendo em consideração os locais para onde a pessoa pretende viajar, porém, podemos já acrescentar quais são as vacinas mais prescritas: tétano, hepatite A, hepatite B, febre tifóide, raiva, gripe, cólera, difteria e encefalite japonesa.

São ainda fornecidas informações sobre as condições de assistência médica existentes no país, recursos, condições de segurança e direções dos consulados com o objetivo de esclarecer detalhadamente os viajantes sobre as instituições que poderão ser úteis durante a sua permanência nos países do destino.

Faz parte também dos objetivos da consulta a realização de uma observação médica pós viagem, destinada a fazer o diagnóstico de eventuais doenças adquiridas no local do destino, com avaliação global do bem estar do viajante e para o controlo sanitário das pessoas que permanecem durante períodos prolongados de tempo no estrangeiro onde o risco de contrair doenças é elevado.

Sempre que uma pessoa pretende viajar deve dirigir-se a uma instituição de saúde (pública ou privada), para se submeter ao exame global de saúde e para que lhe sejam fornecidos todos os conselhos sobre os cuidados que devem ter a fim de prevenirem o aparecimento das doenças.

Uma vez escolhido o destino, os viajantes devem providenciar a efetivação da consulta do viajante, o mais rapidamente possível.

É nesta consulta que os utentes colocarão todas as suas dúvidas, para as quais os médicos estão habilitados a responder, explicando os procedimentos a adotar, fazendo o aconselhamento necessário, dirigido sempre para a adoção de atitudes e medidas preventivas destinadas a colmatar os riscos da viagem.

Sabe-se que anualmente cerca de 8%, dos utentes que viajam procuram assistência médica por problemas relacionados com a própria viagem.

Importa, contudo referir que a grande maioria das pessoas que viajam não sofre qualquer doença, porém isso não exclui a necessidade de efetivarem esta consulta.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

VIII ENCONTRO DE BLOGUEIROS DO PLANALTO MIRANDÊS

TERESA ALMEIDA SUBTIL
Sabia que, a partir de 1999, Portugal passou a ter duas línguas oficiais? Reconhecida, politicamente, pela Lei 7/99 (aprovada por unanimidade), a língua mirandesa subiu ao lugar a que tinha direito, enriquecendo o nosso património imaterial.

Mercê de estudos e acordos vários, chegou-se a uma convenção ortográfica que serve de apoio a quem nela se queira expressar, na escrita ou na oralidade. O mirandês é falado no concelho de Miranda do Douro, entrando ainda nalgumas aldeias do concelho de Vimioso.

Sabia que a língua mirandesa é leccionada no Agrupamento de escolas de Miranda do Douro, passo que representa um forte incentivo para que esta língua (representativa da identidade de um povo), cresça e evolua?

Conhecida como língua “amerosa" e "campechana”- na verdade - já se tinha mundializado através da canção. De sonoridade melódica, faz-se eco nos dedos perdidos dos poetas.

Apraz-me dizer aqui que eu sempre a cantei e bailei, desde que vim dar aulas neste concelho. Foi e é uma verdadeira paixão.

O grupo de folclore de professores do planalto mirandês (do qual faço parte) levou pela primeira vez as danças mistas à Índia e, com elas, a língua mirandesa.

Sabia que, no mês de Julho, há um festival em que podem participar todos os que quiserem cantar em mirandês?

Sabia que, no dia próximo dia 22, se realizará o VIII Encontro de Blogueiros do Planalto Mirandês?

A ideia deste encontro de blogueiros nasceu debaixo duns carvalhos e cresceu à volta duma posta, duma fogaça e duma pinga de vinho.

Na verdade, ainda eu não tinha entrado para este grupo e já o tema me fascinava. Já via a cultura a ser pesquisada e partilhada pelos caminhos das terras do planalto.

Se não formos a árvore que vai fundo aos fios de seiva com todos os elementos indispensáveis à vida, se não formos a ave que respira a liberdade de sentir, de dizer, de cruzar fronteiras físicas e mentais; então de que serve este fôlego de vida que tão incrivelmente nos foi dado?

É um dia, do meu ponto de vista, de grande aprendizagem.
Há, também, muito para desfrutar no blogue “Froles Mirandesas” acerca destes invulgares encontros.
O pendão foi o chamariz de Thiegui (mordomo principal em 2014), o ponto fulcral do encontro em Cicouro. Pega-se numa ponta e a história vai-se desenrolando …
Este ano tenho um osso do metatarso partido e dói esta impossibilidade em calcorrear caminhos. As canadianas ainda são, para mim, empecilhos. Mas não faltarei, não sou capaz.

Confesso que gostaria de estar no recital de guitarra de Dinis Meirinhos – logo à entrada, na igreja matriz -, um neto da terra, gostaria ir ao forno, às cruzes dos caminhos, à fonte do cerejal e à igreja do Naso. Ah, e nos poemas atirados ao ar (em mirandês, lionês e asturiano), quem não gostaria de estar?

Talvez consiga estar presente nas palestras sobre pendões e carris mouriscos, temas da terra e das gentes, temas a ressumar história.

Talvez consiga estar no “taquito” e na merenda em casa da mordoma principal e no almoço de carne assada na brasa, por baixo dos carvalhos, a relembrar o 1º encontro. Juntarmo-nos a comer é, realmente, um ato sagrado, disse num desses preciosos momentos em que Amadeu Ferreira pensava alto, connosco (como um raio de luz, encaixou-se-me aqui a última ceia de Cristo). Era sempre simples e alto o pensamento deste blogueiro, um líder natural, como o malmequer que rompe a dureza do chão e nos diz que a luz existe.

A língua mirandesa começou a ser divulgada na Internet (blogues de cariz literário e com objectivos de estudo e desenvolvimento), talvez a partir de 2007. Este encontro anual nasceu, naturalmente, da necessidade de união por uma causa comum e trouxe como mais-valia o convívio e a amizade entre os participantes. É um encontro aberto a todos os que desejam conhecer de perto a língua e cultura mirandesas, e é certo que, nestes encontros, vamos caminhando com quem vive abraçado a ela. É, com avidez, que bebo cada palavra, cada pedaço da arquitectura e da história do planalto, histórias curiosas de famílias, toponímia, arte sacra, enfim: registos que guardam as memórias e o saber das gentes do planalto mirandês.

É uma paixão que, como todas as paixões, necessita de ser alimentada. Este ano prosseguiremos na Especiosa e Naso.

Insiro aqui um poema, em mirandês, um dos que irá ser dito pelos caminhos da aldeia da Especiosa - Miranda do Do Douro.

Assomadeiros resbalinos

Ardo ne l deseio de bolar,
anque saba q´hai assomadeiros resbalinos,
altas faias an que puoda amouchar.
i nuobos i retrocidos caminos que l suonho percura
i anque l miu pensar
quede suspenso i tremble mirando l peligro,
sien la palabra q´amante
la berdade i l resfuolgo de l miu sentir.


Tengo ganas de bolar.
Esta paixon ye cumo un riu de querer perfundo,
defícle de secar. Chama-se lhéngua mirandesa.
Solo se ousa quando se sinte la bertige de la queda,
mas ye ende que l bolo lheba gozo i plenitude.


Talbeç seia un bolo de colo, buído na calor
I nos beisos de la fala
quando inda nun se sabe falar. Cuido you
que quien me dou de mamar, dou-me, tamien,
este deseio, sien frenos, de sbolaciar.


Traço l risco nas alturas,
percuro fuorça nas alas que la curjidade me dou.
Nun quiero quedar a meicamino,
quiero antrar na sonoridade i na beleza deste falar.
La felecidade stá an ateimar.


Mirantes escorregadios


Ardo no desejo de voar,
ainda que saiba que há mirantes escorregadios,
altos penhascos em que possa encalhar,
e até novos e retorcidos caminhos que o sonho procura
e onde o meu pensamento
fica suspenso e treme ao olhar o precipício
sem a palavra que diga
a verdade e o ímpeto do meu sentir.

Tenho fome de voar
por dentro da tua simplicidade e beleza
Esta paixão é como um rio de querer profundo,
difícil de secar. Chama-se língua mirandesa.
Só se ousa quando se sente a vertigem da queda,
mas é assim que o voo ganha gozo e plenitude.


Talvez seja um voo de colo, bebido no calor
e nos beijos da fala
quando ainda não se sabe falar.
Quem me deu de mamar, deu-me, também,
este desejo, sem freios, de esvoaçar.


Traço o risco nas alturas,
Procuro força nas asas que a audácia me deu.
Não quero ficar a meio caminho
Quero entrar na sonoridade e na beleza deste falar.
A felicidade está em ousar.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

TRIBUTO AO POETA AMARANTINO A. MAGALHÃES

A. MAGALHÃES

HÉLDER BARROS 
Uma palavra para um homem de palavra e das palavras…

Conheci o Sr. A. Magalhães no início dos anos oitenta, apresentado pelo meu falecido Pai, num Café de Amarante. O meu Pai adorava falar com os seus amigos e conhecidos, enquanto tomava o seu cafezinho e, quando na presença de um bom parceiro de conversa, esta fluía como a água de um rio que corre livremente para a sua foz. Os temas sucediam-se em catadupa e, eu, enquanto jovem adolescente, ficava fascinado com a minha ignorância sobre tudo o que ouvia e, concomitantemente, com a sapiência de alguns destes amigos do meu Pai. O Sr. A. Magalhães tinha um manancial de temas, em que dissertava sempre com uma profundidade e seriedade intelectual que, me marcaram de forma indelével.

Confesso que a primeira impressão que tive deste Senhor, não foi muito simpática. Homem austero, algo sisudo, aparentemente pouco simpático, pela pose séria, compenetrada e de introspeção, que sempre apresentava. Contudo, com o desenrolar dos encontros, a minha impressão inicial foi totalmente alterada. Trata-se de um homem simples, de trato fácil e delicado, dedicado à sua causa maior: a escrita. Durante os seus provectos 91 anos de existência, grande parte dos seus tempos de lazer, foram dedicados a essa sua nobre paixão literária. 

Lançou recentemente um livro de Poesia, cujo título “Nasci à beira de um rio”, diz muito de quanto pode o Homem ser marcado pela sua geografia nativa e pela sua ecologia existencial. Recentemente, numa conversa que mantive com ele, o que é sempre um enorme prazer, falávamos no processo de criação literário, designadamente, na Crónica, à qual dedicou grande parte do seu labor e inspiração literária. Trata-se, segundo o Sr. A. Magalhães, de um exercício de construção/desconstrução, criação/amputação, que exige muito do autor.

E, para um homem que acordava todos os dias pelas sete horas da manhã, que apanhava diariamente a automotora na linha do Tâmega em Vilarinho, Vila Caiz - que lhe faz hoje em dia muita falta para se deslocar a Amarante -, e, que retornava a casa cerca das sete horas da tarde, facilmente se infere que o seu processo criativo exigiu sempre uma inspiração, com muita transpiração, pelas noites e fins de semana, ao longo deste já longo trajeto de vida. Anos e anos de uma dedicação extrema à Arte da Escrita, quase sempre em forma de Crónica, em muitos jornais e publicações, dos quais destaco: “A Flor do Tâmega”.

Quando o questionei no decorrer de uma das conversas que mantivemos, sobre o facto de a sua inspiração nunca lhe fenecer, foi muito interessante a sua abordagem a essa questão. Estávamos na sua casa em Passinhos, Vila Caiz e o Sr. A. Magalhães referiu-me o seguinte: Quando se gosta de escrever, no processo criativo qualquer coisa por mais simples e improvável que possa parecer, pode dar origem a infindáveis processos de construção de ideias à volta dessa “coisa” que, quase sempre, se usam como base de partida para viagens criativas alucinantes e cujo transporte é o fervilhar de ideias que emerge na mente inquieta do autor e que passam para o papel, muitas vezes, num ritmo frenético, acelerado e imparável.

Outro aspeto muito interessante que pude constatar no seu trajeto de vida tem a ver com a sua coerência, no seu posicionamento sociopolítico. Nas suas crónicas surge muitas vezes a necessidade de expressar o seu posicionamento político marcadamente de esquerda. Mas, desiluda-se quem pense que é mais uma pessoa de esquerda, a escrever sobre os problemas do quotidiano social, lançando “soundbites” mais ou menos gastos. O Sr. A. Magalhães procura sempre uma lógica no seu pensamento que tenha apego à realidade que o rodeia, à sua ecologia de vida… há para aí muita gente que só é de esquerda, até estar em posição de superioridade. Depois é tudo uma autocracia do género: “quem não é por mim é contra mim”, uma esquerda aveludada, sem a dialética e a abertura de ideias que o Sr. A. Magalhães sempre preconiza nas suas Crónicas brilhantes. Conheci dois seres humanos extraordinários que me poderiam convencer a seguir o seu posicionamento político, pelo seu exemplo de vida: Eng. Guilherme Penaforte Campos (Marido da minha Tia Júlia do Convento de Mancelos) e o Sr. A. Magalhães! Infelizmente, não me foi possível estar presente no lançamento deste há muito esperado livro, cujo autor é o Sr. A. Magalhães. Mas não podia deixar passar este momento, que é apenas mais um culminar de um projeto de um homem de mil ideias… afinal, tem sempre tanto para nos contar, com um relevo cultural e rigor literário, exemplares. Mas, antes do Escritor, queria homenagear o homem, o enorme ser humano que o seu pequeno corpo alberga. Daí, nada melhor do que levar a minha filha Beatriz a conhecer um Poeta, um Homem da escrita, um cronista imparável, um Homem que consciente da sua mundividência, do reflexo da sua ecologia de vida no seu ser, teve no Rio Tâmega entalado nas Serras do Marão e da Aboboreira, uma grande fonte de inspiração intelectual e até parte de um sentido para a sua vida! Afinal o Sr. A. Magalhães nasceu num Rio livre que, aos poucos foi sendo aprisionado pelos homens, facto que muitas vezes o levou a escrever sobre essa sua dor existencial. 

Bem haja, Poeta A. Magalhães!

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

AJUDA HUMANITÁRIA

SARA MAGALHÃES
Prestar ajuda a alguém é responder a uma necessidade do ser humano. Pretende-se com a ajuda humanitária salvar vidas, aliviar o sofrimento e manter a dignidade humana.
As crises humanitárias são provocadas por desastres naturais, mas mais preocupante são os desastres provocados pelo Homem.

São os seres humanos que prestam ajuda a outros seres humanos. E qual a razão que move milhares de pessoas, com as profissões mais variadas, a baixarem o seu pais de origem e a embarcaram num espírito de missão e de voluntariado para prestar auxilio humanitário em países em guerra?

O que move as pessoas a porem em risco a sua própria vida para ajudarem outros?

E de onde nos vem esta capacidade de entrega e de amor incondicional pelo outro?

O mundo actual está marcado por incontáveis situações de sofrimento, de dor, de morte. 

Esta realidade exige uma conversão que se concretiza em acção. Esta acção será a procura da justiça básica: a justiça da verdade. E procurar a verdade significa caminhar para um reconhecimento mais profundo da solidariedade: o amor, entendido como agapê, na entrega de nós próprios ao outro e pelo outro, reconhecer que, como dom gratuito e não necessário de um Deus-Amor, existimos para nos darmos aos outros e pelos outros, significa reconhecer a mais profunda verdade e justiça da nossa existência.
Temos, dentro de nós, desde o primeiro momento da nossa existência, uma centelha divina, de infinito amor. 

Por isso temos a responsabilidade de dar muito mais do que aquilo que recebemos. 

O Papa Francisco escreveu no dia de Angelus, 1/09/2013 a propósito do conflito na Síria: 
"Que não se poupe nenhum esforço para garantir a ajuda humanitária às vítimas deste terrível conflito, particularmente os deslocados no país e os numerosos refugiados nos países vizinhos. Que os agentes humanitários, dedicados a aliviar os sofrimentos da população, tenham garantida a possibilidade de prestar a ajuda necessária.

O que podemos fazer pela paz no mundo? Como dizia o Papa João XXIII, a todos corresponde a tarefa de estabelecer um novo sistema de relações de convivência baseados na justiça e no amor.

Possa uma corrente de compromisso pela paz unir todos os homens e mulheres de boa vontade! Trata-se de um forte e premente convite que dirijo a toda a Igreja Católica, mas que estendo a todos os cristãos de outras confissões, aos homens e mulheres de todas as religiões e também àqueles irmãos e irmãs que não crêem: a paz é um bem que supera qualquer barreira, porque é um bem de toda a humanidade."

Gratidão infinita a todos que prestam ajuda humanitária espalhados pelo mundo.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

PULCHRUM PAUCORUM EST HOMINUM

REGINA SARDOEIRA 
Rodeados de vazio imponderável, estado da hora presente, tentamos de modo selvático arrimar a um porto nosso onde o valor se imponha e não sejamos perseguidos por fantasmas ou vultos de pedra erigidos em paradigma. O tempo, hoje, é de confusão e paradoxo, no contexto do qual a estatura íntima do ser humano se dissolve em vida vegetativa e as plumas e lantejoulas da exterioridade ocupam o lugar do pensamento, da reflexão, do génio. A personalidade criativa e genial sofre muito nos tempos que vivemos; também sofreu outrora – o sofrimento do génio é de todos os tempos – mas, aparentemente, havia núcleos restritos onde o génio era acolhido podendo debelar desse jeito a sua solidão intrínseca. Curiosa esta solidão, apanágio e fulcro da mente genial e contudo em apelo constante ao outro, tendendo sempre em última instância para o acto comunicativo, para a necessidade do derramamento e da compreensão do próprio derramamento! Porém, nos dias que agora vivemos, não existem núcleos de elite capazes de acolherem o génio, outorgando-lhe um sentido para a existência. De elite, é claro, só podem ser de elite os que se tornam capazes de aplanar a estrada do génio, tomando aos seus ombros a carga do quotidiano, com todo o séquito de deveres nos pequenos nadas, fazendo, por eles, o que eles fazem sangrando e sacrificando as horas de criação.

Lembremos Friedrich Nietzsche, esse génio errante e errático, elevado até à cátedra em tenra juventude, e dela fazendo o púlpito do seu génio, mas logo dali apeado por impossibilidade física e mental de continuar exercendo um trabalho linear. Lembremos que lhe foi atribuída, por essa razão, uma pensão vitalícia e dela viveu o professor misterioso, percorrendo os Alpes, descendo até Veneza, deambulando por Sorrento e sempre, nessas casas modestas onde ia ficando, alguém lhe tratava das roupas simples e lhe alimentava o corpo, respeitando, mesmo à margem da compreensão, o fulgor do olhar coruscante e do gesto genial. Pensemos que houve amigos, que a História só mediocremente refere ( mencionemos Peter Gast, nome fraterno dado por Nietzsche ao músico malogrado que ninguém queria ouvir e que se chamava Heinrich Köselitz ) , que escreviam por ele os aforismos e os textos inflamados, quando a cabeça lhe doía, a vista se lhe turvava e a náusea o derrubava. Quem pode imaginar que a poderosa vibração dos textos nietzschianos saiu de um corpo consumido, de uma mente em convulsões? Mas ele tinha, como os gregos pré-socráticos que lhe servem de paradigma, o pessimismo da força e, reconhecendo que era um decadente, afirmou-se, em simultâneo, o contrário de um decadente. Não importa compreender, não é necessário entender cabalmente o génio: mas urge reconhecê-lo, urge ver na cintilação, por vezes assustadora, porque transcendente, a marca da eternidade, o sinal do porvir. É necessário que se inventem os coadjuvantes da genialidade, aqueles que, não sendo geniais, reconhecem a genialidade do outro e lhe apaziguam a solidão, realizando, por ele, os gestos da sobrevivência.

«Onde estão aqueles velhos amigos aos quais antigamente me sentira tão estreitamente ligado? Habitamos mundos diferentes e falamos línguas diferentes! Como um estranho, como um proscrito, vago entre eles sem que me dirijam uma palavra ou um olhar. Calo-me, pois que ninguém compreende as minhas palavras... Ah, bem posso dizer: jamais me compreenderam! É espantoso ver-se condenado ao silêncio quando se tem tanto que dizer… Teria eu sido criado para a solidão, para não encontrar nunca uma pessoa para me fazer ouvir? A incomunicabilidade é, em verdade, a mais espantosa das solidões. Ser diferente é trazer uma máscara de bronze mais dura do que todas as máscaras de bronze. A amizade perfeita só é possível inter pares. Inter pares: palavras embriagadoras! Que confiança, que esperança, que perfume, que beatitude promete a um homem fatal e constantemente só! a um homem que é diferente, que jamais encontrará ninguém semelhante! E, no entanto, este homem é um bom indagador, e procurou muito… Ah, loucura fugaz destas horas em que o solitário acredita encontrar um amigo, e estreita-o entre seus braços: presente dos céus, dom inestimável! Mas não se passou ainda uma hora, quando já o repudia com repugnância e se afasta com asco de si mesmo, como se se sentisse desonrado, diminuído, doente com a sua própria companhia.

Um homem profundo tem necessidade de amigos, a menos que tenha um Deus. E eu não tenho nem Deus, nem amigos. Ah, irmã! esses que você designa com essa palavra, em outro tempo foram meus amigos. Porém, e agora?

Perdoe-me este acesso de paixão; a causa disto foi a minha última viagem.. . A minha saúde não é boa, nem má. Só a pobre alma é que se encontra ferida e ávida.

Dê-me alguns homens que consintam em me ouvir e me compreendam — e me sentirei são e salvo.»

Daniel Halévy, Nietzsche, Inova

(Esta carta foi escrita por Friedrich Nietzsche à sua irmã Elisabeth; ressalvando um ou dois pormenores laterais, nunca essenciais, eu poderia subscrevê-la por inteiro… e arrepia-me senti-lo, pois conheço bem o destino do homem que viveu o abismo da sétima solidão!)

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

NOITE DE VERÃO

MIGUEL GOMES
O calor vem endiabrado outeiro acima ainda o diabo esfrega um olho, o sono ainda não se lembra de acordar e o silêncio sai estremunhado pelo cacarejar de um galo madrugador, sem receio de ser transformado em cabidela. Esta terra parece ter bafo de bicho, bravo, uma tríade de maldade, humanidade e oportunidade. O mato vai seco como mato se quer, espinhoso afasta quem dele se quer aproveitar, das viagens fugidias de um jovem casal que se desprende aos iniciáticos prazeres do mundo corporal, do pastor que pé lá é coisa que não lhe apetece colocar ainda que lhe fuja uma outra mais tresmalhada, de todo o resto que vigia o terreno com receio de lhe ter que chegar a enxada à mão e esta à terra. 

Só não afasta a mão falheira, o olhar tolhido de tudo o que lhe possa ser ocasião, diria que não era ladrão, mas vai já lá dar tudo ao mesmo, verão, a ponta do cigarro virada para a palma rugosa e agreste, o bocado de jornal que se fez atrás companheiro de retrete, a brasa, o sopro, o papel, a chama. Daqui a pouco, já o sino por eles chama. 

O lume vai estranhar a liberdade, olhará para todos os lados, sensoreando, saboreando antecipadamente a secura por onde se possa espreguiçar e pé ante pé, ou chama ante chama até se metamorfosear labareda, subirá encosta acima, desacostumado a cansaços mundanos, isso é lá para aqueles fulanos!, até ser já um bicharoco jocoso que à boleia do vento salta de poiso em poiso como uma pandemia que se alastra aleatoriamente pela fraqueza sem dono a quem governantes corjados votaram ao abandono.

Correm de calças na mão, no sufoco aflito de quem ouve no peito a árvore e o seu grito, de enxada, ancinho, sachola, pá, gravetos secos aos ombros e enquanto não se faz a chamada, já o dia é alvorada, correm esbaforidos como pastores adormecidos no posto, ladeira acima, chamando a si à força de braços um gado flamejante tresmalhado. - Ai se chega ao centeio!

Acodem-se uns aos outros, deixando no lenço sobre a cara o suor e o expectorado sufoco do fumo, o veneno que sabe a morte rápida de outrens e lenta, nossa. Atrás, a apreciar o espectáculo em vésperas de noitada, já com o calor do bagaço a invejar-se do braseiro carvoado rubro, sentado numa pedra onde adormeceu o orvalho nas noites frias, com o resto do cigarro a queimar o lábio gretado, descansa com as pernas esticadas e os braços atrás das costas, cruzados. É o doido, chamam-no, assim foi eleito por todos, até por quem nada quis saber dele. - Aqui d'El Rei!

Mas longe vão tempos monásticos, quem lhes rouba agora é democrata, as mulheres correm com as enfusas a vomitar água, os putos espreitam com as ceroulas ao fundo do cu o espectáculo dantesco, embora não saibam ou venham a saber quem foi Dante. Dante apenas o dia de ontem. O sino pica alto, o badalo sobressaltado e de olhar assustado vai-se soltando ao puxão forte de quem se apressou a subir quatro degraus na escada improvisada, semi-enferrujada, e vai puxando na cadência certa o baraço carcomido pelo tempo, sol e chuva, calor e frio.

O mato seco, o silvado misturado, meia dúzia de fetos, dois ou três casais de raposas e ratos a perder de vista, não pelo número, mas por serem minúsculos, saltam pelo monte abaixo confundindo-se com a massa de gente armada de medo monte acima. 

O dia amanhece. - Parece impossível o fogo dar-lhe assim de madrugada. - Isto tem dedo do diabo! 

O cabresto sufragiado sorri na pedra. Os homens à força de braço aram o fogo como quem planta receios do futuro e antes que se chegue o calor a terra onde não deva lamber, já o cabelo, as pestanas e sobrancelhas adquirem nova coloração, essência de fuligem. Uma ou outra cinza semi-incandescente escapa como pequena estrela cadente na noite, mas sobram ainda forças de quem amamenta, para ceifar o lume ainda antes de ser faúlha com as enfusas, jarros, baldes, tinas e bacias prenhes de água.

Por esta escapa, o lume andou a lamber as bordas da sorte, aqui já só nasce morte. - Pelo menos com esta jeira não nos preocupamos agora. - Para o ano há-de dar pastagem.

Aos poucos recolhem-se cada qual a seu pátio, uns comprovam no dedo o buraco que uma faúlha mais afoita fez nas calças, ali junto à ferramenta, dando lugar à gargalhada desatenta de quem se vê na vida como quem se lamenta. Os lenços sobre o queixo secam o suor da testa e sacodem o carvão da mão. É Verão.

Reza a tradição.

Se sempre foi assim, porque não continuar, melhor, maior? Pouco nos valha, ainda que nos arda a dor. É Verão e assim reza a tradição.