domingo, 31 de janeiro de 2016

VEM TER COMIGO

MIGUEL GOMES
O Sol vai aquecendo lentamente e timidamente, apesar do periélio, a manhã de Inverno que se faz amanhecida aspergindo luz encostas acima até se encontrar com a hora de almoço. Vou caminhando lentamente, por vontade e necessidade, com as mãos nos bolsos, por vontade e necessidade ainda, pelo emparedado caminho que me habituei a gostar como a pele que permite manter íntegra a amálgama carnal que piloto enquanto habito neste orb.

O mundo parece mais pequeno, agora, os muros mais baixos e a distância de mim à minha própria sombra vai subindo, sem que isso signifique que a escuridão projectada esteja mais longe da luz desejada.

Concentro os passos em planos de três, vá-se lá saber porquê, um, dois, três, reinicia, um, dois, três, reinicia, sem qualquer motivo aparente e na tentativa de descobrir uma razão, dou por mim a pensar no ditado que três foi a conta que deus fez, por isso, nesta matematicalidade talvez exista um sentido que não descobri. Embora as ruas se concentrem inalteráveis, é impossível não perceber que existe uma dificuldade maior em altivar o caminhante, como o fazia antes, desenvoltamente, a cada passada, erguendo-se silenciosamente acima dos muros e subindo, sempre, transformando o passeio num constante futuro que se visiona apenas quando se é criança. Hoje, sábado, domingo?, que dia é hoje?

O Sol aquece e ilumina, a minha sombra persegue-me, as mãos nos bolsos do casaco de malha. Olho para o lado e cumprimento, como sempre, a trejeito tímido, uma e outra pessoa, jovem antes, velha agora, bom dia ou boa tarde, boa noite raramente porque apesar de solarengo, a noite quando se destapa e sai da cama com firmeza chega fria como o olhar de muita gente que ainda não amanheceu.

Sem que me aperceba, tacteando a parede, vem atrás de mim uma criança. Devo levar uns bons dez metros de adianto e, ao perceber que vem distraída, paro a marcha e olho para trás. Traz um sorriso tranquilo, um olhar indagador e as mãos a fazerem cócegas a pequenos tufos de musgo ainda orvalhados apesar do Sol. Quando está prestes a chegar até mim afasto-me, talvez eu pareça invisível a uma criança, mas não o sendo, há que ter a preocupação de não atrapalhar a marcha de quem no presente se move tendo como futuro a próxima fenda entre pedras do muro que ladeiam o caminho ou o mais confortável tudo. 

Sigo, a pé, atrás dela. 

Bom dia aqui, bom dia ali, assobio silenciosamente meia dúzia de músicas que gosto. O caminho vai fazendo-se normalmente, o Sol aquecendo a destapada cabeça e a inusitada criança no seu caminho passa a ser a minha curiosidade.

Percorro os seus mesmos passos e, por vezes, quando não há casas a espreitar, afago um e outro tufo de musgo, ficando depois a saborear com o tacto a água um pouco mais densa que ficou no indicador e polegar. O percurso termina quando o vejo parar. Olha para trás, vê-me, sorri e estende a mão para mim. Aparentemente sem saber das novidades perigosas deste belicista mundo, sem qualquer receio de um adulto, faz sinal para continuar em direcção a ele e ao chegar à sua beira, estendo o braço e ao tocar na sua cândida e alva mão, sinto apenas o húmido toque de um musgo verde escuro que deixa na imaginação um dia de Sol por cima do nevoeiro que, por momentos, se interpõe entre mim e a janela, mas apenas por momentos, pois ainda que em pé, em casa, a espreitar o cinzento nevoeiro por detrás do vidro, onde a esforçada respiração se condensa a cada baforada de um calor que ainda não esmoreceu. Ainda. 

Pisco os olhos. Faço de conta que o húmido nos dedos não é do vapor de água que acabei de limpar, mas sim do musgo que aquela criança desejou que eu conhecesse e, rapidamente, atrás agora da cortina, piscando novamente os olhos sem desvanecer a visão, o Sol nasce de novo e a manhã apresenta-se radiosa e radiante, por vontade da necessidade.

Perdido agora, desabituado ao vai e vem daquilo que não volta, descanso o olhar encostado a um pilar, enquanto vejo o rio de água borbulhando pelos paralelos. 

Há uma pequena folha que passa. Depois um barco de papel. De seguida vários. 

Levanto as golas, tiro os óculos e sigo "rio" acima até, depois de uma curva, ver um puto abrigado por um guarda-chuva, sentado numa pedra que a chuva não chegou a molhar, a dobrar cuidadosamente um papel e a escrever "vem ter comigo", antes do papel ganhar forma e ele o colocar no ribeiro de água turva que passa neste pedaço de terra. Vejo o barco seguir e ele, curioso, dá-me o guarda-chuva e diz-me, "vou ver onde eles passam". 

Esqueceu-se de umas folhas, sento-me na pedra seca, guarda-chuva entre o ombro e a cabeça, dobro as folhas de papel e escrevo "vem ter comigo" antes de o colocar no ribeiro... 

Fico a acompanhar o movimento e quando levanto o olhar, alguém caminha para mim, de olhos semicerrados pela chuva, golas levantadas e mãos nos bolsos.

sábado, 30 de janeiro de 2016

NO MEU GALHO, EM NOITE FRIA DE INVERNO

As nossas escolhas geram o inferno na Terra ou o Céu na Terra.
Santa Hildegarda de Bingen (1098 – 1179)
Monja e abadessa beneditina alemã, mística, teóloga, pregadora, escritora de livros de medicina natural, poetisa e compositora, proclamada Doutora da Igreja pelo Papa Bento XVI, em 2012.

JORGE NUNO
A tarde fria de inverno transforma-se rapidamente num sombrio lusco-fusco, ao ver desaparecer de vez os últimos raios de sol por detrás da serra de Nogueira. Caminho a pé, em direção a casa, olho ao longe e ainda consigo descortinar os picos mais altos da Sanábria, tingidos de branco sujo, de uma neve que teima em ficar por muitos meses. Ajeito o cachecol em volta o pescoço, como se olhar para a neve me fizesse sentir ainda mais o desconforto do frio, ou como se a minha voz interior me avisasse para não facilitar, para evitar problemas futuros, sabendo que eu encaro as vacinas, incluindo a da gripe, como uma treta, por me julgar um super-homem, acima de qualquer doença. Olho instintivamente para o relógio. Mas são ainda dezassete horas e já é de noite!

Enquanto caminho, sinto no ar o agradável cheiro a lenha queimada nas lareiras e, de repente, lembro-me de questionar por onde andará agora o imenso bando de estorninhos que me habituei a ver em todos os fins de tarde de verão, vindos dos campos para pernoitar nas velhas e bem cheirosas tílias da praça Cavaleiro de Ferreira, mesmo no centro da cidade, entre alegre e aguerrido chilrear. Coisa fina, pernoitar na cidade! Para novamente, pela alvorada, partirem para os campos, ricos em alimentos. Dizem que os estorninhos-malhados estão por cá no inverno e os estorninhos-pretos permanecem todo o ano, mas por que será que só me dou conta deles, qualquer que seja a espécie, ao crepúsculo, durante o verão? Não é meu hábito andar distraído, mas algo se passou. Mas por que me lembro agora desta espécie de comportamento gregário? Será pelo fascínio dos seus movimentos coletivos de rara beleza, com mudanças rápidas de direção, como que a prepararem-se para a grande viagem sazonal, à procura de outro habitat, num jogo de sobrevivência e procura de bem-estar coletivo?

Entre deambulações mentais, vejo-me mecanicamente a marcar o memorizado código para abrir a porta do prédio. Pouco depois… a jantar, e ainda são só dezoito horas! E eu que tantas vezes, intimamente e sem o referir, criticava os mais idosos por jantarem tão cedo!

Tal como um dos estorninhos, hoje apetece-me ir cedo para o meu galho e adormecer logo para começar cedo o meu novo dia, com energias renovadas para os próximos atos criativos, sejam eles quais forem. Estranho, pois sei que não precisaria de partir cedo para os campos em demanda de alimento, nem obrigatoriamente ficar na cidade, ir para o emprego, picar o ponto e dar, profissionalmente, o meu contributo ativo. Mas não me sinto estorninho, porque não tenho a companhia contagiante dos outros estorninhos. No entanto, hoje, no meu galho, rejeito o computador, a internet e as redes sociais (com canários, papagaios, cegonhas, abutres, melros, gaviões, cisnes, pelicanos, patos, beija-flores, avestruzes, caturras, gaivotas, corujas, pavões… mas muito poucos estorninhos para formar um bando estonteante). Rejeito também o televisor, a rádio, o leitor de CD’s, o MP 3, o instrumento musical com dois teclados, pedaleira de baixos, caixa de ritmos e orchestral conductor, ou um ou mesmo dois livros.

Baixo as persianas térmicas até meio, para poder deixar entrar os primeiros raios de sol de inverno, que surgem do lado de Babe, e servirão de natural despertador, já que os galos não abundam nas redondezas e os vidros duplos abafam qualquer ruído exterior. Deito-me, apago a luz e reflito sobre as aprendizagens do dia e, por fim, poder agradecer ao Universo por essas aprendizagens.

Vêm-me à mente, em catadupa e sem nada forçar, uma série de coisas. Curiosamente, as perguntas parecem melhores que as respostas. Por que razão no escuro vejo melhor? Sim, comigo parece resultar, no escuro muitas vezes faz-se luz! No escuro dou mais importância à luz. E como se fez uma noite negra, mesmo sem estarmos em lua nova, e como negro se transformou o meu país! Queixas? Não, não é meu timbre. Prefiro acender a candeia, do que me queixar da escuridão. Mas sinto que tenho que ir mais fundo. Serão o medo e a culpa os dois principais inimigos do homem? O que acontece quando o homem se libertar de sentimentos de culpa, que lhe foram inculcados durante séculos e, decididamente, perder os medos? As sociedades, os governos e modelos económicos vigentes continuarão a agir como até aqui? Por que será que a nossa maior fraqueza é a dependência, do que quer que seja ou de quem seja, permitindo, passivamente, que sejam cometidos abusos? Por que razão não agimos de uma forma mais interdependente, numa relação recíproca, de tratamento igualitário, não para criar lucro a alguns mas para gerar verdadeira riqueza, que reverterá em benefício de todos? Será que eu não serei mais do que uma forma de vida, mas uma experiência mais ampla de vida, como energia em movimento? E que essa energia, num plano vibracional mais elevado, trará mais autoconsciência? E que essa energia afetará, inevitavelmente e por simpatia, outra energia que esteja próxima? E que essa vibração em ascendente conduz à mudança? Estaremos mesmo a aproximarmo-nos rapidamente da Idade de Ouro da Iluminação? Então por que razão fica a perceção que tudo nos parece tão negro neste planeta em expiação, que aparenta ficar pior a cada dia que passa? Não estará cada vez mais gente a conseguir ver no escuro? Não estaremos já numa fase de mudança de consciência coletiva, pela evolução natural de tanto olhar e não aceitar indefinidamente a escuridão? Até que ponto a cocriação, que advém da paixão, será a força motriz para alterar o statu quo? Quanto custa ir da apatia à empatia? Precisarei de evocar o meu lado sagrado, o que me conduz à minha verdade mais íntima, para dar contributos nos atos criativos comuns e estimular a mudança? A vontade ou necessidade de que a verdade interior esteja de acordo com a vivência exterior não levará as pessoas ao questionamento e a querer corrigir assimetrias? É aqui que entra o conceito de que a vida é um processo de andar em círculo, mas pensando nisso como uma espiral ascendente?

Estranhamente, um aperto de bexiga leva-me a esfregar os olhos e a “despertar” lentamente, como quem acaba de acordar de um sonho não menos estranho. Viro-me para a direita e fixo o olhar no relógio luminoso. Faltam três minutos para a meia-noite. Levanto-me, vou à casa de banho e logo me sinto um pouco mais aliviado. Espreito pela janela, sem esperar ver nada de especial a essa hora da noite, numa cidade que fica quase deserta a partir do fecho do comércio, mas no ar sinto o persistente cheiro agradável a lenha queimada e o frio cortante, com reflexos no vidrado do asfalto, visível sob o número reduzido de candeeiros acesos da rotunda e, contíguo, através do arraial luminoso que provém do túnel.

Dirijo-me novamente para a cama e reparo que é precisamente meia-noite. Começa um novo dia. Hesito, por momentos, entre o adormecimento ou ficar desperto. Mesmo desperto, posso decidir se quero prolongar a noite negra ou se quero antecipar a alvorada e ver raiar, entre as barras das persianas, os raios de sol que indiciam um novo dia, uma nova oportunidade. E como tudo seria mágico e simples, se um enorme bando de estorninhos saísse dos seus galhos e se juntasse, com as suas mirabolantes danças aéreas, para dar corpo à visão coletiva do ansiado novo dia. 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

RANZI DEVIA COBRIR-SE DE VERGONHA

GABRIEL VILAS BOAS
A cultura de um povo não é um bem negociável, porque ela materializa e sintetiza a alma e a essência desse mesmo povo.

Durante esta semana, o presidente iraniano, Hassan Rouhami, visitou a Itália e o Vaticano, num périplo pela europa. Quando visitou a pátria de Michelangelo, o presidente italiano, Matteo Ranzi, “aceitou a sugestão” (como abomino os eufemismos da hipocrisia política) do protocolo e mandou tapar algumas estátuas do Museu Capitolino, em Roma, dado que estas exibiam a nudez, em sinal de respeito perante a cultura e sensibilidade iranianas.

Na verdade, Ranzi não se deu ao respeito e envergonhou o povo que devia representar. Nem respeitou o presidente iraniano nem respeitou o cargo que exerce.

A cultura italiana é a herdeira natural da cultura greco-latina que enche de orgulho a europa ocidental. O nu das estátuas, pinturas ou esculturas vincou (vinca) a supremacia do estético e do humanismo sobre a censura das diversas religiões.

Durante séculos, pensadores, filósofos e artistas “explicaram” aos hipócritas guardiões de uma moral restritiva e punitiva que a arte greco-latina precedeu o cristianismo ou o islamismo e por isso delas não recebia ordens absurdas ou lições de comportamento.

Um artista provoca sentidos; representa o mundo e o Homem e por isso não se submete. Ele sabe ser estético sem nunca deixar de ser ético. Demorou vários séculos, mas a Igreja Católica acabou por perceber o que era a Arte e que esta só podia funcionar num espaço de liberdade.

Quem vive e aceita as sagradas regras da liberdade, democracia e respeito entre os povos não pode censurar os outros, mas também não pode censurar-se. Se Ranzi fosse a Teerão, jamais pensaria pedir ao presidente Hassan Rouhami que permitisse ou obrigasse as mulheres iranianas a tirar a burka. Se o fizesse, estou certo que não só não alcançaria os seus intentos como também veria a sua viagem ao Irão cancelada. E, a meu ver, com inteira razão. Há pedidos que não se fazem, há sugestões que não se admitem.

O nu das quatro estátuas do museu romano é icónico, obviamente, mas não irrelevante. Ele traduz a liberdade de uma cultura e uma forma de pensar o mundo. Com a sua cobardia Ranzi humilhou a Itália e a cultura ocidental, pois não soube explicar ao seu homólogo iraniano a humanidade e a beleza daquelas figuras nuas. Se Ranzi sente vergonha da história, da cultura ou da arte italianas não devia ter levado ao museu Capitolino o iraniano. Se este se incomoda assim tanto com o nu das estátuas italianas, então, devia também recusar fotos ao lado da estátua equestre de Marco António.

Não é assim que se estreita as relações entre povos. O medo, a falsidade, a vergonha daquilo que fomos, somos e representamos são péssimos atributos de um Presidente. Ranzi pode aproximar governos, presidentes, interesses económicos posições diplomáticas, mas jamais aproximará povos e culturas. Assim sendo, os seus esforços serão sempre infrutíferos.

Como muito bem sentencia um ditado popular: Quem perde a honra por causa de um negócio, perde o negócio e perde a honra. 

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A BIRD FOI À ESCOLA

"A BIRD E OS ALUNOS DA ESCOLA E.B 2/3 BERNARDINO MACHADO"
JOANE, VILA NOVA DE FAMALICÃO 
É sempre agradável ir à escola. Voltar à escola.

A escola é o lugar de todos. A escola é para todos. A escola integra, respeita a multiculturalidade, ao mesmo tempo que agrega condutas, atitudes cívicas, oferece coerência a determinados valores fundamentais. A escola trabalha o global, sem deixar de valorizar e dar voz ao individual.

Todos pertencemos à escola. Nunca esquecemos a escola. Ela marca-nos de alguma forma. Todos temos por hábito acompanhar os assuntos de relevância relacionados com a escola. Estamos atentos a isso. 

E é na escola que se encontra o fruto do futuro. É na escola que se abrem todas as possibilidades, se dão asas a sonhos e se aprende a “descer à terra”, se abrem todas as portas da imaginação, da razão e da opinião. É lá que se travam lutas e se vivem momentos inesquecíveis de tão marcantes. A angústia e a felicidade. Porque tudo o que acontece na escola é alvo de análise, reflexão, negociação, debate. A escola não fecha portas, mesmo quando pareça a este ou àquele professor, este ou àquele aluno, este ou àquele encarregado de educação que se está a trabalhar às escuras; que não se vejam frutos imediatos; que o tempo pareça irremediavelmente perdido. Mesmo assim, mais tarde, estaremos a (re)lembrar a escola como um marco, como um espaço-tempo da nossa vida que deixou as suas marcas indeléveis. É uma aprendizagem para a vida, em todos os sentidos. 

Não seríamos nada sem a escola.

É precisamente neste enquadramento que se assume o título deste artigo, “a Bird foi à escola”.

No âmbito do tema “A escrita jornalística”, fui convidada para ir à Escola EB 2, 3 Bernardino Machado, em Joane, Vila Nova de Famalicão, para falar com os alunos sobre o espaço de opinião – “opinião: cada um tem a sua” – da revista online Bird Magazine, projecto no qual participo com uma crónica quinzenal. 

Imediatamente fui assaltada por uma ideia: levar comigo o responsável pela minha participação neste espaço de opinião. Aquele que me convidou e, carinhosamente, me deu o título de “cronista residente”. Aquele que faz parte do nascimento deste espaço de opinião, fruto de um trabalho académico, e que teima em não o deixar morrer.

Foi assim que lancei o convite ao Ricardo Pinto, meu ex-aluno (não gosto da palavra ex neste contexto, pois, para mim, uma vez aluno para sempre aluno), para me acompanhar em mais este desafio. Tenho por hábito deslocar-me a escolas para falar da escrita e aqui fazia-me todo o sentido que o Ricardo, co-fundador e actual administrador da Bird Magazine, com formação em Comunicação Social, me acompanhasse nesta experiência.

Esperavam-nos alunos das turmas de 7.º ano (os mais difíceis, avisavam-nos), na biblioteca da escola, acompanhados das suas professoras de Português e da professora bibliotecária, de quem tinha partido o convite.

A sessão, posso dizê-lo, foi um sucesso para todos os intervenientes – que é isso a escola: o lugar onde se procura atingir, como reduto, o sucesso, o que nem sempre sendo possível, leva, por isso, a trabalhar e a gerir forçosamente os fracassos, os desalentos, mas isto será reflexão para outro correr de tinta. 

O Ricardo Pinto começou por expor uma visão histórica da evolução do jornalismo de imprensa, do pré e pós 25 de Abril; e passou a apresentar o projecto da Bird Magazine, que nos tinha levado lá.

A mim calhou-me, como é hábito, falar da escrita. Dei-lhes a conhecer as principais características da crónica, do texto de opinião; e li-lhes excertos, enquadrando-os nos textos a que pertenciam e nos temas que abordavam.

A parte mais interessante foi a parte das questões, curiosidades, debate de ideias, que é sempre um momento gratificante nestas sessões com alunos, já que eles colocam questões realmente do seu interesse, e por isso bastante pertinentes. São normalmente curiosidades que têm, onde se vê que, por ali, como por um estreito canudo, espreitam para uma forma de futuro possível. 

Ficaram agradavelmente surpreendidos por nos verem ali, nós também, professora e aluno. Como eles, afinal. 

É isto a escola, lugar da diversidade, mas também da coesão. O espaço da partilha e de todas as aprendizagens. O espaço-tempo reunido: passado, presente e futuro.

Anabela Borges

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

LEMBRANÇAS DE UMA GUERRA

CATARINA PINTO
Nos últimos tempos temos assistido por todo o pais, a exposições e comemorações sobre o centenário de um período negro da nossa existência enquanto humanidade, a 1ª Guerra Mundial 1914-1918. Pode parecer tão distante mas ela foi tão real demais e apesar de 100 anos separar-nos desta carnificina ainda iriam surgir outros momentos históricos que dilaceraram o mundo.

Eu não fazia a mínima ideia mas descobri através da minha pesquisa genealógica que os meus dois bisavôs maternos estiveram na mesma infantaria, compartiam o mesmo nome, tinham pouco mais de 20 anos, casados há pouco tempo e por coincidência as suas esposas estavam gravidas… Tudo isto é interessante porque esse detalhes ou foram esquecidos ou ocultados… imaginem o estado de sítio instalado em Portugal em 1917 e estas duas jovens mulheres assim como tantas outras mulheres de soldados que foram destacados para o Corpo Expedicionário Português ( CEP), que forma para França, de inicio Therounane na Flanders Francesa. A 1ª brigada do CEP foi a bordo de 3 vapores Britânicos sob o comando de Gomes da Costa, a 2ª saiu de Lisboa com rumo a França a 23 de fevereiro de 1917. Em um desses contingentes estavam os meus bisavôs e todos os outros futuros bisavôs de alguém (isto, se houvesse regresso). No meu caso, dois jovens agricultores, pobres, sem conhecimentos e analfabetos em todas as vertentes, uma mistura explosiva para a guerra. Apesar de os altos postos serem os responsáveis pela estratégia do seu contingente, o que seriam eles sem os milhares de soldados que combateram e/ ou ajudaram na luta contra o inimigo de sempre… Alemanha até atacou as antigas colonias em africa… temos que nos saber colocar naquele tempo…. O mundo estava a ser estilhaçado pelas suas ações e eles não eram os únicos.

Mesmo que Portugal tenha contribuído com “ pouco”, contribui com vidas desfeitas e sofrimento para todas as famílias que ficaram e resistiram em Portugal. Nesses tempos as noticias ainda eram lentas e escassas. Depois de tudo o que lá viveram ambos regressaram e seguiram as suas vidas. O pai do meu avô infelizmente faleceu com 47 anos vítima de uma reação de uma injeção de penicilina. O pai da minha avó, viu quase todos os filhos emigrarem para o Brasil. A minha avó casar-se-ia com um filho de um camarada da guerra. Sei que ela não gostava nada da sua sogra. Detalhes lamento não conhecer, questiono-me se eles teriam comentado algo sobre isso? Imagino que sim…É bem provável mas foi uma história que se perdeu no tempo, os meus avôs nada comentara a minha mãe…linhas de um destino… Para terminar faço destas palavras a minha simples homenagem aos meus dois avôs … Heróis de guerra e de vida..

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

DESATENÇÃO E NARCISISMO

REGINA SARDOEIRA
Um dos problemas mais complexos da nossa época é a tendência para a desatenção. Se estar atento significa permanecer focado num assunto, por exclusão dos outros, de modo a ser capaz de dar resposta, caso ela seja necessária, estar desatento representa, muitas vezes, a dispersão errante por este ou aquele universo ou a fixação num objecto diverso daquele para o qual a nossa atenção deveria ser activada.
A desatenção é, nessa medida, uma atenção múltipla e variegada ou o desvio para outros sectores que nos dispersam do motivo que deveria ser a nossa meta.

Procuro razões para este facto e encontro algumas.

Um destes dias, almoçava num restaurante e aconteceu-me observar uma família que se sentava ao redor de uma mesa, à minha frente. Creio que se tratava de um casal com três filhos, de idades compreendidas entre os sete e os quinze anos. Todos eles, desde os pais, na casa dos 40, até aos filhos, se ocupavam, individualmente, dos seus aparelhos móveis, consultando páginas do facebook, enviando e recebendo mensagens e outras distracções do género. Uma das crianças, creio que a mais nova, tinha postos um par de auscultadores e, enquanto digitava no seu telemóvel, acenava a cabeça ao som da música – provavelmente em elevado volume.

Aquela família deslocara-se ao restaurante, decerto, para quebrar a rotina – estávamos num fim de semana – e usufruir em conjunto de uma ou duas horas, certamente pouco vulgares no dia a dia apressado que crianças, jovens e adultos são compelidos a viver no tempo que corre. Provavelmente, se falaram com um amigo naquele ou no dia seguinte, acerca do fim de semana, referiram o almoço de sábado como tendo sido de convívio, de reunião familiar, de recuperação dos outros dias em que os respectivos horários não lhes deixam tempo para o desfrute da companhia em família. E contudo, absolutamente nada, naquele grupo reunido à volta de uma mesa indicava que os pais estivessem a aproveitar para, unidos, trocando mútuas impressões, estabelecerem contacto com os filhos - e vice-versa.

Um profundo isolamento em universos distantes e diversos foi o que me pareceu estar a acontecer ali.

Deitando os olhos um pouco mais além, pude observar gente que se levantava para ir falar ao telemóvel no exterior, saindo da mesa onde almoçavam, acompanhados, gente ensimesmada em volta dos mecanismos móveis, repletos de informação; muito poucos dialogavam entre si, apenas com a voz e o corpo, afastados os intrusos. Sim, verdadeiros intrusos, uma multidão de intrusos, eis o que levam consigo para onde quer que vão, homens, mulheres e crianças de praticamente todas as idades e condições. E outorgam a esses intrusos um papel fundamental, dão-lhes um estatuto de absoluto privilégio, pois sentam-se com eles à mesa, levam-nos para a cama, transportam-nos quando precisam de ir à casa de banho, usam auriculares quando conduzem, põem-nos em silêncio e consultam-nos, sub-repticiamente (ou nem por isso), quando estão na missa, nas aulas, numa conferência, num concerto…

Observando atentamente este comportamento, verificado ali, na sala de um restaurante, mas também pelas ruas, onde as multidões de transeuntes aproveitam para falar ao telemóvel, quantas vezes alto e bom som, ou, de olhos fixos nos pequenos ecrãs, se afadigam a comunicar exaustivamente, vou percebendo a anormalidade da civilização a que arribamos.

Também sou testemunha do ruído a que as pessoas se acostumaram, pois não há praticamente nenhum lugar público, café, restaurante, sala de espera de hospital, lojas dos mais variados tipos, etc. onde não sejamos confrontados com um ou vários aparelhos de televisão e, muitas vezes, ainda, com música ambiente, quase sempre estridente ou de má qualidade.

Vejo, assim, que a desatenção que refiro se deve, provavelmente, a tantos e tão variados motivos. Vejo que a mente não descansa, não se detém num pormenor ou num assunto, constantemente desviada para múltiplas e díspares orientações. E, como é impossível, captar devidamente e reter um conjunto tão avassalador de informações e estímulos, visuais e auditivos, principalmente, a mente dos homens de hoje e das mulheres e dos jovens e das crianças é um turbilhão de pequenos indícios e fragmentos de tudo e de coisa nenhuma.

Como todos, pairo, também eu, neste universo de ruído, sou obrigada a conviver com as aberrações sonoras e visuais das quais nem sempre consigo desviar os sentidos. E também eu experimento o estigma da desatenção, quando quero concentrar-me e sou bombardeada pelos mais diversos estímulos a que não apelei, mas que me entram portas adentro à revelia de mim.

Neste momento, por exemplo, são quase seis horas da tarde. Passou quase todo um dia de trabalho, cumpri os meus deveres profissionais e poderia sentir-me plena, convicta das tarefas realizadas. Contudo, parece-me que o meu dia, verdadeiramente, ainda não começou, que ainda tenho meia hora em que o horário me obriga, um pouco absurdamente, a permanecer na escola e que só lá para as sete e meia ou oito poderei chamar meu ao tempo, ao espaço e à actividade a que decidir lançar mãos. Sim, actividade, porque embora sinta algum cansaço, depois de nove horas quase consecutivas de trabalho, com uma pequena pausa para almoço, o certo é que percebo que o mais importante de mim, enquanto ser humano activo e actuante, ainda não se revelou. Já acordei há muitas horas; e afinal parece que estive adormecida todo este tempo e só acordarei mais logo quando, no silêncio (ou nos sons por mim produzidos) e na posição que ao meu corpo convier, der ouvidos a mim mesma para, enfim, me encontrar. Mas também sei que não terei muito tempo para tal, sinto que logo que me der um hiato de relaxamento psico-físico, terei que começar a pensar no dia de amanhã, onde uma nova avalanche de ruídos, tarefas, contrariedades, etc. me absorverão inevitavelmente, pelo que precisarei de recolher, cedendo ao sono e à necessidade de recobrar energias.

O sono é necessário, sei-o bem. Mas, muito embora ouça dizer que dormir é bom, o certo é que não me apercebo desse tempo, passo nele como se não existisse. Por essa razão, dou comigo a levar a noite até ao limite, a obrigar o dia a duplicar-se, estendendo essas minhas horas pessoais muito para além da hora a que devia recolher-me. 

Também eu sinto problemas de atenção, vejo-me a fazer uma acção e a pensar noutra ou a tentar multiplicar tarefas num mesmo tempo, creio-me devorada por um vórtice em que as horas encolhem e as vinte e quatro horas de cada dia se revelam manifestamente insuficientes.

Esta é uma séria doença dos nossos dias, a maior, decerto. Mas há mais.

Ao mesmo tempo que todos vamos sendo devorados por uma plêiade de artifícios a que chamamos, convictamente, a nossa vida, os nossos amigos, as nossas festas, reuniões e convívios, rendemo-nos sem darmos conta a um individualismo feroz, caímos num abismo narcísico em cujo lago nos deleitamos sempre e apenas com a nossa imagem. Do mesmo modo que usamos os aparelhos tecnológicos para fingir que comunicamos, também usamos cultivar a nossa pessoa, fotografando - nos sem cessar, exibindo a nossa face e o nosso corpo pelo palco virtual e esperando o elogio ou fazendo -o desde logo , quando o dos outros tarda. Todos são bonitos, "especiais" , únicos. Os pais e as mães não têm filhos, mas "princesas" e "príncipes"; aos velhos dizem que estão "sempre iguais" e que" os anos não passam por eles"; as mães e os pais tornaram-se para os filhos (neste mundo de aparências) "os melhores do mundo" , os maiores, os mais bonitos. Os jovens ostentam despudoradamente as formas, crendo-se modelos - e os pais estimulam e alimentam esta exibição de si e dos dotes dos seus filhos adolescentes, guindados à categoria de deuses e deusas.

Vejo passar ao meu lado, a toda a hora, gente engalanada de todas as idades, gente que se acredita ímpar, gente que considera a auto-estima um direito a ostentar defeitos e a sentir-se muito "especial" no contexto dessas mesmas imperfeições. E já que a palavra "especial" me acontece por mais do que uma vez, eu afirmo que não entendo bem se é elogio ou crítica cognominar assim esta ou aquela pessoa. "Tu és muito especial!" - diz-se. E eu pergunto: o que significa ser deste modo "especial"?

Esvaziaram-se as palavras, ao mesmo tempo que muitas sombras caíram sobre as consciências, perdidas que estão num mundo que homogenizou, em amálgama indiscernível, talentos e imperfeições, erros e rasgos de génio, criatividade e insolência, beleza e aparato. E todos, insensivelmente, vão caindo na cilada, nas muitas ciladas que nenhum ser sobrenatural ou extraterrestre urdiu, mas que nós mesmos, nas nossas minúsculas torres de marfim, agigantadas pelo ego monstruoso que vamos construindo e deixando como legado, estamos, cegamente, a edificar.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

NESTE PAÍS DE LENDAS E DE HISTÓRIAS FEITO

«É Alentejo - mas não é bem Alentejo. Tem traços da Beira, outros do Ribatejo. É menos plano, mais verde, menos amplo, mais variado. Habitado por um povo de falar ainda mais marcado, o Alto Alentejo, hoje distrito de Portalegre, cobre o termo de que foram as terras de Avis, espaço imenso e pouco povoado que D. Afonso II situava entre Santarém, Coruche, Évora, Elvas e Abrantes.» - In “Norte Alentejano” de José Manuel Fernandes

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Porque ao longo dos textos, alguns dos quais, eventualmente, aqui possa vir a inserir, além deste, me refiro a "obturações, teleobjetivas, imagens", significa dizer "fotografias" que fiz para ilustrar os mesmos durante um trabalho de campo que realizei, por todo o País, para determinado fim e cujas imagens aqui não é importante publicar.
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ALVARO GIESTA
Venham comigo, iniciando esta digressão, por terras do interior onde o verde da planície, nas suas múltiplas cambiantes multicolores, é salpicado por frondosas copas de azinheiras e manchas de extensos olivais a contrastar com a agrura «granítica e poética», no dizer de Orlando Ribeiro, da montanha. Portalegre, Castelo Branco, Almeida, Figueira de Castelo Rodrigo, Miranda do Douro, Bragança e Chaves, eis algumas das cidades por onde passei numa demorada digressão e de que aqui deixo, "em resumo", alguns traços escritos em jeito de reportagem na parte a que diz respeito o capítulo "Planície e Montanha".
Venha e acompanhe-me nesta primeira etapa da digressão que me propus realizar; aprenda, comigo, a viajar para fora, conhecendo cá dentro as coisas belas da nossa terra. E, para isso, leve na sua bagagem um Torga, que lhe mostra «o mar de pedras» das terras transmontanas moldadas pela força braçal dos homens e mulheres de tez tisnada pelo sol abrasador dos meses de Junho a Agosto ou pelas gélidas geadas que o sião ou cieiro de Janeiro e Fevereiro, soprado das terras altas de Espanha, agudizam ainda mais os sulcos do rosto que mais parecem ter sido lavrados pelo duro aço do arado; ou um Orlando Ribeiro, que tão bem talha, poeticamente, a geografia do seu país; ou um José Manuel Fernandes ou um Rui Abreu de Lima que, para além do seu gabinete de investigador, palmilham, quilómetros sem fim nessas terras (de ninguém!) regadas pelo suor do rosto desta gente pobre e humilde alentejana.

Na nossa deambulante viagem pelo país, viagem quase de peregrinação (e eu digo "nossa" referindo-me ao meu velho e fiel 4X4 que me acompanha vai para década e meia da sua vida), chegámos a Portalegre (sem nos termos alongado por Terras do Baixo Alentejo, pois a não existência da matéria que movia o intento desta digressão tal não justificava), com uma breve paragem por Évora para olharmos o tão problemático "Templo de Diana", quanto ao nome, que em homenagem à Deusa parece haver discordância e controvérsia nos vários saberes de célebres historiadores, mas que pela certa é romano, e parece até ter servido para o culto imperial na época em que as influências dos imperadores Trajano e Adriano se expandiram na Península. E como célebre se tornou e se mantém fiel à fama, de tal ordem que as suas ruínas resistem às agruras do tempo e da vida, aqui deixamos à apreciação do leitor o resultado de várias obturações à  torreira  do  sol que já impiedosamente  castigava (mesmo estando nós em Janeiro), e ainda o  pino do meio-dia ia longe, nestas terras alentejanas.
Mas antes, (muito antes…) de termos chegado à cidade-capital do Alto Alentejo que, no dizer do poeta, «é cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros, onde o sol abrasa e o frio tolhe (…)», perdemo-nos no longínquo dos quilómetros de asfalto que já soltava chispas que nos cegavam a vista e nos entorpeciam o corpo conduzindo-nos a uma indesejada sonolência, talvez pela noite mal dormida pela ânsia da partida...

...e fomos dar a uma terra, que mais parecia um berço convidando-nos ao descanso, plantada no alto de um monte e entre oliveiras, solitária, que se erguia apontando o céu, fortemente azul, numa cumplicidade de silêncios com Deus que parece aqui ter-se perdido muito antes da Convenção assinada por D. Miguel em 1834 a abolir o absolutismo em Portugal: Évora Monte se chamava.

Acompanhe-me o leitor por entre um mar de céu azul a tingir o branco deste Alentejo, e pare connosco na cidade de Estremoz que foi cenário de importantes encontros políticos na Idade Média, entre as quais as cortes convocadas por D. João I. Venha ver o Paço  a que eu chamo "Dinisíaco" (e que muitos tratam por "Dionisíaco", impropriamente, porque, aqui, do deus grego Dionísio não se trata),  do  século  XIII situado na Periferia do Castelo, onde residiu durante várias épocas da sua vida o Rei D. Dinis. Aqui faleceu a Rainha Santa, em 1336, e o rei D. Pedro I em 1367. Vale a pena ver também o Museu Municipal de Arqueologia e Etnografia, cujo recheio representa, essencialmente, as antigas actividades artesanais da localidade, afamada pelas suas produções de olaria popular.

E voltemos, para já terminarmos, àquela que, no dizer do investigador Rui Abreu de Lima, «(…) caracteriza, sintetizando, de forma singular, o contraste destas terras de transição» que se espraia «desde os altaneiros contrafortes da serra-mãe, até às cálidas planuras do interior sul» onde «convivem, harmoniosamente, os relevos da dominante S. Mamede com as extensões planas de cultivo cerealífero (…), com culturas e saberes», afirmando «uma identidade própria, como o exprimem as várias manifestações do seu saber artesanal (…)». E, se mais não houvesse, ainda no dizer do mestre investigador, «(…) só por si, as Tapeçarias desta aristocrática Portalegre ou os Empedrados plebeus de Niza ou os populares Alinhavados, justificam que se conheçam estas terras contrastantes».
 Por isso, caro leitor, seja verão ou seja inverno, não fique comodamente instalado num hotel ou casa de veraneio e não se limite, apenas, ao curto passeio de alguns minutos quando vai beber o café após a refeição da noite à esplanada mais próxima, ali ao virar da esquina. Explore o que o Alentejo tem de poético e lindo. Venha connosco ou siga o investigador… acompanhe-nos, então, até à "Sintra do Alentejo", não sem que antes passemos por Marvão, vila alcantilada  a  862 metros de altitude e a 6 Km da fronteira espanhola, oferecendo, pela sua situação geográfica, um panorama envolvente de grandiosidade sem par. 

Sobre um escarpado monte de rocha viva, ergue-se a poderosa fortaleza dominando o profundo vale, conservando fortes vestígios de fundações romanas. E, não fora o curto dia de Janeiro a anunciar-me, já, um fim de dia breve, por certo me instalaria aqui, por largas horas, de potentes binóculos e teleobjetivas em punho, a deliciar o olhar com a beleza longínqua de um misto de verde e azul apenas salpicado pelo branco das casas, para lá do limite de Santo António das Areias, a aguçar-me o apetite a uma fuga breve até Valência de Alcântara, na vizinha Espanha.

Voltemos ao tão pouco conhecido, mas tão romântico,  Castelo  de  Vide: a "Sintra do Alentejo". Pela sua arborização, pela sua configuração natural, pelos importantes conjuntos arqueológicos, desde as suas casas e ruínas de interesse histórico, aos espaços museológicos, às suas igrejas, ermidas e conventos, aos seus brasões e sinagoga ou, fora da localidade, aos seus monumentos megalíticos, Castelo de Vide é ponto de paragem e visita obrigatória para quem está ali a dois passos a passar férias em Portalegre. Visite-o. Povo de saberes e lendas o deste país!…

Atravessávamos nós (eu e o meu velho 4X4) a porta de saída, que julgo ser a única por onde se pode sair de Marvão, quando me acudiu à memória uma ou duas lendas, que de tanto se crer nelas e por muito se ouvirem contar, se julgam ser verdadeiras. E serão até verídicas, que de lendas também se faz a história, que não de factos somente.

Conta a lenda - e recordando, aqui, o saudoso professor doutor José Hermano Saraiva - que:
«certo cavaleiro português foi a Badajoz no dia em que ali se realizava a procissão de Corpo de Deus, e arrancara das mãos do espanhol, que levava o alçado, um estandarte nosso que estava em poder dos habitantes daquela cidade fronteiriça» - e acrescenta a lenda, que «o audacioso português não podendo entrar em Elvas, por ter encontrado fechadas todas as portas, arremessara o   estandarte  para  dentro  das muralhas exclamando: "morra o Homem mas fique a fama", caindo seguidamente em poder dos espanhóis, que o capturaram e levaram para Espanha, onde o mataram.»
Duas versões, da mesma lenda, elevam a qualidade do Homem e do Soldado português que por amor a uma causa sacrifica a própria vida.
A primeira versão, diz-nos que «o Governador da Praça Forte de Elvas, por brincadeira e conhecendo a valentia do soldado, lhe prometera o posto de general e o Governo da praça se fosse capaz de ir a Badajoz arrancar aos espanhóis o estandarte que era nosso e o trouxesse consigo.»
Já na segunda versão, «o governador que não via com bons olhos o namoro da sua filha com determinado oficial seu, ter-lhe-á dito que só daria a mão de sua filha a um fidalgo ou oficial, que se tivesse tornado ilustre por um grande feito de armas. E referiu o governador a hipótese de recuperar o estandarte roubado a Portugal.»
Num e noutro caso se saem os audaciosos cavaleiros vencedores do feito, mas o governador nega-lhes a entrada na cidade ao fechar-lhes as portas da mesma, sendo ambos mortos por Castela, não sem que antes tivessem recuperado o ditoso estandarte.

E cogitava eu, ao volante do meu jeep que engolia, rasante às bermas e ao precipício, o agreste de curvas que descem a partir de Marvão, sobre a veracidade da lenda, emitindo para os meus botões mudos as mais variadas opiniões à revelia do seu autor, de quem nunca se chegou a conhecer o  nome, enquanto a viatura, num roncar de motor surdo, prosseguia nesta viagem itinerante, devorando sem descanso os quilómetros infindáveis de asfalto negro a separar-nos de qualquer outro ponto da civilização.
E de terra em terra lá fomos nós peregrinando, quase numa eterna romaria, quantas vezes por caminhos agrestes onde dificilmente  progredia o 4X4 ou por veredas insondáveis onde apenas era possível o percurso a pé, umas vezes entre aglomerados de fragas graníticas a quem a natureza brindou com formas curiosas, quantas vezes quase humanas, outras vezes por planuras mais dóceis e fáceis de domar onde as giestas e urzes se passeiam num mar amarelo das flores-do-cuco, aqui assim chamadas, que pela falta de um inverno rigoroso anunciam, já, uma primavera que ainda longe se adivinha.

Lá regressávamos ao asfalto, eu e o meu velho companheiro de viagem, depois de ter colhido a tal fotografia da tal pedra encravada na ladeira mais além, ou da velha árvore quase seca e de energúmeno tronco retorcido que se evidenciava, mais ao longe, na planura distante gritando-me o refrão "as árvores morrem de pé!". Na linha do horizonte um céu rubro queimava o fim do dia incendiando-o naquelas cambiantes poéticas que faz perder a noção do tempo a qualquer amante da natureza.
Não fora uma forte indigestão, provocada a este insatisfeito buscador de imagens, pelo acentuado das curvas entre Marvão e Castelo de Vide, que me obrigou a uma fugaz paragem a fim de procurar a cura milagrosa numa garrafa de água das Pedras, teria, pela certa, entrado pela tarde dentro, que bem perto se fazia já sentir a noite, de tripé em riste na busca da melhor silhueta que perpetuasse mais um pôr-do-sol diferente.

Suba agora, comigo, até Castelo Branco e embrenhe-se na cidade. Notará, pela certa e facilmente, duas áreas distintas: a antiga vila medieval, com as suas ruas estreitas e íngremes onde ainda se podem admirar muitas portadas manuelinas, e uma zona  moderna característica de uma cidade em desenvolvimento.
De Castelo Branco, erguida na encosta de um monte com a sua função histórica como fortaleza defensiva, de que é testemunha o castelo, avista-se um panorama que vai até à fronteira e às vertentes da Gardunha, vendo-se ainda o curso superior do Tejo. Como atracção turística, tem o leitor o extraordinário Jardim do Paço, criado no século XVIII pelo bispo João de Mendonça. De desenho formal, a sua singularidade reside nas abundantes estátuas de granito, de estilo barroco, representando apóstolos e santos, monarcas, leões e signos, que surgem entre as alamedas de buxo, ladeando escadarias ou mirando-se narcisicamente nas águas do lago.

Estamos agora nas Beiras, e o leitor a passar férias de inverno, algures, por aí... talvez em Castelo Branco, Almeida, Figueira de Castelo Rodrigo...  não   se   julgue, por isso,   menos   bafejado pela sorte,  pelo facto de não possuir o mar e as suas praias ali à mão. E se lhe falta apetência ou até mesmo vontade ou vocação para subir pedrarias ou descer ribanceiras, que tais exercícios fazem bem à saúde, pela certa ficará entusiasmado e não deixará de ir, depois de ver e conhecer, connosco, as dez aldeias do país consideradas históricas, e que se localizam na região.

Monsanto, a "aldeia-mais-portuguesa" onde a força da pedra fala por si; Piódão, a "aldeia-presépio" que a noite ilumina com fé; Castelo Novo, a "fonte-da-Gardunha" que a Forca ensombrou a vida; Idanha-a-Velha, a "aldeia das guerras-da-fé"; Sortelha, o "anel-de-pedra"; Castelo Mendo, o "vale-perdido"; Almeida, a "estrela-de-pedra"; Castelo Rodrigo, a "aldeia das ruínas-misteriosas"; Linhares, a aldeia "entre-o-céu-e-a-terra"; Marialva, o "planalto-das-lendas".
Para que o leitor da matéria não fique tão em branco, quanto ignorante eu estava antes de deitar mãos à obra nesta minha digressão, direi aqui muito pouco do muito que colhi por essas terras dentro destas aldeias históricas.

Idanha-a-Velha surge-nos de repente após uma curva da estrada e, para lá da "aldeia das guerras da fé", vê-se também imponente e altaneira a localidade de Monsanto.
No tempo dos romanos, provavelmente no período de Augusto (sec. I a.C.) foi fundada Civitas Igaeditanorum, mais tarde Egitania, já no tempo dos Visigodos. Vários vestígios poderá o leitor encontrar em Idanha-a-Velha, estando comprovado que os vestígios mais seguros se referem aos da época romana, sendo cientificamente certo que a povoação existia em 16 a.C.
E na pressa de chegar àquela que dizem ser a "Aldeia mais Portuguesa de Portugal", mal me apeei para desentorpecer as pernas em Idanha-a-Velha.

Da base da elevação que sobressai na paisagem envolvente, onde nasceu aquela que terá sido considerada um local sagrado vê-se, imponente, na Torre do Relógio ou  de  Lucano,  a  réplica  do galo de Prata, símbolo da atribuição de tal título.
Monsanto «recebe-nos de braços abertos. Sem rodeios mostra-nos, do alto do seu promontório, toda a campina de Idanha e extensas propriedades. Abre-nos o apetite para os pratos de caça, actividade de grande expressão na região. Antes do regresso, oportunidade para comprar uma recordação das adufeiras, o belo chouriço e queijo da região e uma das marafonas que, dizem, simbolizam a fertilidade» (sic).
É difícil descrever a beleza natural de Monsanto - natural e agreste - em meia dúzia de linhas. Em cada esquina uma surpresa… o Forno Comunitário, a Cisterna, a Capela de São Pedro de Vir-a-Corça, o Pelourinho, a Porta de Santo António, a Torre do Pião, a Casa de Uma Só Telha, a Casa onde Fernando Namora viveu e exerceu medicina, enfim… um mar de monumentos raros em pedra feitos. E a custo me arranquei ao dorso das pedras, sobre as quais impiedosamente me deitava, para colher o melhor ângulo que me permitisse enquadrar e obter a tal fotografia dramática e com o impacto visual que se impunha.

Viaje connosco no tempo e saia da A23 em direcção a Castelo Novo, já ocupado no Neolítico e Calcolítico por grupos humanos, e depois ao longo da Idade  do  Bronze,  época Romana e em período dos visigodos e muçulmanos.
Uma curiosidade para o visitante, são os vestígios da Forca, da época medieval, existentes na Rua do Calvário. Correspondem a uma pedra tendo duas caveiras esculpidas em relevo, outra com um jogo de tíbias, um sinal em forma de seta e um orifício onde se colocaria um dos esteios da forca. Destaca-se a localização de Castelo Novo num cabeço, visível de todo o lado, aspecto importante numa época em que a povoação possuía poder judicial.

Piódão é um excelente exemplo de como o homem se conseguiu adaptar aos espaços mais inóspitos criados pela natureza e fazer deles um lar. As dificuldades e as agruras do terreno de modo algum limitaram a ocupação de um espaço desde sempre considerado hostil ao homem. Povoação de ruas sinuosas, estreitas e pequenas,  ainda com o traçado medieval, contornando os limites da serra do Açor, circunda a encosta as suas casas, construídas apenas em xisto e dispostas em anfiteatro, integrando-se harmoniosamente na paisagem. Provavelmente foi a iluminação nocturna que lhe fez atribuir o epíteto de "Aldeia-Presépio". Contrastando com o xisto das paredes e telhados, o azul dos aros das portas e janelas é a única cor que ali se usa.
Como curiosidade, fique o leitor sabendo o que de curioso se colhe como ensinamento: que a inacessibilidade da terra levou ainda a que, noutros tempos, ela se tornasse o refúgio de foragidos à lei, como foi o caso de Diogo Lopes Pacheco, um dos assassinos de Inês de Castro, e João Brandão que «atacava de noite para se refugiar na casa do pároco durante o dia» (sic).

Sortelha, já no concelho de Sabugal, situa-se num esporão granítico dominante, no intuito de vigiar e dominar todo o espaço envolvente e, deste modo, prevenir as invasões inimigas. E, de Sortelha, dar-se-á apenas a conhecer ao leitor a razão da localidade ter o epíteto de "Anel-de-Pedra”, já que para ver o fraco número de construções e os poucos edifícios monumentais, não precisará, certamente, de guia.

«Certa controvérsia envolve o topónimo da povoação. Segundo uns autores, a denominação deriva, eventualmente, de um anel "Sortija" ou "Sortela", utilizado num jogo medieval, no qual os cavaleiros tentavam enfiar a sua lança. Para Viterbo, linguista, "Sortel" é um anel de pedras com poderes especiais, semelhante ao anel das feiticeiras. Por outro lado, este significado poderá estar relacionado com o formato circular/ovalado do aglomerado urbano. Para o arqueólogo Marcos Osório, o topónimo poderá derivar da palavra medieval "Sorte", pequena parcela agrícola, uma vez que a explicação relativa ao anel não surge nos documentos mais antigos. O facto de os terrenos de Sortelha não serem muito férteis poderá ter originado a denominação "Sortícula", sorte pequena». In "Aldeias Históricas de Portugal"


A cerca de 20 quilómetros de Almeida, localiza-se Castelo Mendo sobre um maciço granítico de 700 metros de altitude.
A pesar da grande importância histórica que lhe é atribuída já desde a Idade Média, pois devido à proximidade fronteiriça teve um papel importante na defesa e consolidação do território nacional, quer nos conflitos com Castela na época medieval, quer no século XVII com as Guerras da Restauração ou no século XIX com as Invasões Francesas, não cansaremos o leitor com a descrição dos locais que deve visitar, pois por si toma conhecimento deles, sem grande esforço, mas apenas dar a conhecer que foi em 1229 que D. Sancho II concedeu Carta de Feira à povoação, sendo considerada a primeira feira oficial do Reino. Realizava-se pela Páscoa, pelo São João e pelo São Miguel e tinha a duração de oito dias. Em 1281, D. Dinis tornou-a Feira Franca, com a periodicidade anual e a duração de quinze dias. Foi ainda D. Dinis quem nomeou como alcaide D. Mendo Mendes, o que veio originar o topónimo da Povoação.

Almeida, enquanto localidade, situa-se no Planalto das Mesas, a 2,5 Km da margem direita do Rio Côa e a 7 Km da fronteira com Espanha.
Tem gerado controvérsia a origem do seu topónimo. Para uns investigadores, Almeida deriva da palavra árabe «Al Meda» ou «Talmeida» que significava «mesa» devido a situar-se num planalto; para outros, o topónimo deriva de «Atmeidan», que significava «campo» ou «lugar de corrida de cavalos». Seja como for, esta localidade que foi assaz importante, desde a Idade Média até ao século XIX, na defesa militar do território, terá visto, certamente, o seu nome derivar do árabe,  pela  raiz  "Al" predominantemente de origem muçulmana.
E como um pouco de história não faz mal a ninguém, fique o leitor sabendo que, durante a Reconquista Cristã da Península Ibérica, aproximadamente entre 1039 e 1297, Almeida foi palco de inúmeras batalhas entre árabes, leoneses e, no período final, entre portugueses. Apenas em 1296 D. Dinis conquista definitivamente Almeida, mas foi com o Tratado de Alcanises, celebrado entre D. Fernando, rei de Leão e Castela, e D. Dinis, rei de Portugal, em 12 de Setembro de 1297, que Almeida é reconhecida, pelo primeiro rei, como pertença portuguesa. O tratado definiu os limites do território continental português, que não tiveram alteração posterior, à exceção da perda de Olivença em 1801.

E venha agora o leitor acabar connosco esta digressão pelas Aldeias Históricas de Portugal, ouvindo contar, por gentes de  antanho, certas lendas que se teceram e fizeram história, pelo menos na mente dos mais crédulos, por terras de Castelo Rodrigo, de Linhares e Marialva.
Castelo Rodrigo, a "aldeia das ruínas misteriosas", situa-se sobre uma alta e isolada colina, na cota de 770m a 820m, nos vastos domínios de Riba Côa, a 10 Km da margem direita do rio Côa, próximo da ribeira de Aguiar, 3 Km a sul de Figueira de Castelo Rodrigo e a 12,5 Km da raia espanhola.
«O assento primitivo desta fortaleza ficaria, supostamente, no cume da serra da Marofa». Presume-se que, quando chegaram os romanos à Península, se «constituísse um "oppidum" lusitano defendido por um poderoso castro com cidadela e muralhas torreadas». Desse período da "pax romana" subsistem vestígios de calçadas, moedas, materiais construtivos e parcelas de muralhas. Datará, também, «dessa época a construção da fortaleza, na qual Afonso IX de Leão terá mandado reconstruir as muralhas, em 1209, quando cria o "concelho perfeito" de Castelo Rodrigo, e lhe atribui foral». http://www.ippar.pt/monumentos/castelo_castrodrigo.html

Linhares, a aldeia "entre-o-céu-e-a-terra" ou a "catedral-do-parapente", da qual não poderíamos falar sem referir este desporto radical, com o seu castelo estrategicamente colocado sobre um monte de rochedos graníticos de onde se avista a estrada da Beira, é uma aldeia histórica do século XII. Embora sendo-o, ela continua agora a história com a inclusão de tal desporto tendo, para o efeito, uma escola e instalações próprias.
A noroeste da dominante Serra da Estrela e sobre o extenso e lindo vale do Mondego, numa altitude de 1200 metros e com um desnível de 480 é, realmente, o local por excelência, no nosso país, ao desenvolvimento de tal desporto radical.
Se quer sentir-se livre, libertar-se do stress diário provocado pelos seus afazeres citadinos, Linhares é o seu destino. Venha connosco encher os pulmões do ar puro da montanha e percorra o Parque Natural da Serra da Estrela.

Mas não é, pelas lendas contadas em livros, que se julga a nossa cultura; muito menos, por elas, se conhecem as terras e as suas gentes. Por isso, descubra por si o valor histórico que tais localidades têm. Visite os seus castelos, pedras sobre pedras, estratos sob estratos, testemunhos vivos esculpidos no tempo que falam de tantas batalhas travadas entre Mouros e Cristãos; percorra certas ruas onde imperavam sinagogas, provas de tantas vivências judaicas; entre nas suas capelas, de granito esculpidas, onde o silêncio impera guardando, para sempre, o murmúrio da última oração; percorra calçadas empedradas onde ressoa o eco das sandálias das hostes romanas que no antanho por aí passaram.

De Marialva conta-se, e canta-se (o fado), a propósito dos Marqueses de Marialva, que o fim das touradas reais em Portugal se ficou a dever ao fatídico desenlace da Última Tourada Real em Salvaterra. «O 4.º Marquês de Marialva, D. Pedro José de Alcântara de Menezes Noronha Coutinho, destacou-se pela sua sabedoria e destreza como cavaleiro, tendo seu filho, D. Manuel José, herdado do pai tais habilidades pelo que participava, por isso, todos os anos na tourada real que se realizava em Salvaterra de Magos, no Ribatejo.
Fatidicamente, numa dessas touradas, o filho do Marquês de Marialva foi colhido e morto pelo touro que lidava diante dos olhos de seu pai, do  Rei D. José e de toda a corte que, aterrada, assistia a tão lamentável acidente. O 4.º Marquês de Marialva, apesar da sua avançada idade, desce à praça e jurou vingar a morte do filho ou então morrer com ele. Ainda que impedido pelo rei, O Marquês de Marialva desce à praça, beija a fronte do filho e manda responder ao Rei: "El-Rei manda nos vivos e eu vou morrer! Sua Majestade pode tudo, menos desonrar os cabelos brancos do criado que o serve há tantos anos." Levantou do chão a espada de dois gumes, passou a capa pelo braço e cobriu-se, colocando-se no centro da arena com a coragem e o sangue frio de um verdadeiro fidalgo. O touro investe, brutal e cego de ira, mas o Marquês agilmente evita a pancada, luta durante uns minutos e depois enterra a espada no garrote do animal que cai morto a seus pés. Vingada a morte do filho, abraça-se ao seu corpo caído, cobre-o de beijos, e o Rei D. José ordena que durante o seu reinado jamais se realizassem touradas reais em Salvaterra.» (sic)

Fica a história de tal "fado", antes de, "neste País de Lendas e de Histórias feito", passarmos às Terras do Fim do Mundo - quando o tempo nos der tempo para isso - que se estendem para lá dos vastos mares de vinhas em socalcos e outros que breve serão de amendoeiras em flor, a cobrir, eternamente e na sua época devida, o Alto Douro e o Nordeste Transmontano.
Esse «Reino Maravilhoso» de Trás-os-Montes que nos ensina Torga, onde em cada homem há um poeta a abraçar «um mar de pedras» em «vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador.» (Miguel Torga in Portugal).


domingo, 24 de janeiro de 2016

A NOVA JANELA


MIGUEL GOMES 
Espreito as nuvens cinzentas pelas últimas vezes deitado no azul de napa da cama. O mau tempo aligeira-se, ansioso, acredito, por fugir das intempéries em que se transformaram os pensamentos das pessoas. 

O Inverno troca rápidos olhares com a Primavera, encolhe os ombros e sacode a cabeça, fazendo cair um nevoeiro lento, que se vai pegando ao início da tarde como se clamasse pela noite, quando todos dormem e nos sonhos dos humanos vivem apenas os medos económicos.

Esforço-me por concentrar os dez minutos do exercício em várias palavras, armazenando em partes da memória pequenas letras que possa, depois, puxar como que por um cordel e vê-las saírem, uma a uma, formando frases. Infelizmente, a sede de sentir faz-me sorver todos os episódios que vou colhendo da plantação de esperanças, causando o deserto de palavras onde vou caminhando em círculos.

Pouso o, aos olhos dos outros bastão, cajado e preparo-me para nova ronda decimal em nova posição. Ao meu lado suspiros, inspiros, expiros, vozes retorcidas pelas bocas descaídas, desesperanças em forma de falência de forças e os assobios, longínquos, de alguém que se transpira como se a meio de uma jorna labutasse, agora que a terra é linóleo e o tubérculo um berlinde esponjoso que se vai espremendo, como o suado e molhado lenço a roçar na testa enquanto uma caneca de tinto se ergueria à boca.

Colocam-me a mão no joelho, perguntam-me se está tudo bem, assusto-me e provoco um sorriso. Habituei-me a olhar para fora, para o céu, a ver ainda que por imaginação o céu azul sobre o nublado tempo e temperamento, a ouvir as cenas de cada episódio e a deleitar-me com os bons dias trocados de gabinete para gabinete, os até amanhã se Deus quiser e as melhoras para todos. Como devo ter todas as constelações gravadas na memória, até as do hemisfério Sul, fito o infinito e sinto-me azul, talvez, da cor do mar por reflectir o que o ascende, e pelos esgares do firmamento vou admirando o que falta descobrir até encontrar tudo de novo.

Ouço o cantar assíncrono, o papel sob a cabeça resvala e cai no chão, ergo-me e vejo-o amparado a um andarilho, o sorriso em meia boca, os olhos que brilham e as vozes que o seguem e rimam, num cantar à aniversariante auxiliar pelas suas quase trinta primaveras. Confesso que me emociono e sorrio também ao ver a ruborescida cara da menina, no centro do ginásio, a ouvir os aplausos da merecida salva de palmas do final da canção, para a qual me orgulho de ter contribuído.

Terei que encontrar nova janela do que é meu para poder olhar, de novo, o céu. 

Deixo que a claridade se crepuscule e permito-me ver as nuvens da mesma forma que me vejo ao entardecer no reflexo do vidro do carro, enquanto me conduzo a casa.

As sombras estremecem porque se começam a ver sem luz e agora que o dia ausenta as sombras vítreas que me nebulam, saio no vaguear da noite optando-me vagabundo, sem amaras que não a própria vida, vou lesto e nu porque nada me veste além da luminosidade obscura que orvalha dos candeeiros solitários. 

Dispo-me enquanto se vestem, do berço até aqui, peça a peça, para me deitar em palhas dormindo, a saga de levantar nada e querer poder tirar pele que seja, desabotoar corpo e salgalhar por aí como pétala ao vento em dia de tempestade. 

A meio caminho encontro outros, mesma direção sentidos diferentes, eu na ânsia de me livrar do supérfluo, outros na superfluocidade de se livrarem da ânsia, sigo confiante com o que me resta enrolado debaixo do braço e um abraço a tiracolo. 

Quão longe poderá estar?

sábado, 23 de janeiro de 2016

EM TRÂNSITO PELO PALCO TERRESTRE

JOSÉ EMANUEL QUEIRÓS
DR FOTO: ELSA CERQUEIRA
O mundo observado pelo indivíduo vai muito para além daquilo que o Universo fez deles (mundo e indivíduo). 

Entre mais de 400 milhões de sóis como os que se crê que possam constituir a galáxia, é bem possível que diversos astros-planetários tenham sido igualmente propensos ao despontar da Vida e neles prosperem outros indivíduos em diferenciados estádios da existência, mais e menos evoluídos, cumprindo um processo similar ao que na Terra partilhamos com displicência quanta baste. 

Se estivéssemos colocados à distância da Terra nos longínquos lugares da galáxia em que brilham as estrelas no céu nocturno nem suspeitaríamos da existência de um planeta com vida nestas órbitas solares e, nele residente, de uma Humanidade empedernida na faculdade de acessar livremente a consciência de sua própria natureza.

A percepção com que aferimos as condições físicas que nos são legadas neste singular endereço do Cosmos, traduzindo-se em conhecimento, tem em si mesma a limitação do significado da existência oculto para cada um. 

Todos somos protagonistas de uma grande odisseia astronómica que se cumpre na órbita ao Sol, em diferenciado estágio individual, sem memória de alistamento, condicionados e conduzidos por dogmas, paradigmas e preconceitos condutores criados pelo próprio homem, aceites como divinos ou tutelares e quase nunca questionados. 

Se existimos como individualidades e não somos gerados por iniciativa própria, algum propósito individual maior tem esta brevíssima emergência biofísica tridimensional ocorrida em palco terrestre e que a civilização vem mascarando no modo como as sociedades criaram todas as ilusões, poderes e submissões de que se alimentam, sem conseguirem apagar faculdades humanas intrínsecas, constituintes naturais da diversidade do Universo reflectido em cada um. 

Mais ou menos conscientemente, estamos envolvidos num processo individual e colectivo de auto-superação do qual ninguém está dispensado. É uma inevitabilidade inerente à própria existência em que vamos sendo caldeados pelas correntes do Universo que nos trouxeram ao plano terrestre, e nos concede as têmperas obtidas nos impulsos que nos levam depurados de volta à origem. 

Neste trânsito terreno os fluxos universais não são explícitos e, pelo facto, não se configura exercício de fácil compreensão para quem nele está posicionado sob a regência de normativos comuns da civilização, em consequência do consensualizado empirismo individual. A evolução de que todos tomamos parte ocorre a cada instante da vida de cada um, de modo insuspeito e diáfano. 

Perscrutando o planeta e a Vida desde a remota noite primordial dos tempos, entenderemos melhor o campo de ensaios que o cosmos joga na Terra, em permanente pulsar de superação entre o caos e a ordem, onde não há mal nem bem pelo qual o processo seja aferido ou regulado, senão à luz do entendimento e do critério humano.

Em suma, neste ínterim físico em que estamos mergulhados, cada um tem para si «coisa» que chegue para (re)solver.

No contexto físico planetário, a Natureza com os seus diversos sistemas terrestres – litológico, hidrográfico, atmosférico e magnetosférico – não são passíveis de adequação ao indivíduo ou aos interesses que este desenvolve no seu seio, quantas vezes distanciando-se inexoravelmente da ordem natural de funcionamento do próprio planeta onde estamos acolhidos. O contrário é, exactamente, o que deve ocorrer. Isto é, como seres inteligentes e conscientes devemos ter presente a noção de que o mundo não é nosso – nada no mundo nos pertence – e, enquanto seres biofísicos, nós é que lhe pertencemos, tal como tudo o que a Terra integra em seu amplo campo astronómico.

No decurso do nosso processo evolutivo, a ciência conquistou espaço de conhecimento aos domínios que antes tinham sido propriedade exclusiva das religiões, e o que parecia ser bem conduzido por regras e valores inquestionáveis, enquanto pilares inabaláveis da moral doutrinária, têm vindo a soçobrar diante da maturação consciencial a que o homem está fadado a percorrer como um desígnio superintendente ou um caminho inevitável a ser feito por todos. 

Neste processo, estamos permanentemente colocados e dispostos (mesmo sem que o suspeitemos) para a nossa própria auto-superação, seja no modo como valoramos o Mundo e nele colhemos as suas harmonias ou desarmonias correctoras, seja como o vemos, percepcionamos e dele fazemos nosso cadinho de vida em apuramento cosmoterreste. 

Perante as múltiplas circunstâncias e contextos diversos em que somos colocados no plano físico, jamais deixaremos de ser parte integrante do Universo iniciado algures de um caos gerador de ordem e de Vida do qual só nos afastamos por alguma conveniência cultural estranha, por esquecimento ou por desconhecimento. 

Nos tempos da existência comum, carecemos de vínculos mais elevados com a vida, urdidos no plano da consciência, que nos permitam abrir as portas das humanidades que trazemos esquecidas e que nos podem colocar num outro alinhamento consentâneo com a escala da nossa inserção nesta estação do Universo.

Ainda assim, fica um enigma insolúvel e uma dúvida consequente cuja resolução aportaria, de certo, os fundamentos para a instauração de uma outra ordem para as sociedades e um novo alinhamento para o homem: com que fim universal a Humanidade está em trânsito na galáxia por este dorso terrestre?..