RUI SANTOS |
O conceito de multiculturalismo surgiu como resposta à necessidade de gestão da diversidade cultural num Estado-nação, um meio de incluir essa diversidade na comunicação política. Para alguns, o multiculturalismo corresponde ao respeito pelas identidades culturais e pela igualdade de direitos e de oportunidades, e constitui o fundamento da democracia; para outros, pelo contrário, põe em causa a integridade e a unidade nacional, asseguradas, até então, pelo Estado. Para uns, constitui uma barreira contra o nacionalismo, enquanto para outros, inversamente, está na origem dos sentimentos e das expressões nacionalistas.
O multiculturalismo ganhou expressão na América do Norte após a década de 60 do século XX, em resposta a uma “exigência de reconhecimento” das populações em situação de minoria nacional – territorial e linguística – ou de minoria étnica com origem nas migrações. O conceito faz-se acompanhar por uma política a que Charles Taylor chama “a política do reconhecimento” (Taylor 1998: 45), tendo em vista a promoção da diversidade cultural numa perspetiva universalista. No Canadá, o confronto entre as línguas francesa e inglesa e os debates em torno de uma sociedade bilingue e multicultural foram decisivos para legitimar politicamente o conceito, graças ao multiculturalismo constitucional oficialmente assumido como característica fundamental do Estado canadiano.
O multiculturalismo foi igualmente alvo de atenção nos Estados Unidos, onde, como refere Riva Kastoryano, «Acha o seu fundamento no movimento dos direitos civis dos anos 60 e ganha forma com a aplicação, em 1965, das medidas de affirmative action. Traduzidas como “discriminação positiva”, a partir da interpretação do sociólogo Nathan Glazer, tais medidas consistem em reduzir as desigualdades raciais ou outras procurando reparar os danos causados pelas politicas passadas, nomeadamente pela escravatura e segregação racial» (Kastoryano 2004: 18). No que diz respeito à situação europeia, a mesma autora declara o seguinte: «Na Europa, o multiculturalismo corresponde a situações diversas consoante a estrutura do Estado e o reconhecimento das particularidades regionais e linguísticas. Com efeito, alguns países do Velho Continente institucionalizaram o pluralismo através da criação de regiões dotadas de poderes, como a Itália e a Espanha; outros erigiram o Estado sobre um pluralismo linguístico, como a Bélgica e a Suíça, com, em ambos os casos, comunidades linguísticas e territoriais dotadas de instituições próprias. Porém, em França, na Alemanha, na Grã-Bretanha, na Holanda, etc., o termo “multiculturalismo” reporta-se, como nos Estados Unidos, à forma de organização supostamente comunitária das populações resultantes da imigração em torno de uma nacionalidade ou de uma religião comum (ou as duas coisas) e à reivindicação das suas especificidades na esfera pública, como as minorias étnicas ou os Negros nos Estados Unidos» (Kastoryano 2004: 18-19).
Na Europa, ao uso da palavra “multiculturalismo” está subjacente o surgimento de estratégias políticas respeitantes aos migrantes e tal acontecimento implica o prolongamento do Estado-providência a um novo domínio – o da imigração – com a introdução de políticas sociais destinadas a “garantir a integração” das novas minorias na sociedade global.
O multiculturalismo é um modelo conceptual que estabelece as orientações, as estratégias, das políticas públicas e da identidade nacional em sociedades onde ocorre imigração e se verifica uma crescente diversidade étnico-cultural, representando a aceitação pública de grupos imigrantes e minoritários como comunidades distintas, diferenciáveis da maioria da população através da língua, da cultura e do comportamento social, e que possuem as suas próprias associações e infraestruturas sociais. Ao falar-se de multiculturalismo é-se obrigado a questionar diferentes e heterogéneas formas de domínio no seio das nossas sociedades e que são mantidas, e reproduzidas, como resultado das estruturas económicas e de conjugação de práticas e discursos de índole político-social. O multiculturalismo obriga ao reconhecimento da igualdade dos direitos aos membros desses grupos, sem que permaneça a expetativa de que abdiquem da sua diversidade, esperando-se, contudo, que admitam como válidos alguns valores fundamentais.
Ao falar-se de multiculturalismo não se deve inferir que multiculturalismo e sociedade multicultural são sinónimos ou causas diretas, mas ao invés, ter-se presente a distinção que Denys Cuche efetua entre estes dois conceitos: «Não devemos confundir multiculturalismo com o simples reconhecimento da existência de uma sociedade multicultural. Sempre existiram sociedades multiculturais e, de certo ponto de vista, podemos afirmar que, hoje, praticamente todos os Estados-nação são, queiram ou não admiti-lo, sociedades pluriculturais, devido precisamente à variedade dos grupos e das populações que os compõem. Nas grandes metrópoles contemporâneas, o espectáculo da diversidade cultural dá-se a ver praticamente em todo o lugar e a todo o momento. Fazer referência ao multiculturalismo não é contentarmo-nos com esta constatação. É reinvindicar um reconhecimento politico oficial da pluralidade cultural e um tratamento publico equitativo de todas as actividades culturais.» (Cuche 2006: 166).
É de vital importância ter-se a noção da distinção entre “multiculturalismo” e “sociedade multicultural”, do quanto diferentes eles são por vezes, o não efetuar esta distinção é da conveniência de muitos governos que se escudam no facto das suas sociedades serem multiculturais para afirmarem que possuem práticas multiculturais e dessa forma desviarem as atenções que recaiam nos seus Estados. Castles define multiculturalismo da seguinte forma: «O multiculturalismo é um modelo conceptual que define princípios orientadores das políticas públicas e da identidade nacional em sociedades onde se verifica imigração e uma crescente diversidade étnico-cultural. O multiculturalismo significa, de um modo geral, a aceitação pública dos grupos imigrantes e minoritários enquanto comunidades distintas, diferenciáveis da maioria da população através da língua, da cultura e do comportamento social, e que têm as suas próprias associações e infra-estruturas sociais. O multiculturalismo implica o reconhecimento de direitos iguais aos membros desses grupos em todas as esferas da sociedade, sem que exista a expectativa de que abdiquem da sua diversidade, esperando-se, contudo, que se conformem a alguns valores fundamentais» (Castles 2005: 132-133).
No que diz respeito às sociedades multiculturais, Taylor revela-nos que a base para a convivência entre diferentes grupos étnicos é o respeito: «As sociedades e comunidades multiculturais que defendem a liberdade e a igualdade para todos baseiam-se no respeito mútuo pelas diferenças culturais, políticas e intelectuais que não ultrapassem os limites do bom-senso. O respeito mútuo implica, por sua vez, a vontade e capacidade generalizadas de conciliar os nossos desentendimentos, de defendê-los perante aqueles de quem discordamos, de discernirmos entre divergência respeitável e desrespeitável, e de nos abrirmos e sermos receptivos à mudança quando precedida de crítica bem fundamentada» (Taylor 1998: 43).
O multiculturalismo rompe com a ideia dos Estados-nação homogéneos e monoculturais, ao mesmo tempo que procura a coesão territorial através de políticas destinadas a controlar as diferenças existentes entre a população do seu território. De acordo com o raciocínio de Castles: «Este modelo assume, basicamente, que a imigração conduzirá à fixação definitiva e ao nascimento de uma segunda geração e de outras subsequentes, que serão gerações de cidadãos e de nacionais. O multiculturalismo perpetua assim a ideia de uma pertença primária a uma sociedade e de uma lealdade para com um único Estado-nação» (Castles 2005: 109).
O multiculturalismo apresenta-se muitas vezes como ameaçador para o(s) grupo(s) maioritário(s) que habita(m) um determinado território, o que provoca reações por parte desse(s) grupo(s) através, por exemplo, da colocação de muitos mais obstáculos à imigração e ao acenar(em) com fantasmas sobre a degradação dos valores da cultura dominante. A propósito do multiculturalismo, Jurjo Torres Santomé escreve o seguinte: «No início o termo multiculturalismo aparece associado a lutas por uma maior democratização da sociedade, de reivindicação de maiores quotas de justiça social e ideais de igualdade de oportunidades. Todavia, à medida que este conceito revela o seu potencial revolucionário, os movimentos conservadores tratam de reformular e recontextualizar o seu significado, tornando-o compatível com as ideias conservadoras» (Santomé 2008: 21).
Pode-se assim falar de uma espécie de «pseudomulticulturalismo»; ou seja, quando os «outros», os que habitualmente são referidos como culturas dominadas, são vistos, sem contudo se prestar atenção ao que dizem. A sua presença e atuação é vista com base numa matriz de desprezo e paternalismo, algo colonialista, sem as deixar falar, pelo que as suas vozes acabam sendo interpretadas de uma forma completamente distorcida. Nos escassos espaços em que aparecem, fazem-no geralmente ocupando planos secundários; inclusivamente de um modo um tanto ou quanto decorativo, realçam aspetos folclóricos: a tonalidade da pele, o exotismo das suas vestes, etc. Santomé alerta para esta realidade ao afirmar que: «Nos escassos espaços em que se descrevem algumas das realidades em que participam, é muito frequente levar-se a cabo um tratamento que impede o seu questionamento; normalmente adotando uma estratégia semelhante à que utiliza a multinacional Walt Disney, ou a do grupo têxtil Benetton, silenciando os conflitos e despolitizando este tipo de realidades» (Santomé 2008: 21).
Falar de multiculturalismo obriga a questionar diferentes e heterogéneas formas de dominação que operam nas nossas sociedades e que são mantidas e reproduzidas não apenas como resultado de estruturas económicas, mas também através de uma forte orquestração de discursos e práticas que contribuem para a construção e definição das diferenças. Quando se fala de multiculturalismo não se pode esquecer que é preciso ter em consideração as relações de poder, de dominação e subordinação que se traduzem como fonte das diferenças culturais e da hierarquização entre distintas etnias.
Leitura de apoio:
Castles, Stephen (2005): Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios. Lisboa: Fim de Século.
Cuche, Denys (2006): A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. Lisboa: Fim de Século
Kastoryano, Riva (org) (2004): Que Identidade para a Europa?. Lisboa: Ulisseia.
Santomé, Jurjo Torres (2008): Multiculturalismo Anti-Racista. Porto: Profedições.
Taylor, Charles (1998): Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget.
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