terça-feira, 30 de setembro de 2014

FALAR DE POLÍTICA, HOJE

REGINA SARDOEIRA
DR
Escrever sobre política parece ser uma tarefa urgente e a que nenhum escritor responsável deve furtar-se, sob pena de estar a subverter a sua autêntica função. De facto, o escritor é lido, e mais ou menos seguido por aquele que o lê; ou então, a sua palavra é posta em causa e questionada, o que tem, decerto, mais importância do que o simples e passivo ato de seguir.

Ora, escrever sobre política é, de facto, escrever sobre a função humana mais ampla, visto que nós, cidadãos de uma democracia, somos, de facto (ou deveríamos sê-lo ou começar a sê-lo) os obreiros da nossa própria condição e, se queixas temos sobre o modo como decorre a organização do nosso mundo, é de nós mesmos que deveríamos, antes de mais, queixar-nos.

Uma primeira questão se impõe: que faço eu pela regulação da sociedade em que vivo, enquanto cidadão democrático, a não ser dirigir-me à mesa de voto, em datas previamente estabelecidas, e inserir na ranhura de uma caixa, a minha escolha, visando um símbolo identificador?

Se acaso alguém responder, de si para si mesmo, que faz mais do que isso, que intervém ativamente, que vigia, controla e exige o cumprimento dos programas daqueles em que delegou a sua vontade, eu demonstro-lhe, desde já, a minha admiração e louvo-lhe o procedimento. Porque, afinal, quando vamos a votos e desenhamos a cruz ao lado de uma imagem, o que estamos, de facto, a fazer é a escolher programas concretos e pessoas específicas para nos substituírem, enquanto representantes, nas diversas funções para as quais se candidataram. Por acaso alguém conhece, mesmo, o que se propõem fazer os indivíduos que aparecem no boletim de voto, à sombra de um símbolo? Leram o manifesto eleitoral, onde eles explicam o que pretendem executar em vosso nome, e conhecem-lhes a cara e a resenha biográfica que os carateriza, aproximadamente? Se responderem que sim, que sabem perfeitamente os programas desses vossos delegados, que os viram, ao menos representados numa fotografia, e se dispuseram a estudar-lhes o perfil, eu não consigo entender por que razão os deixam enganar-vos, permitindo que eles disputem as cadeiras, onde lhes dais o direito de se sentarem, ano após ano, década após década. Não consigo compreender como autorizam que eles continuem lá, disfrutando de benesses, à vossa custa, pondo e dispondo das vossas vidas com o aval que lhes deu o vosso voto. 

A verdade é que o cidadão continua a votar, resignadamente. A verdade é que o cidadão queixa-se, sente-se defraudado, prejudicado, humilhado: mas continua a delegar naqueles que considera incompetentes (porque os vê agir e os ouve falar) as decisões fundamentais da sua vida. A verdade é que o cidadão não acredita na democracia, com a qual convive há quatro dezenas de anos (em Portugal), não acredita no valor do seu voto, não acredita que a substituição de uns, pelos outros venha transformar, positivamente, a nossa comum situação: mas prossegue, de cabeça baixa, a aceitar o séquito tenebroso dos planos retorcidos e desonestos com que lhes governam os destinos, crendo que eles podem tudo e nós temos apenas que submeter-nos e sofrer!

Todos os dias observo estas e outras realidades do nosso mundo democrático, este mundo em que eu e vós deveríamos ser soberanos e não somos, em que eu e vós deveríamos ter os nossos direitos básicos garantidos e não temos, em que eu e vós deveríamos poder fruir a existência com otimismo, e de acordo com aquilo a que chamamos realização pessoal, e não fruímos, todos os dias observo estes e outros sinais de que não passamos de escravos, de marionetas, de degraus sobre os quais saltam aqueles que elegemos para nos servirem: e não consigo entender o que andamos nós a fazer nesta sociedade absurda. Não consigo entender por onde respiram os homens esclarecidos deste século XXI, tão recheado de informação, tão veloz na capacidade de difusão de ideias, tão eficaz na propalação de testemunhos, tão profícuo em recursos tecnológicos, capazes de agregarem os homens à escala global, não sei por que se calaram; ou se acaso essa classe, quais dinossauros intelectuais, foi extinta, deixando no seu lugar indivíduos passivos e acomodados, multidões de cérebros unidos em sinapses de conformismo alienante.

Enquanto escritora, devo denunciar o vírus do nosso tempo para que conste. E o vírus não é a corrupção instalada nos órgãos do poder, não é a crise financeira que nos empurrou para despenhadeiros de carência, não é o discurso batido e esvaziado daqueles a que chamamos políticos e que aceitamos como nossos líderes, não é o negócio fraudulento dos grupos económicos, sejam eles quais forem, não é a incompetência calamitosa daqueles que gerem o nosso mundo…o vírus é a apatia generalizada dos cidadãos, encolhidos nas suas conchas e murmurando críticas vãs pelas praças públicas dos nossos dias, o vírus é a ignorância que vamos ocultando com capas e mais capas de conhecimentos inúteis, o vírus é o individualismo mentecapto com que vamos tratando da nossa vidazinha, pois ela não dura sempre e só temos direito a esta, o vírus é a decadência moral e ética deste tempo que só pode caminhar para uma espécie de apocalipse. 

Humanos, nós? Eu vejo hordas de indivíduos estremunhados, ou francamente adormecidos, rebanhos de reses a caminhar debaixo do cajado e da voz de pastores envilecidos (e a sentirem-se livres), multidões de seres aberrantes, absurdos e indignos da própria humanidade que reclamam.

O que diria de nós um habitante da selva – o nosso quase igual orangotango, por exemplo, ou um exército de formigas, em ordeira e racional coesão – se acaso pudesse manifestar, com a nossa voz (já que a deles não conseguimos descodificar) o que observa e interpreta do comportamento dos que afirmam ser-lhes infinitamente superiores? 

Certamente rir-se-iam muito da nossa condição ridícula e mísera, todos esses que, apesar de inferiores (dizemos nós), têm a sua vida organizada e proficiente, sabem exatamente o lugar que ocupam, têm onde dormir e o que comer (não fossemos nós, humanos, a destruir também, de forma abusiva, a sua originária condição de vida) , sabem quem é o chefe e porquê, sabem de quem precisam de defender-se e porquê, sabem o que é preciso saber para cumprir um certo paradigma que lhes diz intrinsecamente respeito. 

Irracionais, eles? Se no mundo existe um grão de sensatez, um pingo de organização, uma réstia de sabedoria, elas estão, inteiramente, do lado desses, que nos apressamos a reprimir, a domesticar, a meter em jaulas, a escravizar, tornando-os nossos semelhantes pela incapacidade que, a partir dessa altura têm de se autorregularem.

Não existe qualquer conclusão à vista, para este texto em que me propus e dispus a falar de política. Decerto quem me ler pensará que discutir política é outra coisa, muito mais erudita, que discutir política é falar da guerra e dos seus senhores e também das suas vítimas, que abordar o tema da política é mostrar que estamos a par dos grandes problemas e das grandes soluções, impressos em manuais ou debatidos por especialistas à hora do jantar. Decerto quem me ler pensará que sou ingénua, ou fora do tempo, e que agora urge acompanhar a corrente ou brincar às lutas de freguesia, que trazer à cena a questão da condição humana e chamar-lhe o seu verdadeiro nome é um insulto a tanta inteligência, desdobrada em tantos manifestos por tantos e tão sapientes observadores. 

Mas eu insisto: enquanto o homem, individual e coletivamente, não retomar a sua real dignidade e estraçalhar isto que construiu e o fez tornar-se um insulto para si próprio, não poderei escrever mais nada sobre política, já que a resposta, que provavelmente terei, não colherá qualquer resultado, enquanto não tiverem caído as vendas e as mordaças que todos em conjunto fomos construindo.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

SETEMBRO E O OUTONO...

CATARINA DINIS
DR
Irremediavelmente estamos no Outono. O Outono sinonimo de maturidade, da cristalização dos sonhos, o partir das andorinhas, o chegar da imensidão de folhas coloridas espalhadas pelo chão, a traçar as nossas rotas diárias. Outono o regresso a rotina, ou a quebra da monotonia… como assim entendermos…

O Outono é também uma excelente estação do ano para escrever. Sair, caminhar entre as folhas, entre as pingas da chuva, olhar em redor e escrever incessantemente, deixar fluir cada cor em cada palavra de poesia e prosa.

Setembro de origem latina Septem (sete), sendo que era o sétimo mês no calendário Romano que apenas começava no nosso Março… é o mês nos traz o belo Outono, o regresso as aulas e ao trabalho, traz-nos as vindimas e as uvas douradas pelo sol quente do Verão saudoso.

Setembro carregado de datas e histórias como todos os meses que vão viajando pelo nosso calendário, algumas das quais achei pertinente deixar uma palavra…

Assim em setembro mas de outros anos, décadas, temos os restos do Titanic que são encontrados por uma expedição americana e francesa; a independência do Uzbequistão, nascimento da internet, ao dois computadores trocarem dados, queda do regime de Roma, proclamação da Republica Francesa, é criado o Google, e o servidor de internet português Sapo, ratificação do Tratado de Tordesilhas, é inventado o cachorro quente, estreia em Technicolor o filme, O feiticeiro de Oz, iniciando a cor no cinema; a mudança do Ocidente com o ataque terrorista das Torres Gémeas e ao Pentágono nos Estados Unidos; Lehman Brothers declara falência e começa a crise económica; início da Guerra da Independência do México, que duraria mais de 10 anos; Desembarque das tropas aliadas na Guerra da Crimeia; foi feita a patente da lâmpada elétrica… é interessante como o tempo passa e passou através da historia e de grandes homens que marcaram para sempre os livros.

Não haja duvida que Outono e Setembro nos trazem conhecimento, nos trazem a sabedoria.

domingo, 28 de setembro de 2014

«NÃO TENHO TEMPO!»

JORGE ALMEIDA
DR
“Não tenho tempo!” “Não tenho tempo!” - Dizemos nós muitas vezes. Quando nascemos, recebemos o maravilhoso presente oferecido pelos nossos pais que é a vida acondicionada no papel de embrulho chamado tempo. 

Desde a primeira respiração, vamos abrindo o embrulho, rasgando o papel para libertarmos a vida. Logo que a vida começa a sair do embrulho, como se fosse um pintainho a sair do ovo, não poderemos voltar a embrulhar a vida nem recuperar o tempo rasgado, tal como não poderemos voltar a colocar pasta de dentes na embalagem que a conteve. 

Assim, a vida vai consumindo o tempo à medida que se liberta, como se a vida fosse a chama e o tempo uma vela de cera que se vai esgotando: quando a vela desaparecer, levará a chama consigo. O que temos de fazer é conseguir que a nossa chama brilhe e ilumine o caminho de alguém, enquanto está acesa. “Não tenho tempo!” – repetimos nós, como desculpa para o que não queremos fazer (e temos direito de o dizer), pois o tempo é demasiado precioso para o desperdiçarmos com o que não queremos fazer. 

Cada momento nos é dado apenas uma vez, se não o aproveitarmos, ele foge-nos por entre os dedos e será um momento perdido. Quando deixamos uma luz acesa num quarto vazio, estamos a desperdiçar eletricidade, que comparada com o preço do tempo é muito barata.

 Todos nós já desperdiçámos momentos, porque tivemos de fazer algo que detestávamos. Seria por dever, para cumprir uma norma social ou simplesmente por não termos nada melhor para fazer… Qualquer que tenha sido o motivo, o tempo que gastámos foi consumido e não nos será devolvido. 

Todos nós também já tivemos momentos que gostaríamos de voltar a viver. São esses os momentos que valeram a pena terem sido vividos e em que o tempo foi aproveitado. Um dia, olhando para o presente oferecido à nascença, já quase sem papel de embrulho, saberemos se o presente foi bom e se terá valido a pena pela quantidade e qualidade desses momentos.

 “Não tenho tempo!” – diremos um dia e isso será de facto uma verdade cruel e indesmentível.

sábado, 27 de setembro de 2014

A FOME DE CRISE E A POBREZA DE ESPÍRITO

J. EMANUEL QUEIRÓS
DR
Depois de 2008, a institucionalização da crise em Portugal teve seu tempo de preparação, dispos de seus cavaleiros, seus pajens e mordomos. Genericamente, aprumam-se disciplinadamente como ‘soldadinhos de chumbo’ retransmitindo as vozes da ribalta mais iluminadas; alinham-se pelas teses difundidas pelos correligionários mais graduados e comportam-se como serventuários das correntes em exercício. Em toda a sua extensão, formam exércitos informais só distintos pelas cores dos uniformes, movidos por dispensáveis crenças indómitas, sempre prontos a acolitar nos santos ofícios e disponíveis a seguir acriticamente cortejos e procissões ressonantes com o seguidismo da fé e do sectarismo. 

Presentemente, na Europa há cerca de 15 milhões de pessoas sem segurança alimentar, enquanto em Portugal a pobreza pode já estar a afectar 20% dos nossos concidadãos, algo equivalente a 2 milhões de pessoas. 

Apesar da dimensão populacional moderada, o contributo português para a pobreza na Europa é enorme e ela não surge de geração espontânea nem é retransmitida geneticamente. Estudos económicos recentes feitos por académicos portugueses insuspeitos concluíram que, desde 2007/2008, foram tirados «3,6 mil milhões aos salários e deram 2,6 mil milhões ao capital». 

O propósito proteccionista concedido a alguns predestinados donos do regime fica claro, enquanto, em nome do país e do Estado, os mais desprotegidos passam a constituir um impeçilho que, pelo peso social e o contraste negativo, importava descartar de algum modo.

Durante a consolidação do cenário do cenário da crise, engendrado com o propósito de inviabilizar o país para a maioria das pessoas, diferentes vozes têm tido significativa amplificação, percebendo-se em cada uma sua orientação e seu alinhamento de princípio. 

Era suposto que aquele povão que ‘comia bifes todos os dias’, e sem possibilidades para tanto, teria de reduzir à ração e à qualidade alimentar, e, como detentor dos maus hábitos de ‘lavar os dentes com a torneira aberta’, teria de passar a poupar na água, no detergente e na escova. Teríamos, assim, “que empobrecer muito, mas sobretudo vamos ter de reaprender a viver mais pobres", dizia em Novembro de 2012 a presidente do «Banco Alimentar Contra a Fome», sem saber que os portugueses são o povo da Europa que mais água poupa.

Ora, pois!... Se até os ‘sem-abrigo aguentam’ passar por muito maiores níveis de carência, por que é que este povo ordinário e reles – que não sai do ciclo do remedeio e da pobreza por serem ‘profissionais da pobreza’ e porque ‘fazem da mendicidade um modo de vida’ –, não havia de aguentar?... 

É interessante percebermos como dois indivíduos colocados em papéis sociais relevantes e em posições diametralmente opostas podem ter, em discursos diferenciados, a mesma orientação coincidente com a cartilha de um Governo dissociado das causas sociais. 

Por um lado, a senhora Isabel Jonet, enquanto presidente do «Banco Alimentar contra a Fome», deixava a marca tendencialmente infantilizadora, inadequada para o seu estatuto cívico, usando uma discorrência aviltante, com referenciação à fome e à pobreza de que se alimenta e lhe confere notoriedade até chegar a presidente da Federação Europeia dos Bancos Alimentares. Por outro, Fernando Ulrich, na qualidade de presidente executivo do banco BPI, defendia “mais austeridade para o país” enquanto o seu banco beneficiava de um empréstimo financeiro do Estado no montante de 1,3 Mil Milhões de euros.

A um, a caridade e a fome dão-lhe o poleiro doirado, a notoriedade, a afectação de pronúncia, para o desaforo produzido. A outro, afortunado pelos poderes conquistados com a fortuna alheia e pela garantida protecção governamental, produz o dislate com o maior desplante de um ego espaçoso alicerçado em couçados alforges. Ambos, em função serventuária do sistema e do regime e percebe-se porquê.

Com o sofisma propalado aos quatro ventos nos órgãos de comunicação social, cada um pelo seu lado, devem divertir-se 'à grande!' todas as vezes que são matéria de notícia, por quanta insensatez beata e programática debitam num claro papelão de serviço ao poder. Não ao povo, em geral, de que se servem nas suas actividades, muito menos aos manifestamente carenciados que nem chegam a incomodar.

Já no decurso do corrente mês, o antigo presidente do CDS-PP Adriano Moreira, criticando a Europa pelo neo-riquismo que presentemente divide a "Europa dos pobres" e "Europa dos ricos", e denunciando os incitamentos à separação dos portugueses entre ricos e pobres, apontou o problema essencial que importa resolver em Portugal: “é pão na mesa e trabalho”. 

Bem distintas são as análises e os diagnósticos efectuados com seriedade à causa em questão, fazendo crer que a reflexão e a abordagem das problemas que afectam a sociedade e infernizam a vida das pessoas não está ao alcance de qualquer um, nem as opiniões debitadas para consumo público valem todas por igual.

Neste contexto da crise em Portugal, não há diferença alguma entre ouvir Isabel Jonet ou Fernando Ulrich. Com estatutos diferenciados mas protagonizando papéis semelhantes, os dois personagens configuram o exemplo acabado do sarcasmo na história da ‘pimenta e do refresco’. Falam de barriga cheia e na abastança da fome, ambos estendem seu papelão na rua, reincidindo em enjoativas e bafientas refeições doutrinárias. 

Para qualquer um dos casos, a fome que se alimenta na crise é de extrema pobreza de espírito, passível de ser erradicada com um pouco de sensibilidade social.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

“NO TE ENTIENDO”


Ricardo chegara a casa abatido, triste e conformado. Raquel, antevendo o pior, atirou, aflita:
- Então, homem? Que te disse o doutor?
- Que o caso está feio…
- Mas feio… como?
- Feio! Mau! A cara dele não indicava nada de bom!
- Pois… Feio, mau… o quê? Que doença é que tens tu?
- Qualquer coisa no intestino… Não sei bem explicar…
- Então, tu estás mal e não sabes de quê? Tu não lhe perguntaste? E ele, o doutor, não disse do que padecias?!
- Lá dizer, disse, mas eu não percebi bem… Só sei que é qualquer “coisa” grave… Olha… receitou-me isto. Amanhã tenho de aviar a receita na farmácia.

Não, esta não é uma conversa entre dois velhinhos analfabetos e atadinhos que mal sabem ler! Esta é uma
GABRIEL VILAS BOAS
DR
conversa a que assisti, algumas vezes, entre duas pessoas, da classe média ou média alta, muitas vezes licenciados, depois da ida ao médico duma delas. 

E a razão de tamanha ignorância não é só o estúpido medo em confrontar-se com uma realidade cruel, mas a evidente dificuldade de muitos de nós compreender o que os médicos nos dizem e até a sua prescrição. 

É certo que muito vocabulário médico é técnico, mas é sabida a relutância que muitos senhores doutores têm em explicar, dum modo simples e eficaz, aquilo que o paciente padece e o tipo de tratamento que lhe será ministrado. Do lado do paciente, sobra a vergonha de perguntar, de pedir para “trocar por miúdos”, não querendo dar parte de fraco. 

Nunca entendi esta maneira de pensar e agir. Sempre que vou ao médico, quero saber, claramente, as maleitas de que sofro, a sua perigosidade, o tratamento indicado, o seu grau de eficácia… enfim, tudo o que for possível. Quando um amigo sofre algum inesperado revés de saúde, aplico-lhe a mesma “receita”. Todavia a maioria das pessoas não age assim. Por isso, não me espantou mesmo nada uma notícia que li há uma semana, segundo a qual 61% dos portugueses não entendia aquilo que os médicos prescreviam.

Também não me surpreende que o mesmo se passe nas escolas, nas repartições públicas, nos tribunais, em alguns programas de televisão. Sinto com desgosto que a maioria da população portuguesa sofre de iliteracia. Uns em maior grau, outros em menor! 

E a culpa não é apenas dos iletrados que se deixaram arrastar para os territórios escuros da ignorância. Muitas vezes, sinto que médicos, professores, advogados, juízes, jornalistas, políticos não se preocupam em comunicar, mas em explanar o seu saber com o maior e requintado virtuosismo técnico e linguístico, como se estivessem em frente dum espelho e se autocontemplassem. Se as pessoas que estão na sua frente perceberam ou deixaram de perceber, é-lhes quase indiferente. No entanto, se a comunicação não passa, o seu ato foi duma profunda irrelevância e todo aquele palavreado aproximou-se mais da jactância do que da importância. 

Comunicar bem é uma arte. Não significa descer o nível da conversa, usar vocabulário infantil ou grosseiro ou estar sempre a usar metáforas rústicas para explicar o mais simples pormenor. Comunicar bem é usar um vocabulário simples e eficaz, adequado às circunstâncias e ao nível social e cultural do nosso interlocutor, sem nunca desrespeitar a sua inteligência.

Os meus melhores professores eram homens e mulheres extremamente cultos, com a capacidade de palestrar durante horas com a elegância literária dum poeta, mas que sempre optaram por me ensinar com a sapiência dum professor que poucas vezes me fez sentir um aluno. 

O médico do Ricardo não era cubano, galego ou ucraniano. O médico do Ricardo era português e tinha uma grande capacidade de diagnose e prescrevia com enorme acerto, mas raramente levanta a cabeça para olhar, no fundo dos olhos, os seus pacientes e reparar nos seus gestos contraídos que surdamente berravam

“Não te entendo!”

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

ESTAÇÕES DO MEU (DES)ENCANTO

ANABELA BORGES
DR
Oh, que saudades eu tenho do tempo claro e limpo em que o céu todo se descobre e deixa ver mais longe!

Oh, que saudades dos alvores transparentes como tules, dos pássaros em infindos desafios e dos entardeceres lentos como marés que se espraiam sem canseira de rebentar. 

Oh, que saudades da claridade das serras ao longe!

Já não sinto o calor dos raios solares, límpidos e directos, a incidir-me na pele desejosa dessas dádivas celestes. Já não sinto as estações como elas se usavam transmudar, nem de que matéria se fazem, não sei da certeza dos dias sem consultar o calendário. Não sei se é Verão ou se é Primavera, porque nestas estações faz Outono todo o tempo. Só não me engana o Inverno, que, quando se instala, vem sempre para ficar. O Inverno permanece, as outras estações brincam de esconde-esconde.

O calendário diz-me que estamos entrados no Outono, mas, na verdade, já lá estávamos há muito, como num espanto que não desaparece, como num ano em que não cabe o Verão, metidos que fomos numa bolha de ar morno onde trovões, ventos e chuvas desabam tropicalmente numa acesa rebentina, tudo baço em volta, baço de um branco fosco, uma borrasca que não deixa ver além. 

E o Verão, que é feito?

Oh, que saudades eu tenho! 

E já estou a ficar saudosa e piegas demais, como diz no poema de Casimiro de Abreu: “Oh! que saudades que tenho / Da aurora da minha vida, / Da minha infância querida / Que os anos não trazem mais!”

Lembro-me de quando era adolescente, de passar uma boa parte das férias grandes em casa a ler, a escrever, a desenhar, ou a ver televisão (sempre fui muito do refúgio do lar, continuo a sê-lo), enquanto o resto da família e a vizinhança andava num vai-vém, num dentro e fora e em passeios e saídas, como é típico dos dias quentes. Lá fora, fazia um sol de estio, claro, límpido e quente, um sol descoberto que inundava tudo de luz e cor. Era um sol que aquecia sem queimar. Pelo menos, é assim que me lembro dele. Lembro-me que, ao fim de umas duas horas seguidas dentro de casa, como era o tempo de vestir pouca roupa, começava a ficar com frio nos pés e nas mãos. O tempo era bom, era quente, mas não queimava. Então, era só chegar-me à varanda ou ao terreiro inundados de sol e deixar-me lá estar por um tempo a beber aquele calor. Era um sol que me aquecia o corpo, entrava-me na pele, que do contraste que trazia do interior da casa, ficava ao início cheia de pequenos pontilhados, pele-de-galinha. Era um sol que me fazia cócegas no peito, inundava-me a alma de boa-disposição, iluminava-me o cérebro de ideias bonançosas.

Lembro-me de começarem as aulas e, em Outubro, um sol pálido pedia um casaquinho de malha à sombra, num arrepio de pele e os dedos dos pés arrefeciam, a querer despedir-se das sandálias de couro para darem a vez aos ténis de pano. As botas vinham mais tarde, e o Inverno que chegava não era de brincadeiras – era muito frio e rigoroso, mas cumpria as leis do calendário, ia embora quando fosse de ir. Agora, ando de botas quase o ano inteiro, e quando não calha em pleno Verão…

Aquela luz era cheia de uma claridade limpa e quente, que me deixava com uma felicidade tamanha, difícil de explicar. 

Era o que me apetecia agora.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

REFERÊNCIAS LITERÁRIAS

REGINA SARDOEIRA
DR
Sempre que me perguntam que livro, música ou filme mais me marcou na vida, confesso que tenho extrema dificuldade em responder. E, não raras vezes, respondo, para desgosto de quem assim me questiona, que, provavelmente, será o próximo, ou então, o que vier, a seguir ao próximo. Não equaciono as marcas da minha vida, começando por detrás, e detendo-me aí, mas almejando que o presente e o futuro me reservem novos motivos para me maravilhar e aprender.

Porém há, de facto, livros a que regresso (falemos de livros), livros que por mais lidos e interpretados e parafraseados ou citados, me dão sempre matéria nova de pensamento ou motivo inspirador para o momento vivido, pelo que os trato como entidades mágicas, cujas páginas encerram verdades insofismáveis…sobre mim mesma!

Logo, se me impusessem a obrigatoriedade de criar uma lista, onde assinalasse as obras da minha vida, inevitavelmente, o primeiro lugar caberia a “Assim Falava Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche. 

Mas este primeiro lugar tem mais do que um significado. 

Ofereceram-me o livro quando tinha 19 anos e logo fui imbuída pelo fascínio metafórico de Zaratustra, pelas palavras profundas, aqui e ali, enigmáticas, ora poéticas, verdadeiros cânticos, ora verrumantes, autênticas farpas atiradas às consciências trôpegas, e sempre o mago persa a discursar perante o mundo ou a retirar-se para a sua caverna, onde a águia e a serpente, os seus fiéis animais, o aguardavam. 

O tempo correu, vieram outros livros e outras devoções, mas aquela obra de Nietzsche permaneceu o companheiro dileto. Não sei se alguma vez cheguei a lê-lo do início ao fim, capítulo após capítulo; mas tenho a certeza que o conheço intimamente e sei que, sempre que o abro, ao acaso, o texto que surge contém as palavras que precisava de ler naquela hora. Evidentemente que o fascínio por “Assim Falava Zaratustra” não pode esgotar-se nestes segredos que as palavras me revelam, sempre que procuro a solução de um enigma; parece-me mesmo que qualquer livro insignificante poderá conter um amontoado de textos e de frases que, uma vez lidas num certo momento, parecem ser a resposta aos nossos anseios momentâneos. 

Friedrich Nietzsche é um escritor cuja arte atingiu um esplendor, nesta obra, que talvez não tenha sido ainda igualada; é um filósofo, cujos aforismos e sentenças contêm a profecia do nosso tempo; é um poeta, cujo lirismo se faz melodia e soa música perfeita aos nossos ouvidos. Não foi por acaso que Richard Strauss compôs o poema sinfónico, “Assim Falava Zaratustra”, vertendo em música os cantos do profeta; e os 35 minutos que dura a composição musical transportam o ouvinte, que também tenha sido leitor de Nietzsche, para atmosferas vibrantes, pungentes, eufóricas, sinistras, e sentem o espírito do poeta/filósofo a pairar nas ondas sonoras que lhe arrepiarão, sem sombras para dúvida, toda a sensibilidade. 

Deste modo, não consegui, em todos estes anos, destronar o Zaratustra de Nietzsche, não consegui negá-lo, como sei que fizeram certos leitores incautos, que não souberam ler a metáfora, por detrás da apóstrofe violenta, que, enviesando as palavras daqueles textos magníficos, captaram a apologia do mal e da violência e tiveram medo de se precipitarem, eles próprios, no abismo. Hoje, como quando tinha 19 anos, “Assim Falava Zaratustra”, é a obra de referência da minha vida de leitora.

Mas, como disse, não me detive aí, continuei sempre à procura, e encontrei outra obra magnífica que saboreei palavra a palavra, receosa de vê-la acabar – o livro é bastante pequeno – e a que regressei, quase de imediato, porque necessitava de sorver mais um pouco do indizível encanto de um narrador extraordinário. Falo de “O Leitor”, de Bernard Schlinck, falo de uma história narrada em primeira pessoa, com tal cunho de veracidade, com uma dose tão elevada de honestidade, simultaneamente intelectual e existencial, que a mente, o intelecto, o espírito, nele se prendem de modo absoluto. Curiosamente, vi o filme homónimo antes de ler o livro e percebi que o realizador, Stephen Daldry, soube captar o âmago de uma história pungente e patenteá-la, ali, com absoluta autenticidade. 

Confirmei, depois de ler “O Leitor”, de Bernard Scllinck, que há escritores honestos, cujas palavras não podem ser substituídas por outras, cujo deslizar da narrativa, até ao fim, só pode ser aquele e nenhum outro. Soube ainda que o que procuro, hoje, nas leituras que faço, é esse poder da palavra, essa arte ou sabedoria de acertar, sem hesitações de espécie alguma, no termo exato para exprimir, exatamente, a circunstância a narrar, e fazer com que tenhamos que a interiorizar e sofrer na sua estrita objetividade. 

Desta mesma estirpe é o sul-africano John Maxweel Coetzee, cuja obra li, integralmente, depois de o autor ter sido laureado com o prémio Nobel, em 2003. Curiosamente, não era um autor conhecido, nem sei se estava traduzido em português, antes do Nobel, o prémio teve o condão de «obrigar» os tradutores a porem-se em ação e os editores a trazê-lo ao mercado; nem sequer era amado na África do Sul, que o depreciou antes, para se desfazer em vénias, depois da escolha feita pela Academia de Estocolmo. E, quem ler Maxwell Coetzee, poderá, sem dúvida, entender por que não era amado na sua terra esse extraordinário escritor. 

Citarei, de todos os livros de Coetzee, “Desgraça”, pela forma magistral com que o autor consegue descrever a existência solitária de uma mulher, idosa e doente, escrevendo, exatamente, como se fosse mulher e conseguisse penetrar o universo feminino em toda a sua dimensão. “Desgraça”, de Maxwell Coetzee, fez com que eu percebesse que o verdadeiro escritor, aquele que sonda a raiz do tempo e da vida e a traz, em livro, à contemplação do mundo, encerra em si muitos narradores, que vão ganhando voz, e podem ser homens, mulheres, crianças, gatos ou pássaros, e sê-lo, autenticamente.

E então, porque também eu sou escritora, porque também eu encerro narradores secretos, ocultos até de mim própria, tenho andado a ler dois livros que escrevi; e a minha acutilância de leitora conseguiu separar-se da condição de autora, e transformei-os, também, em livros de referência, que insiro, sem pretensiosismos ou pudor, na minha lista de referências literárias. Falo de “O Pulo do Lobo”, uma saga existencial, onde as várias personagens se cruzam e descruzam nos altos e baixos dos seus percursos humanos e, agora que ando a lê-lo, descubro a autenticidade paradigmática de um certo narrador que há em mim e se desocultou, para se transcender, numa obra que bem merecia ser mais amplamente conhecida. Antes disso, li “O Besta Célere”, obra cujo narrador é de outra região do meu íntimo, obra que desafia muitas convenções linguísticas, porque assim o quis o intérprete que me possuiu, enquanto narrava a história desse homem hiperbólico, e contudo, demasiado humano. 

São, sem dúvida, estes dois romances da minha autoria, obras que me saíram da mente e dos dedos, mas que hoje destaco de mim, pois, no ato de publicar, conferi-lhes autonomia. 

E desengane-se todo aquele que pensa (ou pensou), ao ler-me, que é um ato de imodéstia censurável, dar aos meus próprios livros semelhante conotação. Reparem, pensem: se eu, leitora experiente e conhecedora, fui capaz de publicar obras que eu própria produzi, não seria porque tinha a plena consciência do seu valor e que, por isso, era necessário partilhá-las? Se agora as negasse, ou se me encerrasse em mutismo, relativamente a elas e ao seu valor, não seria, essa, uma atitude hipócrita e dissimulada que não se ajusta, nem um pouco, ao meu modo de ser? 

Por isso, junto-me a Friedrich Nietzsche e a “Assim Falava Zaratustra”, acompanho Bernard Schlinck e “O Leitor”, irmano-me com John Maxwell Coetzee e “Desgraça” e completo a lista de hoje com “O Pulo do Lobo” e “O Besta Célere”!


segunda-feira, 22 de setembro de 2014

LEITURAS...

CATARINA DINIS
DR
A leitura é elemento essencial do crescimento pessoal, social e universal do Ser. A aprendizagem das primeiras palavras é tal e qual como um jardim em construção. Temos que o construir de raiz, idealizar o seu projecto, acarinhar, proteger. Devemos interiorizar cada palavra, cada sílaba, cada texto, cada poema, embalado nos nossos braços e senti-las como se de um corpo vivo se tratasse. E nesse jardim, ao longo dos tempos, precisamos de renovar, fazer brilhar na escuridão da mente cada palavra.
A leitura de um livro produz o efeito de mudar o mundo interior e / ou universo. E sabe tão bem entrar em selvas, em sonhos azuis de quimeras, princesas desencantadas e sapos elegantes. Cada página, mil histórias de encantar para contar.
O ler permite-nos visualizar as experiencias da vida de uma maneira mais próxima e ajudar a derrubar tantos muros de ignorância.
O ato de ler acompanhamos pela vida, intrinsecamente com os sentimentos, o prolongamento de cada um entre os pensamentos celebres.

sábado, 20 de setembro de 2014

UM EXEMPLO DE «FÉ» PARA A EUROPA

J. EMANUEL QUEIRÓS
DR
Vendida ao povo como uma inevitabilidade para quem 'viveu acima das suas posses' e como um tempo cheio de oportunidades, a crise, desenhada para suprir a falta de liquidez no sistema financeiro mundial, foi atempadamente montada como uma encenação ao país para esconder o salvamento de grandes interesses instalados e o colapso financeiro da banca. 

Quando o tema passou a entrar no quotidiano dos portugueses vinha embrulhado no endividamento das famílias e nos seus gastos excessivos, como se as pessoas fossem perdulárias, esbanjadoras e trouxas e o Estado fosse o seu pronto-socorro. Estava criado o ardil para passarem em claro os grandes interesses privados residentes no Estado em serviços prestados, em alienações e PPP’s, e vinham longe os enormes rombos dados aos bancos pelas suas administrações tal como desencadeado no BPP, no BPN e no BES, sob o olhar atento do Banco de Portugal.

Os apertos impostos a Portugal pelos credores internacionais (FMI, BCE e EU) traziam destinatários preferenciais, como forma de endireitar as contas do Estado e dinamizar a economia: trouxeram cortes nos direitos sociais dos cidadãos e desqualificaram direitos laborais, alguns merecedores de reprovação pelo patronato; retiraram serviços fundamentais às populações carecidas e aumentaram a precariedade aos mais desfavorecidos; convenceram as pessoas de que o problema do país estava nos funcionários públicos e que estes haviam de ser pasto fácil para todos os rateios; atalharam a irreverência juvenil, a sua frustração com o país e o descontentamento social, propondo a emigração como via para a sobrevivência dos mais capazes. No entanto, mantiveram todos os privilégios do Estado aos partidos, reforçaram as mordomias aos políticos, e levantaram o biombo necessário para que os grandes interesses privados que o Estado ajudou a crescer prosseguissem na dependura do Estado e do país, sem afectação de monta.

Quando integrado na campanha eleitoral para as europeias de 2014 pela coligação Aliança Portugal (PSD-CDS), o luxemburguês Jean-Claude Juncker, entretanto já empossado presidente da Comissão Europeia, deixou escapar à comunicação social uma verdade que deveria envergonhar qualquer político europeu e suscitar a indignação pública em qualquer outro país mais atento. No entanto, convencido, certamente, da pouca inteligência ou atenção dos portugueses, aquele treinado político europeu, usando um argumento capaz de transbordar no orgulho das massas eleitorais que se deixam tanger pela inflamação de alguma nota patrioteira, foi claro ao referir que o plano de resgate aplicado pela troika a Portugal «teve como consequência duros sacrifícios pagos pela população, em geral, e pelos mais fracos». (sic)

Querendo fazer chegar ao bolo eleitoral português o reconhecimento de uma certa Europa que age sem consideração pelas pessoas mas a quem fala ao coração em momentos pré-eleitorais, Juncker implicitamente favoreceu a insurgência de um debate decisivo para a «Europa dos cidadãos» e a construção do modelo social europeu centrado na questão seguinte: além do crescimento das fortunas dos mais abastados, de que servirá ao cidadão comum uma Europa a promover o aumento do desemprego, a diminuição do poder de compra e a cavar maior fosso entre cidadãos, aplicando castigo aos ‘mais fracos’ com políticas que convocam à pobreza, à fome, à exclusão e à emigração?

Temos vindo a dar grandes exemplos colectivos de fé, à Europa e ao Mundo, sem dúvida, agora cega quanto baste, continuando a acreditar estóica e patrioticamente em quem mais nos há de enganar.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

SALÁRIO SEM SAL


"Acho que não se pode pagar às pessoas pouco.
 Não há ninguém que vá trabalhar com gosto, ganhando pouco. 
O salário mínimo nacional de 500 ou 520 euros não dá para nada." 
Alexandre Soares dos Santos, líder do Pingo Doce

GABRIEL VILAS BOAS
DR
Não podia estar mais de acordo. Talvez a proximidade do fim da vida tenha dado ao líder do Pingo Doce algum arrependimento retórico, mas isso são contas da sua consciência.

Foco-me na questão do salário em Portugal. A única coisa que se discute é o salário mínimo. Regateia-se vinte/trinta euros de aumento, o que equivale a café e meio por dia ou um quilo de fruta. Entretanto falar-se-á dos ordenados máximos, para chocar, ao bom estilo dum país subdesenvolvido.

A questão do salário é fundamental na relação laboral. Por causa dele, milhares de pessoas emigram, ficam longe das famílias, aceitam condições de vida incríveis. A justificação é simples: com um melhor salário podem garantir melhores condições de vida em todas as áreas. 

Qualquer economista dirá o óbvio: quanto maior for o salário médio, maior será o crescimento económico dum país e maior desenvolvimento social teremos. Infelizmente, em Portugal optámos historicamente por um modelo de salários baixos, mão-de-obra não qualificada, desvio dos lucros pelos donos/administradores, não planeamento, falência às primeiras dificuldades. 

Sempre achei que o problema estava na mentalidade pequenina e medíocre de quem tinha algum dinheiro para investir. Sempre pensaram que o seu sucesso se faria à custa dos salários baixos e que o medo do desemprego seria o chicote suficiente para pôr toda a gente a produzir. Puro engano. A única coisa que criaram foi uma cultura do trabalho q.b., onde não existe ambição de fazer mais e melhor porque a expectativa de melhor retribuição não existe. A injustiça da situação criou um sentimento de vingança e por isso é mais fácil ver um empregado que chegou a patrão a replicar o modelo injusto do que a ousar implementar uma prática laboral onde todos ganham.

Sempre achei que um negócio só é realmente bom quando todas as partes envolvidas ganham e ficam satisfeitas. Haverá desejo de novos negócios, confiança entre trabalhadores, patrões e mercado. 

Os trabalhadores são parte significativa do mercado potencial das empresas. Se eles não estiverem satisfeitos, ou seja, se ganharem no limiar das suas necessidades básicas ou mesmo abaixo, não têm dinheiro para comprar, além de que corremos o risco de produzirem pouco e mal. 

Claro que falar é fácil, como também é fácil atirar as culpas para cima da carga fiscal, como o fez Soares dos Santos, principalmente quando todos sabemos que a colossal dívida que temos nos obriga a trabalhar para aquecer a conta bancária de outros países. Teria sido mais fácil e mais corajoso ter feito esta mudança de paradigma há duas décadas, no início do governo de António Guterres, quando havia algum dinheiro, crescimento económico e ainda não havia plena globalização. Preferimos o caminho do rebuçadinho para todos, ou seja, um aumentozinho generalizado, subsídios distribuídos a eito, construção de autoestradas e hospitais, organização do campeonato da Europa de futebol, fortalecimento dos bancos e da economia especulativa. Poucos ganhariam muito, muitos ganhariam pouco. Resultado: hoje, perdemos todos muitíssimo.

Daqui a 10/15 anos, os nossos filhos terão nova oportunidade. Não sei se os melhores estarão cá para a aproveitar e isso assusta-me. Gostava que até lá fôssemos preparando o momento. Talvez Soares dos Santos queira dar o exemplo e vá aumentando o salário médio dos trabalhadores do Pingo Doce. Podia começar por acabar com aquela coisa nojenta que fez num dia do trabalhador em que humilhou trabalhadores e clientes, fazendo-os sentir a todos como ratos que buscam alimento no meio do lixo. 

O trabalho precisa de dignidade. Um salário justo é um bom sinal disso mesmo.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

QUEM SOU MAS NÃO SEI PARA ONDE VOU

"Sem esta terra funda e fundo rio,
Que ergue as asas e sobe, em claro voo;
Sem estes ermos montes e arvoredos,
Eu não era o que sou."
Teixeira de Pascoaes, em “Canção duma Sombra” (excerto).
MOSTEIRO DE S. GONÇALO, AMARANTE
 ANABELA MAGALHÃES
ANABELA BORGES
DR
Sou amarantina de gema, o que me enche de orgulho. 

Berço de ilustres figuras em diversas áreas da cultura (e não só), como Amadeo de Souza-Cardoso, Pascoaes e Agustina (apenas para nomear alguns), a terra que me viu nascer é linda e verdadeiramente adorável.

Tenho, naquilo que escrevo, grandes influências do património cultural regional. É algo que está em mim e não consigo evitar, claramente visível, por exemplo, no conto “A Tundra”, já que tudo gira tudo em torno da vida das extintas fábricas da Tabopan, desde os anos 70 até à atualidade, com muitos registos de linguagem e modos de vida típicos da região. Tenho em Agustina e em Pascoaes um imenso orgulho, e noutras figuras de vulto, como Amadeo de Souza-Cardoso, porque a pintura é outra das minhas paixões. Vou buscar muitas recordações à infância, a histórias que vivi e ouvi contar. Amarante oferece-me um património riquíssimo, que eu adoro evocar e explorar. 

Quando digo a alguém que sou de Amarante, as pessoas têm sempre uma referência da cidade: ou é pelos ilustres nas mais diversas áreas, ou pelos monumentos, pelo rio, pela gastronomia, pelo turismo, enfim pela História e a Cultura em geral. A minha honra de ser amarantina cresce sempre um pouco mais dentro de mim. Amarante constitui uma fonte de inspiração permanente, com as brumas, as sombras do Pascoaes, o frio, o calor, o rio que vai na sua caminhada incessante, solitário no Inverno e carregado do colorido dos barcos no Verão. O amanhecer e o entardecer neste fundo vale rodeado de serras é uma luminosidade vasta e silenciosa que acolhe a Natureza no seu estado mais puro. E isso sente-se com palavras inefáveis a bulir no peito. Creio que todo o amarantino o sente. 

Estar face à escrita é, para mim, estar perante um constante desafio, como estar rodeada de folhas brancas de papel com necessidade de preenchê-las para não sufocar nas palavras.

Não sou muito de falar. Sou mais de escrever. Sou reservada, até nas opiniões, não sou propriamente pessoa de dar opinião sobre tudo e sobre nada. No entanto, quando me sinto indignada, ou quando penso que a minha opinião pode ajudar em alguma coisa, ou me sinto “na obrigação”, eu manifesto-me.

Escrevo muito em cadernos, à mão. E não seria a mesma pessoa se não o fizesse. Escrevo, rabisco, rasuro e faço uma ou outra ilustração.

Escrever faz-me bem. É uma necessidade intrínseca de comunicar, nem que seja apenas comigo. Na verdade, em primeira análise, é sempre comigo que comunico quando escrevo e só depois decido se partilho com os outros e o que quero partilhar. É verdade que a escrita é aquele acto solitário, mas não é isolado do mundo, porque, ao escrever, analiso o que me rodeia e revejo a minha forma de estar. Pode ser uma visão muito à minha maneira, mas é a forma como me encaixo, como encontro o meu lugar e me relaciono com o que, de uma forma ou de outra, me afecta, no sentido de compor uma espécie de harmonia que me ajude a estar bem também com os outros. Se muitas vezes se afirma que temos de estar bem connosco para estarmos bem com os outros, o contrário é para mim de igual importância, não me ocorrendo estar bem comigo se não estiver bem pelo menos com aqueles que mais directamente dependem de mim. Será, portanto, uma retórica redundante, numa relação de clara reciprocidade. 

Se existe alguma coisa que me inspire, então esse algo estará no âmago da condição humana, no frágil, no sofrido, no impotente, em contraponto com a beleza, o horrível e o poder da Natureza. 

A Natureza é o maior de todos os poderes. Gaia, ou Gea, será sempre para mim a deusa primordial, a primeira deusa adorada – no seu âmago: Terra.

A Natureza sempre se encarrega de corrigir os excessos humanos, muitas das vezes por meio da destruição, de uma forma cruel e imbatível. Isso lembra-me como sou pequenina e indefesa e espero que faça de mim uma pessoa mais tolerante e humilde.

A minha alegria suave de viver reside nas coisas simples e encantadoras que todos os dias me disponho a descobrir.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

AS VINDIMAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO


ALINA SOUSA VAZ
DR
As vindimas começaram! 

Desde o período da colheita das uvas até ao início da produção do vinho, os trabalhadores das vinhas não param. Entre montes e vales do Alto Douro Vinhateiro, inicia-se um dos mais característicos momentos da etnografia portuguesa.

Este trabalho sazonal que emprega muitos jovens, homens e mulheres desempregados desta e outras regiões, junta também famílias inteiras que se deslocam por esta época às suas terras para colaborarem e ajudarem nesta tradição que atravessa gerações. As mulheres, auxiliadas pelas crianças quando o período escolar permite, cortam com as suas tesouras, já amoladas, os cachos maduros para baldes de plástico que horas depois os homens transportam às costas, pelas encostas íngremes, para as dornas que se encontram nas carrinhas ou tratores. Como o acondicionamento das uvas é muito importante, exigindo um permanente cuidado, estas têm dois caminhos possíveis, ora seguem, rapidamente, para as adegas cooperativas, ou para as adegas dos pequenos agricultores que produzem vinho de consumo, pois as uvas amassadas, concomitantemente com o calor, que pode ainda marcar a época das vindimas, pode levar a uma fermentação prematura das uvas. Nas adegas, as uvas são descarregadas num pegão ou selecionadas a partir de um tapete rolante, seguindo o desenlaçamento das uvas e o seu esmagamento, do qual resulta o mosto, que por sua vez, é fermentado e assim transformado em álcool. No final do processo de fermentação, o vinho é conservado em reservatórios de madeira, cimento ou inox até estar próprio para consumo. 

As vindimas, apesar de toda a adaptação aos tempos modernos, continuam a ser um trabalho duro e violento. Contudo, imprimem em si nostalgia e um certo romantismo que ajudam a contornar as dificuldades económicas pelas quais os pequenos agricultores passam. 

Esta magia ainda é associada a uma certa folia, levando os trabalhadores a festejar o fim de um ciclo de imenso trabalho: depois da poda em janeiro e da formação dos cachos na primavera, as uvas ganham cor e aroma durante o verão culminando a faina na recolha do fruto. 

E porque até “à lavagem dos cestos é vindima”, o descanso chega apenas pelo S. Martinho, época em que “matas o porco, chegas-te ao lume, assas castanhas e provas o teu vinho”.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

OS ESCRITORES E O MERCADO


REGINA SARDOEIRA
DR
Assistir a uma autêntica e desenfreada produção/publicação de livros e, por consequência, perceber que aqueles que os escrevem se intitulam, imediatamente, de «escritores», causa-me alguma perplexidade.

Por um lado, parece um ótimo sinal de desenvolvimento que tão grande número de pessoas decida escrever um livro, decerto para cumprir aquele antigo preceito que diz: «Para seres homem, deves plantar uma árvore, fazer um filho e escrever um livro». 

E então, pessoas que realizaram já as duas primeiras tarefas, acreditam que não estarão completas enquanto não se abalançarem a empreender a terceira.

Esses potenciais, e logo autodesignados escritores, podem realizar esta prerrogativa de tornarem-se homens, em tenra idade, pensando que, ao escreverem logo um livro, com 17 anos, por exemplo, realizam a tarefa mais fácil das três, principalmente se viverem numa cidade grande, onde não haverá muitas oportunidades de plantar uma árvore e pensando que ter um filho tão cedo é bastante inconveniente. 

Não duvidando, em absoluto, da possibilidade de um jovem de 17 anos poder escrever um bom livro, a regra geral prova exatamente o contrário: com essa idade, o jovem não teve tempo para adquirir competências linguísticas, não pôde realizar, ainda, as necessárias leituras que lhe servirão de escola, não tem, em suma, suficiente experiência humana e existencial para escrever, num livro, algo que valha a pena ler. E esta última observação é muito importante: quem escreve deve ter em mente o leitor, não para agradar-lhe e conquistar adeptos (e já voltarei a este assunto), mas de modo a que as suas palavras enriqueçam quem lê. 

Mas pode ainda acontecer que alguém, com uma certa idade, que já plantou árvores e fez um ou vários filhos, decida levar o preceito à letra e começar a escrever o tal livro que falta na equação do êxito pessoal. A maior parte das vezes, esse primeiro ato de escrita, em idade madura, é mais dramático do que o outro, pois um jovem, mesmo que escreva um primeiro livro medíocre, pode sempre optar por dois caminhos: ou desiste de escrever, percebendo que não é efetivamente esse o seu talento ou colhe lições das críticas que poderá vir a ter, interioriza-as, treina e pode ser que venha a tornar-se, de facto, um escritor; quanto ao escritor da terceira idade, já enquistado na sua capacidade cerebral, decerto convencido de que tem muito para contar e partilhar e que até sabe escrever, se o livro que lhe saiu dos dedos for mau, vai experimentar uma terrível desilusão. Em primeiro lugar, poucos amigos ousarão dizer-lhe a verdade acerca do valor da sua obra e a crítica nem sequer lhe deitará um olhar. Em segundo lugar, pode ser que ele tenha suficiente capacidade de autocrítica e compreenda que a sua obra não é tão digna quanto o foi plantar uma árvore ou fazer um filho. E, como já não lhe resta – pela cronologia natural da vida – muito tempo para melhorar e tornar-se, verdadeiramente, um escritor, advir-lhe-á, desse gesto, uma enorme frustração.

O que importa, porém, acentuar na temática que abordo hoje é que, do mesmo modo que nem todos têm talento para a música, ou para a escultura ou para o tricô, a culinária ou a carpintaria, também a habilidade para a escrita é, antes, de mais, um dom. E o dom ou o talento, como quiserem, ou se tem ou não se tem. 

Dir-me-ão que pode aprender-se, dir-me-ão que, ter umas aulas de escrita criativa ou fazer um curso do mesmo teor, poderá ser a chave para a formação do escritor. Mas eu digo que não, se o talento não estiver lá, como idiossincrasia pessoal, que os cursos e as aulas poderão potenciar.

Escrever um livro, editá-la e torná-lo público (assim em conjunto) é uma tremenda responsabilidade pessoal, que não pode ser levada com ligeireza, pois destina-se a circular de mão em mão e passa a pertencer ao público e à posteridade. O livro, aberto e lido, vai afetar o leitor de muitas formas, vai fazer parte da vida de quem o leu e pode exercer influências várias; além disso, estará lá, para o melhor e para o pior, no acervo literário do país (ou do mundo).

Eu gosto de livros e leio diariamente. Mas, com o tempo, fui-me tornando de tal modo seletiva e especializada que, mal começo a ler um autor novo, apanho imediatamente a arte, ou a falta dela, o talento, ou a sua inexistência, a especificidade narrativa ou a vulgaridade, a autenticidade do estilo ou a mera cópia do já visto. Muitas vezes, a leitura de duas ou três páginas é suficiente para me lançar, definitivamente, no ato empolgante de ler, ou para fechar o livro e passar adiante, para não voltar nunca mais. Depois, fico verdadeiramente espantada quando percebo que todos esses que rejeitei, por não terem essência, ou por serem pretensiosos, ou por terem erros e por aí adiante, estão nos píncaros da crítica, são os grandes autores, nacionais ou internacionais, ou tornam-se best-sellers! 

Darei dois exemplos. 

Não consegui ler até ao fim a obra “Livro” de José Luís Peixoto, principalmente porque, a certa altura, dei de caras com um artifício – escrever, por exemplo, a letra “C”, isolada no início de um capítulo e continuar a palavra na linha de baixo, escrevendo, por exemplo também, “aíram”. Julguei tratar-se de uma gralha tipográfica e prossegui a leitura; mas fui encontrando o mesmo esquema ao longo do livro e, desgostosa, por me parecer um truque destituído de sentido…já não li mais! O José Luís Peixoto que me desculpe, provavelmente não lhe compreendi os intuitos! O certo é que a partir de uma certa altura me senti ridícula, naquele ato de ler um livro, com semelhantes arabescos fátuos e não continuei a ler. 

Em contrapartida, quando li “ A Boneca de Kokoschka” de Afonso Cruz experimentei uma espécie de deslumbramento, li a obra com uma sensação extraordinária de prazer, com a minha sensibilidade estética elevada ao máximo, admirando a inteligência na construção da história e o encanto das personagens, para além do usufruto da perfeição linguística e do estilo francamente peculiar e muito atrativo. 

Decerto voltarei a ler José Luís Peixoto e não tenho dúvidas que lerei outra obra de Afonso Cruz: pode ser que compreenda o primeiro e reitere o valor do segundo.

Relativamente às intenções de quem escreve, assim, de um momento para o outro, porque de repente lhe apeteceu, considero absurda a preocupação desses «escritores» em agradar aos leitores. “Vamos escrever o que as pessoas querem ler, vamos escrever sobre aquilo que está a dar no momento, vamos ser leves ou engraçados, vamos usar palavras fáceis para que todos possam perceber…” Estas e outras motivações dos escritores emergentes aterram-me!

Sei bem que hoje em dia tudo é mercado e que, se um autor quer publicar, tem que pagar a edição e que, por essa razão, é-lhe essencial vender. Mas como está errada esta transformação do escritor em técnico de marketing, em comerciante, em angariador de clientela, em auto-promotor de imagem, numa correria de televisão para televisão, de cidade em cidade, de evento em evento, de entrevista em entrevista! 

O escritor é o homem ou a mulher dos bastidores, que cria no silêncio e no segredo das suas paredes e que, mais tarde, quando sente que a obra acabada precisa da participação dos destinatários, cria as condições para que ela cumpra a sua função. 

As editoras, essas são os veículos comerciais e elas, e apenas elas, devem ter os técnicos capazes de apreciar a obra, de entrar em contacto com o escritor, propondo eventuais alterações e correções, acertar detalhes com ele, promover a obra e distribuí-la: afinal, se reparamos bem, o autor dá a matéria-prima, sem a qual não se fará um livro e, por fim, só recebe 10% de direitos autorais! Portanto, se a obra valer efetivamente e a editora fizer o seu trabalho, o livro chegará ao mercado, sem a participação do escritor que não tem obrigação de entender os mecanismos comerciais, porque não é, em definitivo, um comerciante. E nem tenho a certeza absoluta se o escritor deverá andar de palco em palco, de feira em feira, de cidade em cidade a mostrar-se e à sua obra…não é ele que, de facto, importa, mas sim aquilo que escreveu e deixa de pertencer-lhe logo que sai para o público. Mostrar-se, exibir-se, enquanto imagem, dignificará o autor? Não creio.

Por mim, prefiro escrever os meus livros, editá-los, fazer um ou dois lançamentos e, imediatamente, partir para outro: se as obras tiverem valor, ele manifestar-se-á, mais tarde ou mais cedo, e não tenho qualquer problema em assumir-me, desde já, como escritora póstuma!

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

DESEMPREGO EM PORTUGAL, FLAGELO SOCIAL

CATARINA DINIS
A palavra Desemprego, nunca foi tão falada nos meios de comunicação social como pelo menos, nos últimos cinco anos. Quando nos referimos ao desemprego, falamos da falta de trabalho remunerado, mas a questão é muito mais abrangente do que a ausência do trabalho. Com toda esta situação os níveis são alarmantes e levam-nos para um nível de pobreza e mísera incompreensível para os nossos dias. Até a bem pouco escutávamos que o desemprego estrutural tinha aumentado nas últimas 2 décadas mais de 20% segundo afirmou Gaspar em 2012. Passados 2 anos temos outros ministros a anunciar um decréscimo na Taxa de Desemprego, o que já é considerado histórico, depois de tanto tempo na agonia de um crescente vertiginoso, na famosa taxa. Questiono-me até que ponto estes dados são reais. A verdade é que deveria também entrar nessa estatística o número de pessoas que tem abandonado o nosso Pais em busca de outras oportunidades, o número de pessoas que deixaram de receber o subsídio de desemprego e que já nem vão às apresentações quinzenais, ainda as pessoas que foram recrutadas para acções de formação. Todo este número fantasma de pessoas supostamente “activas” no mundo laboral, pode transformar a taxa em uma miragem num deserto. Mas se eu estiver enganada, então darei os parabéns pela proeza. Só o tempo realmente dirá que dados estão correctos, até lá … continuamos a viver a incerteza dos dias e da esperança de uma vida melhor.

sábado, 13 de setembro de 2014

TEMPOS DE MUDANÇAS DA TERRA E DO HOMEM

J. Emanuel Queirós
DR
Senhores de uma ciência climatológica suposicional e usuários de uma inventiva sem vencimento cosmológico, progressivamente vêm reconhecendo nas dinâmicas geofísicas a Terra em mudança – como sempre esteve desde o princípio dos tempos – sem termos de esperar pelos próximos 50 anos para sentir os efeitos das suas mais significativas alterações.

Todos os dias, em cada nova aurora, estamos perante novos tempos que nos chegam, caminhantes distraídos e inocentes transpondo as limitações do tempo cronológico numa viagem insuspeita além do tempo e do espaço tridimensional. Constantemente, estamos a ser colocados diante de fenómenos físicos, naturais, alguns nunca vistos, capazes de contrariar todas as lógicas racionais e desafiar as mais inverosímeis previsões talhadas nas bancadas das ciências.

Tempestades e cheias de Verão na Europa, assim como temperaturas quase de ‘fritar’ em pleno Inverno como as que estão a ser registadas no Brasil, com o Sol ainda em migração pelo hemisfério Norte, começam a entrar no nosso quotidiano com alguma estranheza a que toda a gente se obriga a adequar por imperativo natural, adaptação e sobrevivência.

É uma redundância afirmar que estamos no Verão no hemisfério Norte. No entanto, a terceira cidade mais populosa do Canadá, Calgary (51º 5' 0'' N / 114° 5' 0" W), a sul do Estado de Alberta, com uma latitude semelhante à de Londres, na passada quarta-feira (10/11) já o Inverno foi antecipado com uma forte tempestade de neve. Dantes, jamais alguém vivo testemunhou um semelhante fenómeno de “estio”.

Embora o homem tenha vindo a posicionar-se sobre a Terra como mais um factor geofísico, gerando alguma entropia na calibração nos sistemas naturais, a verdade é que a sua influência ainda é diminuta para a afectar tanto as dinâmicas planetárias tanto quanto o bem-estar ambiental do género humano, como são exemplos a poluição irrespirável do ar em Pequim e a desertificação do mar Aral entre o Casaquistão e o Uzbequistão.

É, pois, necessário que Humanidade tenha bem aferida a consciência da sua ‘pegada’ no ambiente terrestre mais próximo e mais distante, dos efeitos directos e indirectos da sua acção sobre a Terra, a sociedade e o indivíduo, de modo a evitar posicionar-se no mundo como vítima inocente do seu próprio empreendimento civilizacional.

Os tempos do homem correm céleres e agitados, mas o tempo fisiográfico não é mais o que julgávamos que ele fosse, estático e de periodicidade regular, em repetência cíclica anos após ano como definido no conceito de clima. Nem a Terra é um espaço infinito sempre pronto a ser consumido e retalhado de acordo com a conveniência do homem.
Antes de mais, a Terra é um organismo astronómico, maternidade de toda a vida biológica sempre a dar provas muito evidentes de possuir vida própria, em todos os seus subsistemas naturais como toda a evolução da própria Vida o comprova. Repercute-se em toda a existência que o planeta comporta e sustenta, e está espelhada nas longos ciclos geofísicos marcados por cadências astronómicas nunca reincididas no palimpsesto terrestre.

No território a que damos o nome de Portugal, temos sentido o efeito de eventos a que não estávamos habituados, moderados nos seus efeitos quer no mar quer em terra, alguns com consequências imediatas outros a deixar antever os seus efeitos para o devir.

É notório que o tempo se manifesta crescentemente alterado, por vezes mais agitado, descaracterizando as convencionadas estações do ano nas temperaturas, nas humidades e nas precipitações, à passagens das massas de ar. Este ano o Verão removeu seus traços de carácter e, até, retirou-se do norte para endereços incertos com os seus mais fortes argumentos.

As alterações dos ciclos naturais e os imprevisíveis eventos tectónicos e hidrometeorológicos produzem também seus efeitos humanos, mexem com a nossa passividade, alteram as nossas dinâmicas, despertam-nos para a realidade do nosso mundo menos observado e mais esquecido em nós, embora sempre presente.

Com um Verão por acontecer assinalado no calendário e na convenção, despertam memórias imorredoiras dos estios quentes, dos dias ensolarados de canícula e das noites iluminadas de Agosto, aumentando a saudade das voltas percorridas sem preocupações e sem retorno. O tempo mudou e sem que conscientemente o queiramos ou o desejemos, nós também estamos a mudar com ele.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

HOJE É O TEU DIA


GABRIEL VILAS BOAS
DR
Por estes dias milhões de estudantes regressam à Escola. Quase toda a sociedade portuguesa espera ansiosamente por este momento para retomar a sua rotina. Pais, avós, professores, políticos, televisões… aguardam o regresso do ritmo da escola para recuperar a sua vida. 

Teremos o discurso do ministro a dizer que tudo vai bem no reino da Educação, os professores a desmentir o governo, os pais a fazerem contas ao dinheiro despendido em manuais escolares, os avós aliviados da irrequietude dos netos ou com saudades da sua partida, as televisões a debitarem os clássicos debates sobre o futuro da Educação em Portugal, pois julgam ser esse o seu desígnio. 

O que pensará uma criança ou um adolescente disto? Muitos de nós não querem saber ou nem se questionam. Mas a verdade é que eles reparam na retórica balofa do ministério, no cansaço desalentado dos professores, na falta de sinceridade dos debates televisivos, no queixume permanente dos pais com o investimento na sua educação. Eles pressentem que para uns são um número, para outros, um fardo. Treinados desde o infantário em horários de 40 horas semanais, perceberam há muito a inutilidade de qualquer lamúria. 

Mas um dia destes, um miúdo qualquer ganhará coragem, olhar-lhos-á profundamente e perguntará: Não era suposto que a escola me fizesse feliz? Por que não me faz? 

O pai sempre pode mandar perguntar ao professor, que ficará sem resposta ou com ela entalada algures entre o desencanto e a culpa, que obviamente não é só dele, mas também é dele. 

Gente triste e desiludida dificilmente cria energia positiva em seu redor. Investir na desmotivação dos professores é altamente perigoso, porque eles têm nas mãos a formação das próximas gerações. Adiantará muito pouco que os alunos acumulem conhecimentos, competências, técnicas, se isso tudo não os tornar felizes. 

Eu sei que muitos estão no limite da crença, sem paciência para promessas por cumprir, sem tempo para retóricas sem sentido, cansados de acumular o trabalho de mais um que foi para a reforma e, sobretudo, fartinhos da desconsideração de quem manda. Todavia, os jovens que estão à nossa frente pouca culpa têm disso. Os seus olhos tristes pedem-nos que resgatemos a convicção perdida e procuremos no baú da memória o fogo da paixão que nos atou à profissão. 

Como diria Pedro Abrunhosa, talvez seja o “tempo de arranjar 20 segundos de coragem, de passar o rio a vau, mudar o rumo à viagem”, porque este não é só o tempo deles, também é o nosso. 

Eles precisam de ser felizes… e nós também!

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

MEMORIAL

ANABELA BORGES
DR
Como o próprio nome indica, um MEMORIAL é uma chamada de atenção para a memória de alguma coisa. Geralmente, é criado um memorial sobre a memória de uma pessoa que tenha morrido em circunstâncias heroicas ou imprevisíveis, mas também se criam memoriais alusivos a eventos de grande dimensão, que tenham representado um impacto positivo ou negativo na sociedade.
Eu sempre gostei da palavra “memorial”: é uma palavra que acorda, não adormece; é uma palavra que lembra, não esquece. A palavra memorial abraça, amortece. Mas pode ser também uma palavra que arrefece, a fazer lembrar as agruras, o terror, a maldade, a imprevisibilidade, a fragilidade, a frugalidade.

A palavra “memorial” transporta a ideia cristalina de memória:
que traz à memória;
lembrança;
homenagem;
intemporal;
espécie de luz que nunca se apaga.

As formas usuais de memoriais incluem objectos de referência, ou objectos de arte, como esculturas, estátuas ou fontes, e há memoriais que são monumentos, praças ou parques inteiros. Entre os mais comuns memoriais estão as lápides ou as placas de homenagem, assim como os memoriais de guerra, glorificando os que morreram em combate, como é  caso do famoso “soldado desconhecido” espalhado um pouco por todo o mundo.
Hoje em dia, começa a ser comum, na realidade paralela que caminha connosco o esplendor e o sensabor dos dias, encontrar memoriais online, quer em alusões por meio de imagens, fotografias e símbolos, quer na forma de textos, permitindo à família e aos amigos, ou às pessoas anónimas, interagir e partilhar as memórias referentes àquele ser ou acontecimento.
Plantar uma árvore em memória de alguém, como a singela oliveira do Saramago, é também um memorial. E, em certos lugares do mundo, quando morre um estudante, os seus memoriais podem ser revertidos na forma de uma bolsa de estudos, a ser concedida a alunos com bom desempenho nos anos seguintes. Há, por isso, memoriais de vários géneros e feitios espalhados pelo mundo.
  
DR
É claro que todo este andamento em torno da palavra memorial achegou-se-me à ideia por casa do fatídico 11 de Setembro, que é hoje, o hoje de há 13 anos.
O National September 11 Memorial & Museum, também conhecido como “9/11 Memorial Museum”, é um memorial megalómano construído em homenagem às vítimas do maior atentado terrorista de que há memória. O colapso do World Trade Center deixou um eco de indignação, um rumor do tamanho do mundo, um grito impossível de conter. Uma cicatriz gigante. E vazio. Ponto zero – groud zero. Construído com fragmentos do que sobrou, este memorial relembra o que (lá está, em jeito de contradição com o tema desta modesta reflexão, mas por razões obvias) não gostaria de estar aqui a evocar: as últimas mensagens de voz das vítimas, fotografias variadas, o som das sirenes dos bombeiros; sapatos cobertos de pó dos que se escoaram naquele abismo. Há-de ser arrepiante, pelo que representa mas também pelo que foi criado em cima dessa(s) horrenda(s) memórias, um memorial gigantesco, como (quase) tudo o que os norte-americanos fazem.

Falando em memoriais, vem-me sempre à memória um que, pela sua simplicidade e simbologia, me deixa
DR
com a lágrima ao canto do olho. Em Budapeste, na margem do Rio Danúbio, junto ao Parlamento, uma fila de sapatos abandonados. Os sapatos são feitos de bronze e os seus donos nunca voltarão. Trata-se de um memorial em homenagem aos judeus húngaros executados pelo governo fascista durante a II Guerra Mundial. Alinhados na margem do Danúbio, opositores ao governo e suas famílias foram executados e os seus corpos atirados ao rio. Antes, porém, os seus algozes tiraram-lhes os sapatos, que eram um bem escasso e caro na época.

Memoriais – apelos à memória – para não esquecer: a representação de um sistema supostamente ordenado que, por algum motivo, perdeu o contacto com a razão natural e humana.