terça-feira, 24 de janeiro de 2017

CARTAS DE AMOR

REGINA SARDOEIRA
Quando leio poemas de amor, declarações de amor, cartas de amor, textos que surgem, em abundância, agora, nos territórios virtuais onde, democraticamente, todos publicam, publicando-se a si mesmos, sou acometida de uma sensação invencível de desconcerto. O nosso mundo não é marcado pelo amor, pois não? O nosso mundo é gerido pelo ódio, pela violência, pelo interesse, pela hipocrisia, pelo caos, não está à vista? O nosso mundo está enfermo, carece em absoluto de valores, vive no contexto de atropelos de humanos contra humanos, alimenta-se de vinganças e de intrigas, corrompe-se na devassidão e na artimanha…não é?

Pode ser que eu seja irremediavelmente céptica, mas o cepticismo que propugno é a expressão real dos acontecimentos testemunhados quotidianamente: como pode haver tanto amor, derramado nessas páginas, e tanto horror desfraldado à vista de todos os que escrevem e lêem as mesmas páginas? Dir-me-ão que sim, que pode, mais, que é preferível ler textos de amor – mesmo falsos – escrever odes românticas – ainda que feitas somente de palavras astuciosas – do que expressar ou desvendar a verdadeira e única expressão do nosso mundo.

Há tempos fui a um casamento, daqueles que – percebi-o aos poucos, no decorrer das inúmeras cerimónias que a festa acumulou – são frequentes nos nossos dias e para os quais as famílias espremem economias, pedem empréstimos, investem um capital desmedido. Só o respeito e a amizade que nutro pelo noivo me fizeram ir e depois suportar e até tolerar e mesmo usufruir com prazer o fausto de semelhante banquete! Mas estive sempre dividida entre dois sentimentos: a vontade de justificar a opção faustosa do meu amigo e o horror de semelhante desperdício, absolutamente supérfluo, quer para eles, cuja vida futura será o que eles forem, enquanto pessoas, e não o que aquela festa patenteou, quer para nós que ali participávamos, até aos limites e muito para além da nossa necessidade de consumir, de comer, de gozar surpresas e rituais cuidadosamente preparados e ensaiados.

Por outro lado, a cerimónia em si, aquela que a Igreja Católica considera ser a única forma válida, melhor, verdadeira e legítima, de unir casais pelo sacramento do matrimónio foi apenas um ponto acima do medíocre e, quanto à homilia do sacerdote, um ponto abaixo do muito mau. Reparem: os noivos estavam ali, para, mais ou menos convictamente, celebrarem o casamento pelo ritual católico… e o que faz o padre? Em vez de centrar a sua atenção exclusiva nos dois jovens e louvar-lhes o acto sagrado, não se coíbe de fazer extrapolações absurdas condenando explicitamente os casamentos civis (não são verdadeiros casamentos, dizia ele, apenas contratos) e de aludir, de modo enviesado, mas mesmo assim perceptível, a outro tipo de uniões reivindicadas por certas minorias, uniões condenáveis, uniões absurdas (segundo ele)!

Este exemplo foi uma espécie de demonstração da queda de valores do nosso tempo. Respeito o meu amigo, compreendo-lhe a necessidade de exibir-se daquele modo (porque o conheço); mas, estendendo aquele acto até aos limites da sua compreensão e interpretação, não posso deixar de ver ali os sinais da decadência do tempo que vivemos.

Os romanos, no seu tempo áureo, quando tinham um império e um exército, quando eram donos do mundo, do ponto de vista do poder e da riqueza, afundaram-se e deixaram-se conquistar porque cederam à orgia: quando acordaram dos banquetes desmesurados, dos excessos, a que a glória conquistada os conduziu, já nada lhes restava que valesse a pena festejar! Nada temos em comum com os romanos (no que diz respeito ao império, ao poder e à riqueza), mas somos os actores de um momento de crise, crise muito mais profunda e devastadora que os simples sinais económicos e financeiros do colapso. Estas crises, paradoxalmente, fazem emergir fenómenos de fausto, repetições de rituais orgiásticos, como se quiséssemos agarrar o que nos foge e celebrar o fim dos tempos: e estas explosões de exibição de riqueza correspondem ao culminar e ao declínio do Império Romano, que, depois de morto, nunca mais conseguiu erguer-se. E então, o nosso tempo, este em que, simultaneamente nos afundamos na crise económica, no desemprego, na fome e na miséria à escala global e, ao mesmo tempo, nos patenteia o luxo, o excesso e a orgia afundar-se-á, definitivamente, tão definitivamente quanto o Império Romano do Ocidente e do Oriente. Não ficará pedra sobre pedra!
Em Portugal, buscamos desesperadamente os salvadores, e ficamos perplexos, porque quer uns, quer outros nada valem, afinal, enquanto salvadores. Olhamos a democracia – esse governo do povo – e percebemos que a deixamos perverter-se, a um ponto tal, que só destruindo-a, cortando cabeças, instaurando a lei da guerra e da revolta podemos anular a perfídia dos salvadores, proibindo-os de fazer o que quer que seja em nosso nome. E é então que evoco Marx e Engels, nascidos prematuramente, profetas do século XXI, ancorados na escuridão do século XIX, aproveitados e viciados nos estertores maquiavélicos das guerras mundiais, usados em revoluções e governos, antes do tempo, antes da eclosão deste momento que vivemos hoje e que, apenas ele, está pronto para a aplicação dos princípios, nunca levados à prática e ainda letra morta nos livros de Marx e Engels.
É necessário relê-los em primeira mão, atirar fora as teias de aranha e as falsas teorias dos que ousam apelidar de marxistas governos que tiranizaram e oprimiram, governos que, desconhecedores da verdadeira essência do marxismo, se substituíram (reproduzindo-as mais tarde ou mais cedo) às ditaduras czaristas e outras que vinham, supostamente, desmantelar, para traçarem as linhas do caminho humanista. E quem, ainda assim, não for capaz de eliminar o preconceito anti-comunista, tão obscurantista e inadequado, que leia ao menos o evangelho e medite nas palavras de Cristo, naquelas que dizem que somos todos iguais e que podemos transcender-nos, ultrapassando a fragilidade e a miséria do corpo, naquelas que falam do Reino de Deus e que é, afinal, o Reino do Homem liberto da sua inferioridade, elevado até ao seu poder! Ou então, se formos capazes de entendê-lo, leiamos Nietzsche, à luz do nosso tempo, e vejamos a Vontade de Poder nas suas páginas enunciada, não como a materialização de um aberrante Super Homem racista e prepotente, mas como a necessária auto-superação do homem, amesquinhado, mistificado, iniludivelmente tornado o Último Homem.

«Todas as cartas de amor são ridículas», escreveu Fernando Pessoa, num poema que toda a gente conhece; as dele, Fernando Pessoa, também o foram e ele di-lo no mesmo texto e, ainda que continue o poema, dizendo, «mas afinal só aqueles que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículos», o certo é que guardou as dele para si, não as exibiu para o público, porque elas não se destinavam ao público mas ao ser amado e eram, por tal razão, íntimas, pessoais. E se hoje lhe esventram o espólio e as publicam, nesta ânsia de vasculhar um ser humano até ao âmago, não é porque ele tivesse dado autorização (o poeta morreu em 1935) mas porque o nosso tempo vive da apropriação indigna dos sentimentos dos outros e não recua perante o deleite dos pequenos ridículos, das pequenas fraquezas de alguém, a outros níveis, realmente grande!

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