REGINA SARDOEIRA |
Quando leio poemas de amor, declarações de amor, cartas de amor, textos que surgem, em abundância, agora, nos territórios virtuais onde, democraticamente, todos publicam, publicando-se a si mesmos, sou acometida de uma sensação invencível de desconcerto. O nosso mundo não é marcado pelo amor, pois não? O nosso mundo é gerido pelo ódio, pela violência, pelo interesse, pela hipocrisia, pelo caos, não está à vista? O nosso mundo está enfermo, carece em absoluto de valores, vive no contexto de atropelos de humanos contra humanos, alimenta-se de vinganças e de intrigas, corrompe-se na devassidão e na artimanha…não é?
Pode ser que eu seja irremediavelmente céptica, mas o cepticismo que propugno é a expressão real dos acontecimentos testemunhados quotidianamente: como pode haver tanto amor, derramado nessas páginas, e tanto horror desfraldado à vista de todos os que escrevem e lêem as mesmas páginas? Dir-me-ão que sim, que pode, mais, que é preferível ler textos de amor – mesmo falsos – escrever odes românticas – ainda que feitas somente de palavras astuciosas – do que expressar ou desvendar a verdadeira e única expressão do nosso mundo.
Há tempos fui a um casamento, daqueles que – percebi-o aos poucos, no decorrer das inúmeras cerimónias que a festa acumulou – são frequentes nos nossos dias e para os quais as famílias espremem economias, pedem empréstimos, investem um capital desmedido. Só o respeito e a amizade que nutro pelo noivo me fizeram ir e depois suportar e até tolerar e mesmo usufruir com prazer o fausto de semelhante banquete! Mas estive sempre dividida entre dois sentimentos: a vontade de justificar a opção faustosa do meu amigo e o horror de semelhante desperdício, absolutamente supérfluo, quer para eles, cuja vida futura será o que eles forem, enquanto pessoas, e não o que aquela festa patenteou, quer para nós que ali participávamos, até aos limites e muito para além da nossa necessidade de consumir, de comer, de gozar surpresas e rituais cuidadosamente preparados e ensaiados.
Por outro lado, a cerimónia em si, aquela que a Igreja Católica considera ser a única forma válida, melhor, verdadeira e legítima, de unir casais pelo sacramento do matrimónio foi apenas um ponto acima do medíocre e, quanto à homilia do sacerdote, um ponto abaixo do muito mau. Reparem: os noivos estavam ali, para, mais ou menos convictamente, celebrarem o casamento pelo ritual católico… e o que faz o padre? Em vez de centrar a sua atenção exclusiva nos dois jovens e louvar-lhes o acto sagrado, não se coíbe de fazer extrapolações absurdas condenando explicitamente os casamentos civis (não são verdadeiros casamentos, dizia ele, apenas contratos) e de aludir, de modo enviesado, mas mesmo assim perceptível, a outro tipo de uniões reivindicadas por certas minorias, uniões condenáveis, uniões absurdas (segundo ele)!
Este exemplo foi uma espécie de demonstração da queda de valores do nosso tempo. Respeito o meu amigo, compreendo-lhe a necessidade de exibir-se daquele modo (porque o conheço); mas, estendendo aquele acto até aos limites da sua compreensão e interpretação, não posso deixar de ver ali os sinais da decadência do tempo que vivemos.
Os romanos, no seu tempo áureo, quando tinham um império e um exército, quando eram donos do mundo, do ponto de vista do poder e da riqueza, afundaram-se e deixaram-se conquistar porque cederam à orgia: quando acordaram dos banquetes desmesurados, dos excessos, a que a glória conquistada os conduziu, já nada lhes restava que valesse a pena festejar! Nada temos em comum com os romanos (no que diz respeito ao império, ao poder e à riqueza), mas somos os actores de um momento de crise, crise muito mais profunda e devastadora que os simples sinais económicos e financeiros do colapso. Estas crises, paradoxalmente, fazem emergir fenómenos de fausto, repetições de rituais orgiásticos, como se quiséssemos agarrar o que nos foge e celebrar o fim dos tempos: e estas explosões de exibição de riqueza correspondem ao culminar e ao declínio do Império Romano, que, depois de morto, nunca mais conseguiu erguer-se. E então, o nosso tempo, este em que, simultaneamente nos afundamos na crise económica, no desemprego, na fome e na miséria à escala global e, ao mesmo tempo, nos patenteia o luxo, o excesso e a orgia afundar-se-á, definitivamente, tão definitivamente quanto o Império Romano do Ocidente e do Oriente. Não ficará pedra sobre pedra!
Em Portugal, buscamos desesperadamente os salvadores, e ficamos perplexos, porque quer uns, quer outros nada valem, afinal, enquanto salvadores. Olhamos a democracia – esse governo do povo – e percebemos que a deixamos perverter-se, a um ponto tal, que só destruindo-a, cortando cabeças, instaurando a lei da guerra e da revolta podemos anular a perfídia dos salvadores, proibindo-os de fazer o que quer que seja em nosso nome. E é então que evoco Marx e Engels, nascidos prematuramente, profetas do século XXI, ancorados na escuridão do século XIX, aproveitados e viciados nos estertores maquiavélicos das guerras mundiais, usados em revoluções e governos, antes do tempo, antes da eclosão deste momento que vivemos hoje e que, apenas ele, está pronto para a aplicação dos princípios, nunca levados à prática e ainda letra morta nos livros de Marx e Engels.
É necessário relê-los em primeira mão, atirar fora as teias de aranha e as falsas teorias dos que ousam apelidar de marxistas governos que tiranizaram e oprimiram, governos que, desconhecedores da verdadeira essência do marxismo, se substituíram (reproduzindo-as mais tarde ou mais cedo) às ditaduras czaristas e outras que vinham, supostamente, desmantelar, para traçarem as linhas do caminho humanista. E quem, ainda assim, não for capaz de eliminar o preconceito anti-comunista, tão obscurantista e inadequado, que leia ao menos o evangelho e medite nas palavras de Cristo, naquelas que dizem que somos todos iguais e que podemos transcender-nos, ultrapassando a fragilidade e a miséria do corpo, naquelas que falam do Reino de Deus e que é, afinal, o Reino do Homem liberto da sua inferioridade, elevado até ao seu poder! Ou então, se formos capazes de entendê-lo, leiamos Nietzsche, à luz do nosso tempo, e vejamos a Vontade de Poder nas suas páginas enunciada, não como a materialização de um aberrante Super Homem racista e prepotente, mas como a necessária auto-superação do homem, amesquinhado, mistificado, iniludivelmente tornado o Último Homem.
«Todas as cartas de amor são ridículas», escreveu Fernando Pessoa, num poema que toda a gente conhece; as dele, Fernando Pessoa, também o foram e ele di-lo no mesmo texto e, ainda que continue o poema, dizendo, «mas afinal só aqueles que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículos», o certo é que guardou as dele para si, não as exibiu para o público, porque elas não se destinavam ao público mas ao ser amado e eram, por tal razão, íntimas, pessoais. E se hoje lhe esventram o espólio e as publicam, nesta ânsia de vasculhar um ser humano até ao âmago, não é porque ele tivesse dado autorização (o poeta morreu em 1935) mas porque o nosso tempo vive da apropriação indigna dos sentimentos dos outros e não recua perante o deleite dos pequenos ridículos, das pequenas fraquezas de alguém, a outros níveis, realmente grande!
Belíssimas, oportunismos reflexões. Gostei muito prima Regina.
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