[explicação devida: tema de conversa ontem, 09/01/2017, na rubrica “Ensaios Abertos”, do programa de Ana Coelho, “Livro Aberto_Rádio Voz de Alenquer”, a preencher um espaço literário quinzenal (às segundas feiras) a partir das 22H30.]
Introdução
ALVARO GIESTA |
«Pensar a linguagem poética é, antes de tudo, reflectir sobre o “estranhamento” provocado pela mesma diante da configuração e significação que envolve o seu desenvolvimento» (in Rios Electrónica – Revista Científica da FASETE, Ano 1, n.º 01, Agosto 2007. A ilustrar-se este “estranhamento”, como dizia em sua obra ABRAMOVICH (editada em 1989, a pp. 67, o poeta, tradutor,crítico literário e ensaísta brasileiro José Paulo Paes, «A poesia não é mais do que uma brincadeira com as palavras. Nessa brincadeira cada palavra pode e deve significar mais de uma coisa ao mesmo tempo: isso aí é também isso ali. Toda a poesia tem que ter uma surpresa, se não tiver, não é poesia: é papo furado». Então, será que podemos dizer que a poesia é tudo e nada ao mesmo tempo? Depois deste reflexão do ensaísta atrás aludido, cabe-nos perguntar se: nesse tudo e nesse nada ao mesmo tempo, que o poeta desenvolve com a palavra através do seu poder de escrita poética, diferente e única, mesmo parecendo, ao leitor, incompreensível o poema, «Nenhuma leitura do poema é estéril: nem (mesmo) a de quem não o entende? (in OSCURO: CLARO de El ave em su aire, Ángel Crespo).
Necessário se torna, por isso, falarmos do “estranhamento” da linguagem no discurso poético como, também, questionar de que natureza é o entendimento ou não entendimento que a poesia provoca ao leitor. O “estranhamento” (definido por Jean-François Lyotard – importante pensador francês sobre a pós-modernidade – como sendo o “differend” em oposição ao consenso), é o efeito criado pela obra de arte literária, que nos leva a distanciar, em relação ao senso comum, como apreendemos o mundo e a própria arte. É o “estranhamento” ou “desfamiliarização” que nos leva a reconhecer que existe uma outra linguagem – a artística – linguagem essa que nos permite entrar numa outra dimensão, só visível pelo olhar estético ou artístico. Isto é: pela linguagem literária – diferente da usual – forma-se um universo imaginário ou ficcional que leva o leitor a fazer a apreensão do real pela imaginação. A esta fuga ao convencional chama-se arte literária. “Estranhamento” foi um termo também utilizado, e pela primeira vez, pelo formalista russo Viktor Chklovski no seu trabalho “A Arte como processo” ou “A Arte como procedimento” – artigo publicado em português na colectânea “Teoria da Literatura: Formalistas Russos” (no Brasil em 1971 e em Lisboa (Todorov) em 1999) e que, infelizmente, não se dá nas nossas escolas (ao que penso). Segundo Chklovski, tal teoria resume-se no seguinte: «A finalidade da arte, é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte, é o modo de singularização (estranhamento) dos objectos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O acto de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se “tornou” não interessa à arte». Ou seja, a arte é um meio de sentir a mudança, a transformação, o poder vir a ser “aquilo”, “mas também outra coisa” – como nos diz J. Paulo Paes: na poesia “isso aí é também isso ali". Então, o “estranhamento” para Chklovski «é o efeito criado pela obra de arte literária para nos distanciar (ou estranhar), em relação ao modo comum como apreendemos o mundo e a própria arte, o que nos permite entrar numa dimensão nova só visível pelo olhar estético ou artístico».
Quanto ao entendimento ou não entendimento que a poesia feita com arte provoca no leitor, a questão importante é determinar se a leitura, de quem não entende o poema, é ou não estéril pelo não entendimento que a palavra poética provoca no leitor, que rápido pode passar a não-leitor do poeta de cuja leitura nada entende. Então, o que resulta dessa leitura estéril de quem não entende o poema? É sabedoria ou falta de conhecimento? Sabedoria do poeta que trabalha o poema com o tal “estranhamento” atrás referido, de tal ordem tão metaforicamente construído que só ele, poeta, o entende (e muito poucos dotados do poder de discernir o que essa leitura provoca, muitas vezes lido nas entrelinhas o que fica por dizer), ou falta é de conhecimento do leitor que, não entendendo o poema, e demonstrando por A + B a razão do seu não-entendimento, se transforma em sabedoria também?! Num caso há sabedoria e arte e no outro há falta de conhecimento? Controversa esta questão… pela controvérsia criada é importante que se equacione se, no poeta, há sabedoria porque trabalha o poema de ordem a provocar no leitor reacções tais que o levam a decifrar, pela leitura, pelo “ler um poema”, se este acto do “ler um poema” é distinto do ler outro texto qualquer que não seja poema, ou deixa de haver sabedoria no leitor, por não ser capaz de demonstrar que um texto é “um poema” e o outro é um “não-poema”?
O poema e o não-poema
Então, o que é um poema? E um não-poema? São estas duas coisas contraditórias, quando a ambiguidade poética dita o mais profundo saber que há em poesia, que vão definir o que é um poema e um não-poema? Não será certamente, e disso nos fala o poeta e crítico espanhol Ángel Crespo: «Se sabes perfeitamente o que estás dizendo, não continues o poema: rasga-o». Penso como o poeta, ensaísta e escritor E. M. de Melo e Castro, que esta ponte debruçada sobre o abismo do “saber” e do “não-saber”, que frequentemente interroga sem respostas concretas, é que é o maior critério (talvez o único!) de avaliação do poético. E é nisto que se define a maior ou menor arte poética. Trabalhar a palavra de ordem tal que, com ela, deixe em suspenso tudo sobre o nada poético, vestindo esse nada poético de todas as miragens, vivas ou inanimadas, provocando com a palavra poética, construída com certo uso da razão, motivos visionários que façam com que a visão do leitor se afine pela sensibilidade e pelo rigor. Aqui, temos que fazer jus à dificuldade da resposta à pergunta “O que é a poesia? ” e, embora sendo quase impossível a resposta, arriscarmos uma com base naquilo que ela propõe – os motivos visionários afinados pela sensibilidade e pelo rigor. Assim, a poesia será a expressão da alma: os poetas veem a vida de forma diferente – faz parte do mundo literário poético, podermos raciocinar as ideias de outro modo – ainda que usando a razão (ao raciocínio nos referimos) para imprimir arte à poética sem nunca nos deixarmos comandar apenas pelo coração. Porque o real é importante na poesia – e este faz parte da vida quotidiana – o poeta admira e canta a beleza sem nunca deixar de viver o real.
E isto, porque o poeta não deve olhar apenas para o seu umbigo poetando apenas de si, dos seus-só sentimentos, do seu-só pequeno grão de areia que é, em constante reflexão de intimidade egocêntrica, quando, afinal, ele vive num universo de preocupações sociais composto de ramificações profundas, em que se deve debruçar – as tais ramificações que conduzem aos problemas do filosofar-poético e do saber. Mas isto é questão para outro capítulo subordinado a outro tema.
Importa, antes de inflectir para outra reflexão, sublinhar que o extra-sensorial não pode ser olvidado – cantando-o nós, de maneira diferente em poesia, cativados pela beleza, pelo sentimento, pelos valores, pelas coisas que não podem ser silenciadas: a guerra, a injustiça, a ânsia, a procura e a inquietação, a busca existencial, a falta e a ausência de Deus, tudo o que vá além do nosso próprio umbigo – tudo isso é poesia, equacionando estes valores ou ausência deles, com arte. A caneta dum poeta, debruçada no silêncio, desassossegada e inquieta com a interrogação, descendo aos infernos para depois subir aos céus, faz arte, quando é cultura, quando é amor, quando é beleza e música… é isto tudo – é denúncia, é uma constelação de coisas naturais que, metaforizadas ou não, são arte (poética) tal qual a música, a escultura ou a pintura o são.
A palavra escrita: um objecto de arte e com arte
Antes de entrarmos neste capítulo, vamos recordar, acerca da “Arte e Sensibilidade”, o que nos diz Fernando Pessoa em “Carta a Miguel Torga”, datada de 1930:
(...)
[texto entre (...) já publicado na BIRD em 07/Março/2016 e que aqui, nesta publicação, se considera não haver necessidade de o repetir; contudo, a referir no próximo programa radiofónico]
Depois deste preâmbulo, melhor dizendo, deste ensinamento que nos transmitiu Fernando Pessoa sobre “Arte e Sensibilidade” na carta que escreveu a Torga, cabe fazer a seguinte pergunta:
– Será tão válida, como “arte”, a obra poética escrita sob impulsos não pensados – aqueles que vulgarmente se designam por inspiração (momentânea) – sem um mínimo de trabalho de intelectualização num processo de leitura atenta, e crítica também, que de imediato de dá a conhecer ao leitor, como aquela obra que, antes de a transmitir a outrem, “por necessidade orgânica” a reflectimos e criticamos, não só a obra como o autor que a escreve, submetendo “o já elaborado” a uma nova elaboração? Entende-se, sem reserva até que seja demonstrado o contrário, que não. Assim se entende com base em que, fazer com arte – seja na poética, na pintura, na escultura, na música – implica um processo catártico numa “descida ao mundo inferior” para daí “se subir ao mundo superior”. É neste processo de maior ou menor profundidade encantatória, em que o poeta dotado faz vibrar o leitor “com simpatia” com o poema, mesmo que o poema verse tema menos agradável, que se definem os artistas do mesmo ofício em bons ou menos bons ou, como nos diz o filósofo e escritor António Telmo: «É o que distingue o lírico superior daquele que se limita a associar automaticamente imagens umas com as outras». Acrescenta, ainda, António Telmo no seu livro Arte Poética: «Os grandes poetas fazem-nos esquecer as imagens visuais com que nos falam. Tudo, sob a sugestão encantatória do ritmo, se dissolve em sons, cheios de «espírito», cada vez mais altos e profundos, em que ideias e sentimentos se confundem numa mesma, única e indefinível vibração».
Quando atrás se disse, que o poeta na sua arte (se) realizava (n)um processo catártico de depuração – e usando poeticamente os termos descritos “descer aos infernos” e “subir aos céus”, tradição épica de Homero a Dante e a Virgílio, continuada por poetas célebres como Teixeira de Pascoaes, no seu luciferino saber, e Fernando Pessoa, no seu processo obscuro de autognose –, não se pretendia comparação com qualquer crença ou credo. Se do ponto de vista religioso “descer aos infernos” significa expiar as almas por terem pecado na vida terrena para, depois de tornadas puras, subirem ao lugar eterno e contemplativo dos céus, nos poetas são eles que, voluntariamente e em vida, ali descem para dali saírem regenerados. Interrogando e interrogando-se, neste processo do conhecimento de si próprio, o poeta, trilhando antes caminhos obscuros, atinge agora a perfeição e até poderá inflectir noutro sentido o seu modo depensar, de agir e de transmitir ao mundo, escrevendo, guiando-se por caminhos diferentes do inicial – por exemplo: um poeta, antes ateu, pode, assim, converter-se à fé. Não vamos entrar nos planos da consciência, de que fala o filósofo Bergson, mas apenas sublinhar que, no processo poético, o aperfeiçoamento está subjacente ao saber criar com arte. E afirmaremos, sem medo de errar, de que na “descida” que é “subida” ao mesmo tempo, como nos diz António Telmo, está implícita a actividade do espírito com o processo de conhecer. Assim sendo, a “descida aos infernos”, metaforicamente usada na obra poética, não é mais do que um processo de amadurecimento do autor sobre o texto, de depuração da escrita para a subida ao conhecimento – esta catarse é o caminho certo para a poética com arte.
A este propósito, do poema de Teixeira de Pascoaes “canção de uma sombra”, se destaca a seguinte estrofe, característica desta descida metafórica aos mistérios da noite, aos abismos da sombra e aos segredos das profundezas do inferno:
«Ah, se não fosse a noite misteriosa
Que meus olhos de sonhos povoou,
E de vozes sombrias meus ouvidos –
Eu não seria o que sou.»
No seu processo de conhecimento, Fernando Pessoa se refere, no seguinte poema, a este processo obscuro da autognose:
«O que em mim sente está pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, puder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! O céu!»
Sem comentários:
Enviar um comentário