quinta-feira, 25 de agosto de 2016

FEYISA LILESA, JESSE OWENS E… LENI RIEFENSTAHL – AS OLÍMPIADAS DA RESISTÊNCIA

ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA
Os jogos olímpicos são espaços de desporto, de partilha mas também de superação de limites, de reflexão e de resistência. A maratona do passado domingo projetou a resistência de um atleta: Feyisa Lilesa corta a meta em segundo lugar e,através de um gesto, lança um alerta contra a barbárie. Transforma o sonho de um atleta numa forma de luta contra a desumanidade.

Neste mesmo mês, estreou em Portugal, um novo filme sobre o lendário atleta Jesse Owens, detentor de quatro medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim. Um atleta que supera os limites, projeta a tensão racial do seu próprio país e desafia os objetivos de Hitler destruindo o mito da supremacia da raça ariana.

Race – 10 segundos de liberdade, do realizador Stephen Hopkins, retoma, mais uma vez, a questão racial e transporta-nos subtilmente para uma época que não pode ser esquecida. Race é o retrato de uma luta e de uma resistência, um olhar cinematográfico acerca de um atleta resistente e desafiador.

Tenho, assim, mais um pretexto para falar de uma realizadora, também ela resistente e, afinal, a primeira mulher a conceder a Jesse Owens a aura da glória cinematográfica: Leni Riefenstahl.

Em Olympia (1938), Leni Riefenstahl projeta o suspense das multidões que assistiam às provas dos seus atletas favoritos. São rostos de soldados, de mulheres, de muitos jovens e de muitas crianças. Todos eles muito louros, de olhos muito claros… muito arianos. Os corpos dos atletas filmados por Leni são, também, de uma forma inesperada, corpos de resistência. Os Jogos Olímpicos de Berlim, supostamente aproveitados para a exaltação física da beleza e da resistência física arianas, foram palco de grandes vitórias de atletas negros norte-americanos. Leni Riefenstahl fez deles protagonistas de múltiplas sequências, num tempo de valorização de corpos, de músculos e de capacidades infinitas de velocidade e controlo físico.

Glenn Infield referiu, acerca deste documentário, a nítida valorização do corpo em detrimento da divulgação doutrinal da raça ariana. Leni Riefenstahl demonstrou uma fascinação irrefutável por Jesse Owens concedendo-lhe sequências inesquecíveis e planos fabulosos que espelham a sua capacidade atlética, o poder dos seus músculos e a sua inesquecível determinação.

Hitler confessou a Baldur von Schirach que os americanos deviam ter vergonha de ganhar assim tantas medalhas graças aos negros e recusou deixar-se fotografar ao lado de Jesse Owens. Leni apercebeu-se, desde muito cedo, que Jesse Owens viria a ser uma das grandes figuras dos Jogos – o facto de ele ter sido vencedor numa série de provas facilitou-lhe a vida. A câmara de Leni Riefenstahl não abandona Jesse Owens e projeta nele o protagonismo do movimento corporal, na busca incessante de uma beleza, de uma vontade e de um inevitável erotismo. Esse movimento define-se na profusão de grandes planos do rosto do atleta perante a adversidade e perante a confirmação do triunfo, perante o suspense e a tensão da vitória. A expressividade do rosto do atleta e a confirmação das suas emoções são uma constante nos enquadramentos escolhidos, através de uma nítida valorização da focagem em contre-plongée, ao longo de todas as provas. Jesse Owens torna-se o alvo de planos longos, de percursos de câmara através do rosto, das pernas e dos pés, de acompanhamentos vertiginosamente rápidos documentando a velocidade da sua performance, denunciando a tensão, a preparação da partida e a emoção da vitória.

Por causa de Jessie Owens, Leni fez triunfar, mais uma vez, a sua vontade. A força e a exigência da arte cinematográfica e a admiração pelas potencialidades do corpo de um atleta impuseram uma resistência contra as exigências do regime.

O espírito olímpico preconiza a paz e a verdadeira comunhão entre os povos. Naqueles dias mágicos em que os limites são superados, os objetivos atingidos e os sonhos realizados em forma de medalhas, o mundo não pára. Continuam as guerras, as atrocidades, os massacres, as fraudes e os boicotes. Mas também há lugar para a resistência, para a luta e para a certeza de um futuro que poderá ser diferente.

Em 1936, Berlim queria projetar a supremacia da raça ariana e um dos atletas mais medalhados foi Jesse Owens, nada ariano, nada alemão. Hitler era racista e não escondeu esse sentimento durante os Jogos e Leni Riefenstahl misturou, em Olympia, as vitórias dos corpos louros e arianos com o protagonismo e os gestos dos negros norte-americanos. Jesse Owens trouxe para Berlim a hipótese do milagre e a projeção das tensões raciais no seu próprio país. Feyisa Lilesa, com uma vitória e um gesto, denuncia a barbárie, uma barbárie que desconhecemos porque não temos imagens dela, porque não temos jornalistas que a denunciem. Tudo isto porque temos acesso a muitas imagens, a muitas realidades mas… mas há sempre uma supremacia da imagem que nos esconde outras tantas… Ainda bem que as Olimpíadas também podem ser os jogos da transparência e da resistência.

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