ISABEL ROSETE |
Reunimo-nos, por vezes, para celebrar a Poesia: aquando do lançamento de um livro da nossa autoria; aquando da homenagem a um Poeta, vivo ou morto, que merece o nosso louvor, em tertúlias de exaltação da Poesia e do Poema. Em qualquer dos casos, sempre que um Poeta fala – quer por ele próprio, quer nós por ele - é a sua obra que nos é dada a conhecer, é a Poesia e a sua poesia que se torna a protagonista do palco onde a recitamos, ouvimos e expomos. Afinal, a obra permanece para além do seu autor e, neste sentido, ultrapassa-o, mesmo que ninguém a volte a ler.
A obra clama pela eternidade contrastante com a efemeridade física da pena que a lavrou em sementes de Vida, em modos de serenidade ou de revolta. É por esta via, a do protesto, a da luta do tempo com o Tempo, que se imortaliza o nome do punho que a ergueu, porque nela deixou o seu sangue, o seu Espírito impregnado em cada palavra dita e não-dita, a sua Identidade irredutível, nunca substituível por nenhum outro, mesmo que o poeta não saiba o que, sobre si mesmo, dizem os seus versos.
O tempo do Poeta, sempre o nosso tempo e um tempo-outro, é o da Sociedade em que está inserido, é o da Cultura/Educação que a move ou desvirtua; é o tempo recente e presente que não se perde na vertiginosa passagem dos séculos que lhe sucederam e lhe sucederão. O tempo do poeta é o Hoje que, do outrora, se projecta num futuro a esboçar, pois é à visão do seu quotidiano, igualmente o nosso, que vai buscar a inspiração facilitadora da conquista e da atenção dos seus ouvintes, dos seus leitores: é a Poesia que fala nele e em nós, e não nós que falamos por ela; é a Poesia que nos interpela, e não nós que a interpelamos. O testemunho de Jorge de Sena torna esta minha tese ainda mais clara e evidente, quando afirma na obra «De Pedra Filosofal», no poema “Para o aniversário do poeta”:
“Não passam, Poeta, os anos sobre ti,
Embora sejas mais mortal que os mais;
No tempo, viverás longe daqui,
No espaço, apenas deixarás sinais.
E quando, pelos campos silenciosos,
Lá te encontrarás nas ondas dos trigais,
Repara como fogem receosos,
Para o poente, os ventos luminosos –
Antes que os homens nasçam teus iguais.”
A Poesia não é, apenas, “cousa” de Hoje, não se arquitectou, assim de repente, num rasgo acto extra-ordinário da imaginação criadora. A Poesia não é pura vagabundagem do Espírito que se aventura nas façanhas da escrita. A Poesia não é o soltar aleatório das amarras de uma qualquer mente em estado de efervescência alucinatória. A Poesia é “cousa” de ontem (e de sempre), anterior ao que conotamos de pensamento racional ocidental, nascido nas franjas da civilização grega inicial, da qual perdemos - pela tecnização e pela terrível massificação do mundo das palavras - a sua função primacial: a intenção/missão didáctica dos primeiros educadores helénicos, os Poetas. Entre eles devemos destacar HOMERO, em cujos poemas/narrativas poéticas-épicas se encontra um ideal de Vida e de Cultura, segundo uma determinada hierarquização de valores, a qual não é jamais anacrónica, desactualizada, na sua essência e fundamentação, nos seus intentos e determinações.
Tal como Homero fora o educador da Grécia - palco do que somos e não somos hoje, mostrando ao seu Povo a indesmentível circunstância do seu ser historicamente situado num espaço e num tempo próprios, que não se esgotaram no momento do seu acontecer - os nossos Poetas foram, são, os verdadeiros educadores do nosso Povo, transmitindo a sua essência, a sua Alma-Pátria, apresentando os seus desígnios, o já cumprindo como exemplificação dessa essência, o que ainda há para cumprir e urge que seja realizado no seu devido momento, que não pode ser adiado, sob pena da desestruturação desse mesmo Povo e da sua Nação. Os Poetas (e o que é dito sobre os Poetas é, igualmente, válido para os Filósofos) são Educadores no sentido mais lato do termo Educação, ou seja: a formação global do homem enquanto homem e do homem enquanto pessoa-cidadão com os seus naturais direitos e deveres cívicos. Os Poetas ensinam, instruem, formam e enformam a matéria bruta que somos, ao registarem, pelas palavras-de-origem, o percurso existencial que realizámos e vamos edificando como Povo histórico.
Os Poetas são relatores e mensageiros. Também profetas, visionários de um tempo que há-de vir, perfilhando, no Presente, os autênticos caminhos a seguir no Futuro, mais próximo ou mais longínquo, em prol do progresso-progressista do seu Povo enquanto Nação com Identidade própria (contra a des-identificação provocada pela globalização, diríamos hoje e agora).
E se o Poema “é a voz de toda a gente, todos eles, que, /não se tendo ouvido, não a sabem sua” (como afirma Jorge de Sena em «De Post-Scriptum»), a Voz do Poeta é a voz historial do chamado da sua geração e das gerações vindouras que, farão do Futuro, o Passado do que as outras foram ou não foram, elevando as suas virtudes e corrigindo os seus erros. Afinal, tal como os Filósofos, os Poetas não crescem como cogumelos. São frutos da sua época, do seu povo, cujos humores mais subtis, mais preciosos, correm nas suas ideias, sempre predispostas a colocarem-se em acto vivo.
O Poeta perscruta as reentrâncias de todas as coisas na sua evolução, extraindo os véus, as máscaras que as envolvem e escondem o seu verdadeiro viso, por vezes, camuflado em outros visos que já não são os seus. Vê o “claramente visto” e afirma-o do mesmo modo, quer dizer, sem dúvidas, sem hesitações, com a firme convicção do dito e do feito, transportando a Verdade em si. O olho do poeta enxerga por dentro. Também assim são os seus ouvidos, naturalmente capazes de escutar os ultra-sons de uma forma inigualável, naturalmente capazes de escutar todos os sons que ouvimos e não ouvimos. A sua escuta, tal como a sua visão, é atenta, perspicaz, íntima, estando sempre dentro e fora dos acontecimentos, dos factos, do real e do possível, o que lhe permite uma espécie de visão e de audição dupla, mergulhada nas entranhas do Ser. O mesmo se passa com todos os seus outros sentidos – o olfacto, o tacto, o gosto – holisticamente interseccionados. Nada lhe escapa, contrariamente a nós, que somos entes de mentes bicéfalas, sempre distraídos com que nos parece ser.
Ouvir a Voz dos Poetas significa aprender, crescer, sobretudo qualitativamente, aceder aos mais altos e ilustres corredores do saber. Cabe-nos, então, perguntar de consciência lúcida:
1. De que estamos á espera para escutarmos a Voz dos Poetas?
2. De continuarmos no marasmo da ignorância que não é douta?
3. De nos afundarmos ainda mais no já afundado mundo em que vivemos?
4. Será que ainda não nos apercebemos de que há um 5º ou um 6º Império que urge realizar já no seio do caos existencial em que vivemos, material e espiritualmente, nestes tempos de infortúnio, a que simplesmente chamamos crise, pelo vazio das palavras que todos os dias nos chegam através dos discursos demagógicos, ocos de conteúdo, em virtude da ausência de conceitos e de projectos autênticos que nos movam à realização das acções, de facto, necessárias?
Se sou ou não Poeta, quem sabe que o diga! Porém, tomo como minha esta missão dos Poetas, com toda a humildade e honestidade intelectual que me caracterizam, recusando-me a calar a minha Voz sempre que a tenho de erguer; recusando-me à postura do negativo silêncio enquanto forma de cobardia, de comodismo ou de hipocrisia, emerso em qualquer solar obscuro de estátuas amputadas. Assim faço ecoar, por todo o lado aonde a minha voz chega, as minhas palavras, apresentando-as sobre a forma da minha poesia filosófica que diz, em plena transparência, o meu pensamento. Por isso, organizo e realizo as sessões de lançamento das minhas próprias obras e das muitos outros, com cujas ideias estou em sintonia, seguindo o genuíno intuito de partilhar com os meus pares/ímpares a minha visão do mundo, em nome da Verdade do que realmente é, condenando os ignóbeis actos dos Homens e celebrando os seus nobres feitos, os quais pretendo seguir perduravelmente, apesar de todas as minhas limitações de género e de espécie.
Por último, não posso deixar de afirmar, quiçá reiteradamente, que a Poesia é absolutamente essencial à Vida e ás nossas vidas concretas e determinadas. É o seu alimento vital, o sangue vivo-fresco que corre pelo Espírito do Mundo, pela Alma dos Povos, alimentando o ciclo das gerações que se sucedem, quer na sua desventura, quer no seu estado de notabilidade, porque a Poesia:
1. Diz a Vida em todos os seus aspectos espirituais e materiais. Por isso, e como afirma Jorge de Sena, na obra “De coroa da Terra”, são “inevitáveis outros poemas novos/ sinal da nova gravidez da vida/ concebendo, alegre e aflita, mais um mundo novo,/ só perfeito e belo aos olhos de seus pais”. E a Vida, continua o Poeta, “que é prostituta ingénua,/ terá, por momentos, olhos matérias”;
2. Diz as nossas vidas, tal como elas decorrem quotidianamente, em todas as suas múltiplas vertentes, descrevendo-as, caracterizando-as nos domínios do Pensar, dos Afectos, das Emoções em Linguagem colocada em forma de Verso, referindo-se, sempre, a nós, como seres humanos reais que somos;
3. Revela as nossas aventuras, sonhos, desejos, no amor e na dor, no esquecimento e na morte, na alegria e na angústia, na satisfação e na indignidade, nos nossos encontros e des-encontros, preenchedores da nossa existência de “animais racionais”, também bi-céfalos, construtores e destruidores do mundo, da vida, à qual sempre voltamos como predadores ou como presas.
Um texto que enche a alma do poeta.
ResponderEliminarÉ sempre um prazer ler-te, querida amiga. Contigo aprende-se. Um beijo
Muito obrigada, querido amigo Álvaro Giesta. É o que vai saindo, assim espontaneamente.
ResponderEliminarBeijinhos