sexta-feira, 5 de agosto de 2016

AQUELE HOMEM

DêF
Era um homem pobre, ao ponto de parecer demente, aquele que me sorriu na central de autocarros. Pergunto-me se seria Deus feito pedinte e me olhou de forma indireta. Escaldava nas faces vermelhas, à medida que se aproximava da minha cadeira, reticente, talvez pelo meu cabelo esticado e com pinta de urbanidade, o cabelo, não o homem. Chorei muito por dentro. Sempre tive essa insânia ao avistar a humildade em forma de rosto. Tinha uns olhos em poças, luzidios numa face rosada; e comíamos os dois uma sandes qualquer, com um banco ou dois de intervalo, numa central de autocarros no interior do país. 

Tinha duas mochilas este homem, numa guardava a merenda, traçada a tiracolo; na outra, não sei o que estaria, mas parecia perigoso. Temi-o demente.

Tinham-me avisado que naquela cidade o encerramento de fábricas tinha criado muitos homens dementes, baixos e gordos; temi que o desemprego não fosse capaz de explicar a questão da estatura! 

Quis, todavia, fitá-lo por dentro, mas havia demasiados cabelos em branco, naquele banco.

Vi-o afastar-se, por fim, mancando, desalmadamente, num corpo de trolha que afinal não trazia recados de fábricas desabitadas, como tinha primeiramente pensado. 

Imutável na minha sandes, questionava o propósito de tão intimidante figura: no corpo, as marcas do trabalho e do tempo gasto nas serras; nos olhos, a força de quem te envia, de longe, uma mensagem de um só Deus feito homem. 

Questionei-me então: “como manda, Deus, um homem daqueles à minha presença; a mim que sou tão frágil e que nada podia fazer por ele”. Chorei novamente por dentro, com uma profundidade que ainda hoje consigo sentir. 

Quis vingar todos os homens assim, arrastando-os com a minha caneta até a um boletim de euromilhões; quis fazer-lhes outras histórias, com finais felizes e de grande abundância. 

Conheci algumas réplicas daquele homem: uma delas nas instalações de um banco fino da cidade onde trabalho, a mais de 200km de distância. 

E aí estavam dois homens pançudos com a mesma luz no olhar; a este faltava-lhe uma mão, mas tinha dois filhos. E o outro? Teria família? A marmita fazia adivinhar uma mulher de formas roliças e de jeito para o tacho, mas e os outros? 

Ao homem da estação vi-o seguir, cambaleando, até a um autocarro de regresso a casa; não tinha carta, nem carro, talvez fosse até um homem cruel, quem sabe! Mas os seus olhos negros e humanos faziam adivinhar a presença de todos os homens na existência de um só! 



Oxalá seja um homem feliz!

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