segunda-feira, 29 de agosto de 2016

ROUBA-SE, ASSIM, À MORTE, O SENTIDO QUE SE DÁ À VIDA

[O início daquele africano passamento começou no cais, numa manhã de sol agostal a cair a pique. Iria ser feito de campanhas aventurosas, mistérios indecifráveis, sofrimentos incógnitos e destinos de seguranças duvidosas, nunca contados por pudor e vontade de esquecer, tendo a embalá-lo o sacrossanto dever da defesa da pátria lusa das manigâncias e cobiças externas, em subversivos assaltos às nossas «possessões ultramarinas», como se de uma reza permanente se tratasse.

Havia os que diziam que este destino de ir para as Áfricas, em desperdício da juventude, com armas e bagagens e de alma dependurada em alvoroço, já tinha começado muito antes...] in O MURO (pg. 97) de Afonso Valente Batista.

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ALVARO GIESTA
Naquele tempo, em que a celeridade dos correios não era a que se verifica hoje, chegava uma carta a cada quinze dias. Vinda de longe. De muito longe. De tão longe, que se reunia a família toda, para a ouvir ler. Para me ouvir lê-la. Trazia no seu interior uma vida de saudade. E dava muitas vidas a estes que por cá tinhas deixado. Principalmente a minha mãe. Renovavas-lhe a vida! Roubavas assim, à morte, o sentido que a vida tem.

Tantos anos de ausência... partiste como colono, com carta de chamada. Era assim a política daquele tempo. Tinha que haver alguém que, lá longe, garantisse ao estado português que te dava o sustento se fosses incapaz de fazer pela vida. Convenhamos que nem era mal pensado...

De quinze em quinze dias, a tal carta. Cabia-me a mim lê-la. E, quantas vezes, bem contrariado o fazia. Ao lado, com o rosto seguro entre as mãos, a mãe, que a ouvia, derramada em lágrimas. Era a saudade a derramar-se em suspiros. Também não era preciso muito... qualquer coisa a fazia choramingar... às vezes erguia ambas as mãos, juntas, numa prece muda e assim as mantinha durante a minha leitura. Mas sempre, sempre, as lágrimas. Sulcavam-lhe as rugas que já se lhe iam afirmando no rosto. Nem à tua chegada, naqueles envelopes fechados aureolados a verde e vermelho, elas se desvaneciam, que fosse, por segundos. Parece que até se lhe acentuavam mais. Talvez por tanta ausência. Quiçá, pela responsabilidade que lhe deixaste sobre os ombros... guardar dois filhos, o mais velho com pouco mais de quatro anos de idade, criá-los e gerir largas propriedades de olivais, amendoais e vinhas.

Pedia-me que lha lesse duas e três vezes seguidas, fazendo-me parar no tempo da tua escrita e voltar atrás, para te repetir, como se as palavras, a guardar na memória, fosses tu, nela, duplamente presente; eis a razão porque detestava ler as tuas cartas. Ao lado, a avó, a mãe dela, num silêncio mudo, que o mesmo há muito lhe fizera secar as lágrimas, recordava amargamente aquele que há mais de três décadas partira para o Brasil e que já há quase trinta anos deixara de verter letra, em magra folha de papel, a dar conta de si e do filho mais velho que, com apenas dez anos de idade, mal fizera a quarta classe, lhe roubara mandando-o ir ter com ele a terras de Vera Cruz na busca de melhor sorte. Negava-se, até, a ouvir falar dele. Sobre ela, velhinha corcunda numa cifose que a obrigava a dobrar o corpo quase em ângulo recto a que os duros trabalhos do campo se encarregaram de acentuar, também a responsabilidade de criar cinco filhos menores e desipotecar as propriedades hipotecadas por gorda dívida naquela ida cega do meu avô para o outro lado do Atlântico.

Na minha rebeldia, e para acelerar o incómodo processo de leitura, que a brincadeira lá fora, na rua, me chamava com impertinência, saltava, de onde em onde, uma ou duas linhas. Roubava assim à escrita o sentido que lhe dava a leitura. Mas ela, a mãe, que nunca pusera os pés na escola, que no tempo dela não havia na aldeia e o pouco que sabia lhe fora ensinado pela irmã mais velha a única afortunada, entre os rapazes, a fazer a terceira classe na freguesia percorrendo todos os dias cerca de dezasseis quilómetros nos dois sentidos, deduzia perfeitamente que a estava a enganar:

"Repete lá... o que lês não faz sentido".

Depois, entre arrenegada e ansiosa, arrancava-me a carta das mãos, aproximava-a dos olhos que vertiam lágrimas teimosas sobre a tinta. Ficava a tua escrita, meu pai, toda esborratada.

"Onde é que ias?... ", e tentava decifrar o que ficava sob o borrão que as lágrimas desenhavam.

Do pouco que aprendera com a irmã mais velha, soletrava aquilo que lhe pareciam as letras certas por entre o enublado dos olhos... e eu, apressado para ir para a brincadeira, inventava palavras onde nem sequer as havia. Teimosamente, tentava recordar, das letras que aprendera à sua custa, como se juntavam e formavam as palavras. Depois, num esforço inaudito, reconstruía a frase.

"Vês?... o que o pai escreveu foi isto e não o que tu inventaste."

E lá chovia a tal bofetada, advertência que conhecia para me castigar pela maldade. Naquelas cartas prendiam-me a atenção os selos que traziam. Naquele tempo ainda se faziam selos de qualidade... hoje já não; os selos são substituídos por carimbos ou impressões coladas sobre o envelope! Selos com animais esquisitos que anos mais tarde aprendi a conhecer. E, até, com alguns deles a conviver. Cruzei-me com eles pelas matas daquela que foi a terra que mais me prendeu o coração: Angola. Aquela pátria do coração e da memória onde criei raízes e as enterrei, também, sob a laje fria duma campa. Prendia-me a atenção, particularmente, aquele animal bojudo, com dois chifres por cima do focinho. O temível e respeitável rinoceronte.

Uma vez, pelos anos setenta, senti-me tão perto da morte que um me moveu nas matas do leste de Angola! Apressava-me a encher o meu cantil de água um pouco acima do local pantanoso onde três animais se esponjavam. Achei-os inofensivos naquele seu ar bonacheirão. Principalmente aquele filhote que veio até mim farejar-me. Embevecido com a figura do animal, nem me apercebi da tentativa de ataque que a fêmea, ciosa da sua cria, me moveu. Um grito do carregador «rino, furriel!», alertou-me para o perigo que corria. Que fazer? Nada! O sangue gelou-se-me nas veias. Fiquei estático, estarrecido de medo, enquanto o negro se esfumava, primeiro pelo trilho, depois por entre o rendilhado das bissapas. Os soldados da secção que comandava deixavam estampar no rosto o medo e o respeito pelo animal em fúria. De cócoras, como estava, fiquei pregado ao chão.

O cabo Dias, a minha alma protectora, que já enchera o seu cantil de água, meteu a G3 à cara e apontou à espádua esquerda do animal. De repente, a cria deu meia volta e abandonou o local na direcção oposta numa louca correria. Os progenitores seguiram-na e infiltraram-se no mar de capim a perder de vista, para lá da extensa savana que se perdia no horizonte rumo ao caudal do Cuango, onde mergulharam.

Ao escrever estas linhas recordo-me de tantas cenas parecidas com esta, que tu me contavas, meu pai. Do tempo em que os transportes eram raros e tu corrias esse país, de lés a lés, no cumprimento do teu dever para com a Missão Geográfica de Angola. Das noites passadas por turnos, em redor da fogueira acesa, quando tinhas de acampar durante a noite e eras acossado pelas investidas do rei da selva. Revezavas-te, com os três homens da campanha que te acompanhavam durante os seis meses de ausência de qualquer vestígio de civilização, para permitir que o engenheiro repousasse durante a noite, para estar fresquinho para a azáfama do dia seguinte. Assim lias, no longínquo azul, o destino dos dias... e eu, hoje nessa recordação, peço-te:

desata as estrelas do céu,
copia-as uma a uma
e vem colá-las nesta árvore do meu quintal...

mas como podes tu colar a luz das estrelas
na árvore do meu quintal
se eu não tenho quintal,

e se as estrelas que tenho por aí plantadas
são as tuas árvores também?

deixa as estrelas longínquas brilharem
no seu pedestal,
contenta-te com os pássaros
que tens aqui ao alcance da tua mão

abre-lhes o coração expiável
e deixa-o pulsar, baixinho
tactear os espaços verdes sem garras
nem gatilhos
nem invejas, nem cegueiras

deixa-o alimentar de sonhos
como os meninos negros se alimentam
no seu sítio à volta das figueiras

desata, depois
as minhas mãos das tuas mãos
e deixa-me voar sozinho
pela solidão dos desertos até chegar
ao cume mais alto dos céus

quero tentar se ainda vou a tempo
de encontrar Aquele de quem me perdi
na solidão da cegueira
sacrílega dos meus versos - Deus!

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