terça-feira, 9 de agosto de 2016

MENDIGOS DA CIDADE

ELISABETE SALRETA
Todos os dias passo pelo jardim e dou conta dela à janela. Admiro o seu semblante recortado pela luz da lua que também ela contempla.

Ao luar, tudo parece coberto com um manto de magia. Do seu miradouro lá no alto, vislumbra a cidade com os seus pontos de luz brilhante como se fossem milhentas estrelas numa festa. O horizonte parece sempre disforme e tem sempre uma luz difusa onde se percebe o recorte dos prédios e das colinas.

Conhece todos os habitantes das redondezas, não pessoalmente, apenas pelo caminhar quando se apressam nos seus afazeres e a caminho do trabalho. 

Ela já os conheceu de perto, de um outro ponto de vista. Naquela altura apenas os conhecia pelos pés, pois o seu rosto estava sempre junto ao chão. Ficava o mais quieta possível e longe da vista dos que passavam tão apressados e nada preocupados com ela. Tinham demasiada pressa. O tempo. Ai o tempo! Ou a falta dele. Seria assim? Dizem que o tempo é igual para todos, mas o certo é que as gentes das cidades nunca têm tempo. Caminham de cabeça baixa, mas nem mesmo assim se dão conta do que se passa ao nível do chão. Absortos nas suas vidas comezinhas, deixam passar tanta luz e beleza. Como a dela que com o desprezo do tempo se foi volatilizando. Acostumada a uma casa, uma cama quente e macia, a uns banhos e a um ambiente limpo, partilhava agora com outros como ela as agruras das intempéries, situação comum a todos os mendigos.

Ninguém se lembra deles, mas existem. Os “cabeças baixas” não os vêm, porque não têm tempo. Foram bonitos um dia. Foram parte de uma família, foram objectos de afecto e amaram alguém. A vida, ou a falta de tempo e de tantas outras coisas, trouxe-os até aqui. Onde se morre um pouco a cada dia. Onde se perde a beleza a cada hora. Não existem feios, apenas pobres. E isso estava bem patente nas sua vidas miseráveis de abandonados e ostracizados. Não escolheram. Alguém o fez por eles.
Naquele dia o sol brilhava calidamente no que era um início de primavera. Convidava os ossos doridos e fatigados pelas camas duras de cimento, frios da pedra, a descansarem e a reviverem de novo. Estar à vista era um perigo, porque embora não os vissem, também ninguém os queria. Estes mendigos eram resultado de uma sociedade desequilibrada, mas que sem qualquer dó rejeita a sua criação.

Mesmo assim, aventurou-se. O astro rei sorria lá do alto e os seus raios penetravam em todos os lugares convidando todos a segui-lo e a serem felizes de novo. Sentia o seu calor e sorria. O prazer daquela quentura morna fez com que se abstraísse do mundo e da sua condição. 

Depois aconteceu tudo muito rápido e morreu para o mundo. Feliz, não sofreu. 

Acordou nos braços de alguém que a acariciava e que lhe falava ternamente. Já quase não se lembrava do que era sentir amor. Era bom e deixou-se ficar. Só mais um bocadinho. Pensou estar a sonhar mas a voz continuou lá e fez um esforço para abrir os olhos e ver a sua origem.
Achou outros olhos que lhe transmitiram paz e que choravam de contentamento. Fixou-se neles e a seu modo também chorou.

Hoje ao fim de alguns meses, recuperou parte da sua beleza. Perdeu muito, mas ainda não deixou de ter medo. Olha de novo para si e imagina-se como era há tanto tempo atrás. Cada vez que volta a deitar-se numa cama quentinha e macia, recorda-se da dureza da rua. Cada vez que tem a sua refeição a horas, pensa nos dentes que perdeu para a fome.

Deixa-se estar à janela, não porque tenha saudades da rua, apenas porque vela silenciosamente por todos os que vivem como ela já viveu.
Ali à janela, aquela gata que um dia foi traída e atrozmente abandonada à sua sorte, vive de novo. E é um verdadeiro anjo.


2 comentários:

  1. Helder Filipe da Silva Monteiro9 de agosto de 2016 às 18:58

    Maravilhoso e mágico, poetisa Elisabete! Parabéns e obrigado por mais este belo artigo!

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  2. Um belíssimo texto para meditar e saborear.
    Meditar porque, infelizmente, é uma realidade de todos os dias que nunca é demais denunciar, alertar e tentar modificar.
    Saborear porque muito bem escrito e com uma magia especial.
    Obrigada, Elisabete, gostei muito!

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