ELISABETE SALRETA |
Carlotto passa o dia sentado à janela.
Todos se admiram com a sua esbelta figura e com o seu tom de pele que lembra o mel que escorre dos favos nas manhãs quentes de verão. Cada poro parece deixar escapar uma gota que se agrupa com as demais fazendo um marmoreado único, como uma impressão digital. O sol não lhe altera a cor, apenas aviva o brilho saudável. Gosta de estar à janela, embora fechada, a ver quem passa. Ora senta-se, ora recosta-se, sempre com aquele ar altivo que o caracteriza. Apesar do passar do tempo, o seu corpo não se altera. Quem percorre aquela beleza com o olhar, perde-se em tamanha formosura.
Até chegar ao seu olhar agora vazio. Quem demorar muito tempo e conseguir chegar ao interior da sua alma, presente outros tempos de histórias felizes, raios de sol, flores com as suas cores extravagantes e os seus aromas inebriantes, sente a relva onde já pisou, as brigas que viveu, os quadros que o seu olhar pintou que hoje não passam de doces lembranças e de nostalgia. Sim! Consegue experimentar a solidão de hoje e a avassaladora falta de outros tempos. A vida tornou-o prisioneiro e não percebe o porquê. A saudade queima-lhe o peito como um ferro em brasa, porque não é uma escolha sua.
Faz muitos anos que não sai de casa, não por opção mas porque alguém dissidiu por ele. E todos os dias pergunta-se porquê. Porque lembra-se. De brincar com outros como ele, de a vida ser tão fácil. Apenas pensar onde se encontra o comer quando sente fome ou chamar pela mãe que o acompanha ao sítio e o acalenta com uma festa. Nunca mais a viu e cada dia que passa a sua lembrança vai-se tornando cada vez mais difusa. Ficou apenas o seu cheiro e o tom da sua voz.
E não pára de inquirir o primeiro a chegar a casa. Esforça-se por chamar a atenção como pode e a sua condição permite. Parece perguntar como foi o dia do tutor, como se sente, o que fez, mas este chama-o de chato e enxota-o para longe. Mesmo assim, a sua busca por carinho, por calor de outra alma, por compreensão, o seu estridente grito de saudade, não parece chegar aquela alma ocupada com a cozinha, a televisão, o telefone e tantas outras coisas tão fúteis. Da sua boca saem gritos e lamentos e pergunta-se porquê? O que fiz eu para merecer tamanha provação? Mas continua a não ser entendido e quando procura o toque, leva um pontapé ou é fechado sozinho mais uma vez, na casa de banho. Por vezes leva uma palmada e mais uma vez grita mais alto, mudamente, porquê. Os seus olhos enegrecem e chora por dentro. Não deita lágrimas porque não é fácil, mas chora por dentro e cada lágrima corrói o seu interior como se fosse ácido. A solidão. Palavra maldita. Mas a sua única companheira faz muitos anos. E agarra-se às memórias de outrora.
À noite, quando o tutor se aquieta e se estende pelo sofá, procura o seu calor e deita-se ao seu lado.Agrada-lhe aquela partilha, breve. Ronrona como um gatinho e imagina as poucas festas que ele lhe deu durante a sua vida e das brincadeiras que acompanharam os primeiros dias da sua chegada aquela casa. Estava triste por o terem tirado de perto da sua mãe, mas pensava ter encontrado uma nova família que o respeitaria. Mas cresceu. Deixou de ter tanta graça. O seu tutor passou a estar muito ocupado e ele era apenas mais um objecto daquela casa. Dias houve em que não se mexeu quando o seu tutor chegou. Mas este também não o procurou durante muito tempo e quando o viu, deu graças por ele hoje não estar um chato. Nesse dia chorou lágrimas que ninguém viu.
Naquele dia à janela, o sol estava mais convidativo do que nunca. Por uma fresta da pesada janela, chegou até ele o cheiro que o vento traz. A fresquidão fez as suas vibrissas tremerem e sentiu prazer. Forçou a janela com a pata, e esta aos poucos foi-se abrindo. Agora a sua cabeça já conseguia passar e sentia toda a fresquidão da rua no seu focinho, o calor o sol da manhã e os sons lá tão em baixo. Esgueirou-se mais e mais para que sentisse todo aquele esplendor. Deixou-se levar por um cheiro, repuxando os seus bigodes para a frente e fechou os olhos. Deu mais um passo em direcção ao desconhecido. Sentiu-se voar, perdeu-se no azul do céu, sentiu medo e repente tudo ficou negro….
Os animais só nos têm a nós. Somos a sua família e os seus companheiros. Devemos nos lembrar das suas necessidades não só a nível orgânico, mas também devemos zelar pela sua sanidade mental. É normal que quando chegamos a casa peçam atenção e carinho, pois além da imensa solidão, sentem saudades nossas. Mesmo quando não temos tempo, devemos nos lembrar que saímos de casa, vemos gente, deslocamo-nos por onde nos aprovem e falamos com outros da mesma espécie. Temos uma vida social e profissional. Eles apenas ficam em casa, sozinhos. Por vezes destroem uma e outra coisa. Porquê? Conseguia levar uma vida solitária ano após ano? Pense nisso. O mesmo se passa com os nossos idosos igualmente negligenciados.
Vale a pena pensar nisso.
Um artigo interessante porque todo o conteúdo é actual a uma realidade que, muitas vezes, conhecemos bem. Uma verdade que diz-nos duas coisas: "Os animais só nos têm a nós" e outro aspecto similar " Eles apenas ficam em casa, sozinhos. Por vezes destroem uma e outra coisa. Porquê? Conseguia levar uma vida solitária ano após ano? Pense nisso. O mesmo se passa com os nossos idosos igualmente negligenciados."
ResponderEliminarUm artigo repleto de alertas de consciência, do qual vale a pena reflectir! Gostei imenso! Parabéns, poetisa Elisabete Salreta