quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A VIZINHA

A água lava tudo, menos as más línguas.
Adágio Popular



ANABELA BORGES
A Donzília era mesmo bisbilhoteira, cusca, metida à coca das portas e das janelas, das bermas dos caminhos, das vidas das pessoas. A Donzília tinha de saber tudo, caso contrário fugia-lhe o mundo a sete pés.

A Donzília era uma vizinha muito curiosa e muito chatinha. A Donzília havia de saber as coisas quase sempre por força de as pessoas lhas dizerem voluntariamente, vencidas pelo cansaço ou apanhadas nos seus rodeios, porque a Donzília era como fera que, insistentemente, lentamente, rondasse a presa, até ela tombar. 

A Donzília às vezes tinha rodeios e outras vezes era muito descarada. A Donzília arriscava-se a ouvir más respostas, assim tiradas a quente, mas ela estava talhada para isso – tomava-as de saída, com um sorriso de lado, meios dentes a saírem dos lábios finos, o nariz muito comprido, o corpo a sair de lado, a dizer, “Até amanhã, se Deus quiser”, como se nada fosse. Descarada, levava os raspanetes das pessoas, deixava passar umas poucas horas e era como se nada se tivesse passado.

A expressão bem-vindo no tapete da uma entrada implica sempre um risco. Afinal, deixar uma pessoa entrar na nossa casa pode significar deixá-la entrar na nossa vida. E nunca sabemos que espécies de segredos trazem e levam com elas. Não conseguimos prever o efeito que poderão vir a ter em nós; não antevemos os mexericos que a sua presença pode originar. Temos de ter muito cuidado com as pessoas que convidamos para entrar na nossa casa, porque algumas poderão recusar-se a sair. E as piores podem ser aquelas que entram sem serem convidadas. 

Havia uma jovem vizinha que teve de aprender a lidar com a Donzília. A descarada da Donzília, como via que a rapariga era educada e recatada, entrava-lhe em casa pela porta que lhe apetecesse, desde que estivesse destrancada. Não era pessoa de fazer como as outras pessoas, de se dirigir à porta da entrada, que estava sempre trancada, e bater. A Donzília vinha pelo caminho, com pezinhos de lã, abria o portão sem tocar à campainha, e dava a volta à casa, espreitava pelas janelas, rodava as maçanetas das portas, ia pelo terraço, pela cozinha, pela garagem, tanto lhe fazia, que o que ela queria era andar por ali e entrar, como se a casa fosse dela.

Às vezes, as pessoas apanhavam sustos de morte, porque não estavam a contar que lhes batessem fortemente na porta da cozinha, ou numa janela, a qualquer hora do dia, às vezes ao entardecer, e aparecesse um rosto com a mão a fazer de pala, a espreitar para o interior da casa, um ser estranho, como um pigmeu, vindo sabe-se lá de onde. Nunca contavam que alguém lhes aparecesse assim, por isso é que tinham uma casa vedada, com uma campainha no portão. E mesmo o portão não estando trancado, havia a porta principal da casa, em frente ao portão. Parecia-lhes ser suposto, natural e saudável que as pessoas nas suas casas andassem e se sentissem cómodas e à vontade, sem intromissões inesperadas. Podia ainda dar-se o caso de as pessoas nem estarem com disposição de abrir a porta, de receber pessoas, daí que preservassem a sua privacidade. Eram tudo cenários possíveis e normais, mas ali não funcionavam. O que não era normal era o diabo da velha tomar a casa, a privacidade, o tempo e a paciência das pessoas quando muito bem entendia.

E era um chorrilho de mentiras que aquela mulher trazia agarrado a ela, como uma cauda comprida e felpuda, que, por mais que tentasse esconder, ficava sempre com a ponta de fora como as caudas dos gatos. Estava talhada a grilho, moldada pelo tempo, trapaceira, vigilante, curiosa, mentirosa.

Então, a jovem vizinha, que nunca tinha lidado com uma situação semelhante, criatura pacífica e compreensiva, teve de estudar e desempenhar o seu papel. Podia lá ser? Podia o marido andar a fazer jardinagem, com a porta da garagem encostada para ir buscar os utensílios, que a Donzília entrava pela garagem, que ficava lá nos confins da casa, atravessava a casa toda, silenciosamente, com os pezinhos de lã, e surpreendia a vizinha, que, não raras vezes, se assustava com a presença súbita daquele vulto? A velha chegou a surpreender a vizinha no banho, à boca da cortina do duche. Podia lá ser? Mas que susto. Não havia condições de viver com a velha Donzília por perto, não havia sossego ou privacidade. E o problema era que tudo era tão inacreditável, que nunca ninguém estava a contar que ela aparecesse.

Perante os muitos abusos da velha Donzília, a dona da casa achou que deveria tomar atitudes radicais, e disse-lhe, “Dona Donzília, a senhora, assim a rondar-me a casa, a entrar de porta em porta e a espreitar de janela em janela, um dia destes ainda acaba por ver o que não deve”. Referia-se, obviamente a privacidade, intimidades, ao que a velha, com o risinho de lado, entre o cínico e o mal disfarçado, meios dentes à mostra, respondeu, “E então? Não via nada do que nunca tivesse visto”, assim sem mais nem menos. Ao que a rapariga, entre a cortesia e a firmeza de espírito, atirou, “Mas eu não quero, dona Donzília. Não quero que me entre aqui sem tocar à campainha. É o que fazem todas as pessoas: tocam e esperam”. E depois aproveitou que estava irritada, e continuou, “A senhora por que anda à volta da casa? Por que não vem pela entrada como faz toda a gente?”, e ela, riso de lado, “Até amanhã, se Deus quiser”.

Mas não se pense que a Donzília voltou a abusar nesse sentido, não que a rapariga era educada mas mostrou-lhe as garras, não que a Donzília era esperta e descarada o suficiente para continuar a meter-se na vida da vizinhança de mil e uma formas diferentes, saindo de lado mas regressando sempre.

Nesse aspeto, a Donzília ficou disciplinada e começou a utilizar a entrada principal. Mas, valha-nos Deus, por vezes dava vontade de não lhe abrir a porta, de tão intrometida que era. Não havia disposição. Quando havia visitas, a Donzília aparecia logo a bater à porta, é que era logo. Agarrava em meia-dúzia de ovos ou num repolho do quintal e batia à porta, que a curiosidade matava-a. A Donzília morria se não soubesse quem tinha chegado, a quem pertenciam os carros estacionados à porta dos vizinhos. Quando fossem abrir-lhe a porta, já estendia o braço com a oferenda, já empurrava as pessoas para dentro com o corpo e, zás, já estava lá dentro, a arregalar os olhos para ver quem eram as visitas. E, ainda sem ter sido convidada, entrava mais e mais para dentro, cumprimentava as pessoas, conversava como se as conhecesse há uma eternidade, dava umas risadas, e quando já estivesse na sua hora, comunicava descaradamente, “Bem, sois muito boas pessoas, mas tenho de ir à minha vida”, assim sem mais nem menos. E ia embora com o riso de meios dentes cheio de satisfação.

Não se podia com a Donzília, que era mulher de dizer o pensava, à frente de quem estivesse, descompondo qualquer um em qualquer lugar. A Donzília filtrava muito maldizer pelos fígados, devia ser por isso que tanto se queixava dos males da figadeira.

E quando a vizinha, por qualquer motivo, ficasse em casa em dia que fosse de ir trabalhar, a Donzília não se segurava de curiosidade. Dava uns minutos, não mais que uma horita, e lá ia bater-lhe à porta. Se abrissem, ela dizia, “Então?”, ao que a vizinha respondia, “Então? O quê, então?”, e com o riso de lado, a Donzília, “Não foi trabalhar, hoje?”. Ah, velha Donzília, que te matas de curiosidade. Não interessa se a pessoa está bem ou mal, se está doente ou tem algum problema para resolver, se tem uma dor de cabeça, ou uma caganeira, ou uma mera indisposição. Ah, velha Donzília, estarias morta se a curiosidade te fulminasse como um raio. Teve folga, preguiça, fez greve? Estas eram as perguntas que roíam a cabeça bisbilhoteira da Donzília, estas, só estas. E, nos modos, sem dizer as palavras, reprovava que se faltasse ao trabalho, como se a vida fosse a dela, o corpo o dela, o emprego o dela. Ela que nunca tivera um emprego na vida, ela a quem sobrava tempo para rondar as casas da vizinhança e fazer disso modo de vida.



Ora, num desses dias em que a vizinha, com uma grande enxaqueca, tinha faltado ao trabalho, e tinha ficado a dormir, a velha lá veio bater-lhe à porta. Diabo da velha, que tem lata até ao cabo do Inferno. Bateu, bateu; cada batida, cada pancada na enxaqueca. A casa toda trancadinha, a vizinha metida na cama, doente da enxaqueca, na sua incapacidade para ir trabalhar, deixou-se estar, não foi abrir a porta. A velha deixou passar mais ou menos uma hora, e telefonou com a conversa que conseguira engendrar no momento, que descaramento, já se sabe, tinha ela de sobra,

“Está? Então?”,

“Olá, dona Donzília, está boa?”,

“Está em casa, hoje?”,

“Estou, dona Donzília, mas isso a senhora já sabia, senão não me telefonava”, por esta resposta a velha não esperava, mas segurou-se, firme,

“Já lá fui bater-lhe à porta, mas ninguém abriu”,

“Não ouvi, devia estar na casa de banho, dona Donzília. Diga”,

“Mas está doente, não?”,

“Não, dona Donzília. Diga”, a rapariga a rir-se por dentro com a cabeça a latejar,

“É que eu ando mal da periquita, ando assim a arder-me por dentro e por fora, come-me à boca do corpo, sabe, naquele sítio. Eu já tenho lavado com o produto da farmácia, mas, diga-me, aquilo é para lavar com água quente ou fria?”,

a rapariga, pacífica, paciente, educada, com uma valente enxaqueca, ria-se por dentro a bom rir, e a pensar: toma lá, velha chata, que, por mais voltas que dês, não vais chegar a saber por que faltei ao trabalho, que não é da tua conta; fugiu-te a oportunidade ao início da conversa. E com a voz serena, enxaqueca e risos por dentro respondeu:

“Olhe, dona Donzília, lave-a com água bem quente, de preferência a ferver para matar os micróbios, mas, cuidado, para a periquita não ficar depenada”, e riu-se, riu-se a bom rir com a enxaqueca a apertar-lhe a cabeça como num torno.

A velha, manhosa, percebeu bem a ironia, e já estaria com o riso de lado e o corpo de lado a querer abandonar o telefone, danada por não saber o que queria, quando respondeu,

“Pois. É com água morna, não é? Até amanhã, se Deus quiser”.

Daquela vez, até pareceu à vizinha que a dor de cabeça se esvanecia. Ela sabia que, com a corrida que tinha dado à velha Donzília, estava livre de a aturar nesse dia.

Roída que devia estar, a Donzília, roídinha. 

*Conto publicado na anthologia ATÉ SER PRIMAVERA

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