sexta-feira, 19 de agosto de 2016

CONVERSAS PRIVADAS COM O DIÁRIO

«Quem já passou por essa vida
e não viveu
Pode ser mais,
mas sabe menos do que eu
Porque a vida só se dá
pra quem se deu
Pra quem amou,
pra quem chorou,
pra quem sofreu .»
Vinícius de Moraes
MANUELA VIEIRA DA SILVA
Provar aos outros que somos capazes, que valemos alguma coisa, que não andamos neste mundo por andar, porque os outros também andam, ou porque alguém nos deu vida e, por isso, cá estamos… requer um exercício contínuo de malabarismos mentais, de adaptação e de aprendizagem durante toda a vida.

Sou o que sou… E houve até uma altura, tu lembras-te, meu querido diário, que a minha determinação e o meu sentido de liberdade superava tudo o que estava instituído pela sociedade, pelas pessoas que me rodeavam, principalmente na família. E como eu queria mostrar, fazer coisas boas, espontaneamente na ingénua alegria de viver! Sentia-me gente, e eram  tantas as certezas: sabia ver o que estava mal; criticava; era preciso fazer, fazia, sem olhar a quem… Apenas a minha vontade de mudar o mundo, atingir aquele sonho de que todos somos iguais porque pertencemos à grande família que é a humanidade, pelo simples facto de todos sermos humanos e de todos merecermos o mesmo respeito.   

Mas quem era eu para pensar que podia mudar o mundo? Poder, não podia, mas pensava poder mexer na mentalidade dos que estavam próximos, onde eu podia chegar. Àqueles que não tiveram acesso à escola, nem ler sabiam. No pós-25 de Abril era difícil acompanhar na província toda a agitação política e social, todas as mudanças, decretos-lei para isto e para aquilo, como nunca antes acontecera. Por isso esforcei-me para chegar onde podia. Contestava e criticava o que achava errado… Queria dar um sentido à vida nas raparigas que se entregavam à vida fácil, dando o meu exemplo, pois,  apesar de ter atitudes fora do comum, livre e sem preconceitos, tinha um comportamento intocável, trabalhava para o bem, custasse o que custasse. E para saber, para conhecer a realidade no terreno, desobedeci à minha mãe indo fazer épocas de vindimas para longe de casa, com um grupo de raparigas mais velhas. O que eu me diverti, a trabalhar de sol a sol, e a comer uvas e a cantar todo o dia! Senti-me parte do todo numa sã convivência, em que o trabalho em si não pesava.  E não pesa mesmo se for feito com prazer, com vontade, com o íntrinseco sentido de voluntariosa entrega, o sair de si.

Tinha uma energia contagiante que extravasava nas minhas actividades, sempre no encontro com os outros, por exemplo, aproximando-me de mulheres operárias casadas com vista à sua libertação da «escravatura» masculina (esta foi demais!); aproximando-me dos jovens dando-lhes motivos para se interessarem pela vida através da cultura, e fugirem da droga…  

Às vezes pergunto-me se não seria a arrogância da rebelde adolescência, que só mais tarde reconhecemos, como bem a definem os tratados de psicologia. Porque, apesar de todo o meu esforço, o tempo veio a provar que eu estava errada. As mentalidades levam gerações a serem mudadas. O que vivi, afinal, foram os choques de geração normais e os devaneios próprios de uma juventude idealista, ainda sem o peso da real consciência humana, penso hoje, na dúvida constante do que será o certo e o errado. O tempo, contudo, é o grande maestro que segura a batuta e que manda entrar o instrumento necessário para fazer vibrar ou atenuar as nossas vivências, atrasar ou avançar os nossos desejos, com a precisão oculta de um cirurgião, harmonizando todo o corpo da orquestra.

Não somos o que os outros vêem em nós. O olhar de quem nos olha vê o que interpreta no que está dentro dele e não o que está à sua frente, é a superfície exterior sobreposta à superfície interior. Todas as memórias teriam de ser eliminadas para verem com toda a clareza, sem o condimento recalcado da amálgama das vivências e dos pensamentos. Sabes, quando se diz eu vejo isto assim, vem outro e diz, eu não, vejo de maneira diferente e… Quantas vezes é apenas a imaginação de uns que transmigra para a imaginação de outros, como uma tela pintada a aguarela sobre outra aguarela, onde os tons se misturam numa nova composição. As minhas certezas de ontem são as minhas dúvidas de hoje e quase já não sei o que sou, não tivesse uma essência bem enraizada que me guia, ou um anjo que me vigia.   
  
Todos os dias peço a Deus que me ilumine, para ver o que devo ver, sem interferências de percepções adquiridas. Se adquirimos e recebemos percepções de opiniões alheias,  conspurcadas de malícia, de palpites e sugestões impregnados do que mais vil existe, os nossos pensamentos acabam por ser influenciados por essas sugestões, e a imaginação flui livre para o lado dessas sugestões. Um pensamento livre, que procura ser honesto no pensar, deve ter à partida uma base sólida, um rumo de vida. A liberdade só é liberdade se a coerência desse rumo tiver a bússola do bem, se virmos e pensarmos sempre sob a luz do nosso querer, do nosso próprio pensamento.


Há dois lados em tudo. Apenas dois. O olhar toma para si a visão do que tem no interior e, se tudo tem dois lados, o olhar também. O olhar do bem e o olhar do mal. O meio termo será conseguir o discernimento necessário para saber optar viver e ser em pleno, tentar corrigir o que está mal quando posso, sem interferir na minha serenidade. Parece demagogia barata, daquela que se lê nos livros de auto-ajuda, em que o mundo é magia, mas não é certamente.  

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