ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA |
Deliciamo-nos, frente ao ecrã televisivo, com as imagens dos Jogos Olímpicos. Assistimos às diferentes provas das nossas modalidades preferidas. Torcemos pelos nossos atletas, vibramos em direto com os maiores recordes. As câmaras, colocadas em posições estratégicas, oferecem-nos as melhores performances de todos os atletas. Mas nem sempre foi assim! As provas desportivas nem sempre foram o alvo privilegiado das câmaras cinematográficas. Tudo começou em 1936, nos Jogos Olímpicos de Berlim, sob a égide do regime nazi e sob o comando e o rigor exímio da realizadora Leni Riefenstahl.
Leni Riefenstahl é pioneira na área das filmagens de provas desportivas, nomeadamente ao nível da profusão de novas técnicas e de novos espaços para a colocação das câmaras. Para filmar os Jogos Olímpicos de Berlim, ela colocou câmaras automáticas, protegidas com pequenas almofadas de penas, nas selas de cavalos para filmar os movimentos de outros cavalos e de outros cavaleiros em competição; conseguiu focagens em plongée através da colocação de pequenas câmaras em cestos suspensos em balões de ar; colocou câmaras subaquáticas em lugares estratégicos das piscinas para filmar as provas de saltos para a água e os seus operadores de câmara subiam para um trampolim e saltavam para a água ao mesmo tempo que os atletas para obterem novas perspetivas e enquadramentos; construiu rails para que as câmaras acompanhassem os atletas, nas provas de velocidade, e enfrentou a ira dos organizadores e juízes quando fez buracos no relvado para colocar câmaras e quando quis estar o mais próximo possível dos atletas durante as provas.
Em Olympia (1938), Leni Riefenstahl demonstra uma intensa preocupação relativa ao posicionamento e ao movimento das câmaras para uma completa visualização dos corpos. Ela escolheu lugares estratégicos para que as câmaras detetassem gestos, esforços, músculos e a superação de limites de todos os atletas. Durante os quatro meses de montagem, num trabalho de cerca de catorze horas por dia, duzentas e cinquenta horas de material e quatrocentos quilómetros de película, o protagonismo foi sempre conferido ao movimento dos corpos. Neste documentário, o corpo é o enaltecimento do passado e a construção ideológica do futuro. E o tempo mítico e ideológico estrutura-se continuamente na organização do tempo fílmico através da duração dos planos e da utilização estética da câmara lenta.
A câmara lenta, a filmagem em ralenti, são a prova do fascínio cinematográfico que Leni concede aos movimentos do corpo, à exaltação da beleza corporal em detrimento de uma projeção meramente propagandística. Olympia é o protagonismo da câmara lenta. A câmara lenta oferece-nos os movimentos dos atletas, num intenso contraste com os planos curtos, com as imagens fugidias dos rostos e corpos das multidões que assistem aos jogos. A câmara lenta orienta as escolhas de Leni, estiliza o movimento dos corpos, reformula, em termos visuais, o esforço muscular que condiciona cada uma das provas. A homenagem da cineasta ao corpo humano e à beleza física dos atletas é inseparável da projeção estética da imagem em ralenti. A valorização estética da imagem cinematográfica alia-se aos enquadramentos e movimentos de câmara nas sequências do lançamento de dardo, com o entrecruzar de imagens rápidas, com o rosto desfocado dos atletas e com as imagens lentas dos movimentos musculares projetando uma ideia extraordinária de beleza e de rapidez e individualizando a performance de cada um dos atletas. Nas provas de salto à vara, projeta-se, de novo, o contraste entre a velocidade do arranque e as sequências de câmara lenta que valorizam gestos e músculos. Nas provas de lançamento de martelo, a câmara, colocada atrás da rede, vai registando todos os movimentos musculares, todas as variações de balanço e de equilíbrio, descendo ao longo do corpo, acompanhando cada detalhe, de cada movimento. No lançamento de disco, o movimento lento dos corpos alia-se à reação dos rostos do público, também eles alvos de planos longos que nos permitem ter uma perceção nítida de todas as emoções. Otravelling lateral que acompanha o salto em comprimento mostra-nos o trabalho corporal dos atletas e denuncia a verdadeira noção estética de um esforço físico.
Através do diálogo intenso com a música de Herbert Windt, Leni Riefenstahl constrói, na mesa de montagem, uma constante coreografia. A construção coreográfica atinge o seu auge na sequência da maratona, na exímia relação entre música e movimento corporal, na alternância entre os vários pontos de vista ao longo de todo o trajeto, no acompanhamento lateral dos atletas, no percurso dos movimentos de câmara através de grandes planos dos rostos, das pernas e dos pés. Atinge o auge do contraste entre a força, a resistência física e a leveza bela do voo, na sequência dos saltos para a água projetando uma coreografia intensa no jogo de plongées e contre-plongées, numa alternância constante entre a superfície dos saltos e a beleza subaquática dos mergulhos.
Olympia define a urgência e a estruturação da raça ariana, projeta a propaganda de um regime e de um acontecimento mundial, encarna a projeção estética do corpo, dos movimentos dos corpos na incessante procura da beleza e da vitória. Leni Riefenstahl projeta uma poderosa faculdade criativa: o movimento cinematográfico é o movimento dos seus corpos e, através deles, Leni conseguiu fazer triunfar as duas facetas que, de um maneira ou de outra, fazem dela o eterno génio maldito.
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