ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA |
Será que todos temos um filme da nossa vida? Aquele que não esquecemos… Aquele que nos marcou de uma maneira ou de outra…. Aquele que quisemos ver e rever e tornar a ver…
Se gostamos de cinema, se pensamos na atração que ele exerce sobre nós, associamos sempre determinados filmes aos momentos mais ou menos relevantes da nossa vida. E a infância não escapa a essa magia. Os sentimentos, as emoções e os episódios mais ou menos caricatos ou fortes da nossa infância e da nossa juventude aparecem inevitavelmente ligados a um filme em especial, a uma cena significativa ou aos olhos e ao sorriso daquele ator ou daquela atriz (nessa altura, a nossa cinefilia ainda não está muito esclarecida e o nome dos realizadores ainda nos escapa).
O meu primeiro filme aconteceu no Cineteatro Avenida, em Aveiro: A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, com o famoso Cantinflas a fazer de Passepartout e o David Niven no papel de Phileas Fogg. Uma emoção! Imagens inesquecíveis! A ele se seguiram tantos outros! Na televisão, os ciclos de cinema dedicados a realizadores e a atores mostraram-me aquela que é para mim, ainda hoje, uma das maiores atrizes da história do cinema: Bette Davis. Os gestos, as aventuras e as piadas de Totó levaram-me até ao mundo do cinema italiano. Ao meu lado, explicando, mostrando, ensinando, outro cinéfilo incorrigível: o meu pai.
O cinema também é cenário de histórias de família: os meus avós paternos fizeram questão de, ao longo da sua vida, se deslocarem ao cinema para assistir, repetidas vezes, à projeção do Ben-Hur, de William Wyler: estive presente numa das últimas vezes, no Teatro Aveirense. A minha mãe conta-me mais uma história de esconde-esconde ligada ao cinema. O meu avô materno autorizou-a a ir ao cinema com o namorado (o meu pai) mas, clandestinamente, também foi para controlar a situação. O casalinho não deu conta de nada. À noite, quando a minha avó perguntou à filha se o filme era bom, o meu avô denunciou-se imediatamente dizendo “a música era fabulosa”. O meu avô tocava numa tuna. O filme chamava-se Luzes da Ribalta, de Charlie Chaplin, realizador e compositor da banda sonora.
A transgressão continua nas histórias da juventude. Eu e uma amiga faltámos a um seminário de estágio para ir assistir a Os Amigos de Alex, de Lawrence Kasdan. A pressa foi tanta que nem deu para lanchar. As personagens passam quase todo o tempo na cozinha a cortar legumes e a preparar sanduíches. Só me lembro da fome e da sede que passei durante o filme!
Não foi este obviamente o filme da minha vida. Quanto a isso, fui tendo, ao longo dos anos, a perceção de que, muitas vezes, as pessoas não querem falar do filme das suas vidas! Os que estudam cinema começam a ser engolidos pelo preconceito de uma cinefilia culta, muito académica e acham que parece mal dizer qual é o filme da vida deles porque, às tantas, não é assim tão bom, não cumpre todas as qualidades cinematográficas exigidas ou não é europeu, ou não é “chato” e incompreensível! E quando perguntamos qual o filme da sua vida começam a ficar muito nervosos e a tentar vasculhar na memória cinematográfica aquele que será mais intelectual ou mais politicamente correto.
Eu sei muito bem – e digo logo sem hesitar quando mo perguntam – qual é o filme da minha vida. Uns e Outros (Les Uns et Les Autres) de Claude Lelouch (1981). É o filme da minha vida porque fui vê-lo duas vezes, numa sala de cinema (o que era muito raro naquela altura!). Porque é francês, porque retrata a ocupação nazi em França, porque tem uma banda sonora fabulosa, porque as últimas sequências são filmadas no Trocadéro, com a Tour Eiffel ao longe e com um bailarino fabuloso a dançar o bolero de Ravel, em cima de uma mesa. E porque foi visto ao lado de duas pessoas especiais da minha juventude: a Guida e o Chico. E porque fiquei maravilhada com a história, com os atores, com as danças e trauteei todas as músicas e porque o Chico arranjou o disco da banda sonora e fez uma cópia em cassete para eu poder ouvir em casa. E porque, uns anos depois, ele voltou a ser exibido na mesma sala e voltei a vê-lo, com outros amigos! Uns aninhos mais tarde, em 1989, em Paris, Les Uns et les Autres voltou à minha vida quando, no espetáculo 1789… Et Nous, do coreógrafo Maurice Béjart, no Grand Palais, voltei a encontrar, desta vez ao vivo, o bailarino Jorge Donn a dançar em cima de uma mesa (tal como no filme) ao som inebriante do Bolero de Ravel. O filme da minha vida conquistava, no meu inventário de emoções, mais um ponto.
A vida, o ensino e a investigação empurraram-me para outros realizadores, para outras estéticas. E assim, Alain Resnais, Emir Kusturica, Tim Burton, Federico Fellini, Manoel de Oliveira e Jacques Tati entraram repetidamente na minha casa e na minha vida. Deram-me outros olhares, outras emoções e outras urgências. Mas o filme da minha vida continua a ser o mesmo! Porque faz parte de emoções que não se transformam em análises críticas ou em cinefilias eruditas.
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