quinta-feira, 2 de junho de 2016

O FILME DA MINHA VIDA

ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA
Será que todos temos um filme da nossa vida? Aquele que não esquecemos… Aquele que nos marcou de uma maneira ou de outra…. Aquele que quisemos ver e rever e tornar a ver…

Se gostamos de cinema, se pensamos na atração que ele exerce sobre nós, associamos sempre determinados filmes aos momentos mais ou menos relevantes da nossa vida. E a infância não escapa a essa magia. Os sentimentos, as emoções e os episódios mais ou menos caricatos ou fortes da nossa infância e da nossa juventude aparecem inevitavelmente ligados a um filme em especial, a uma cena significativa ou aos olhos e ao sorriso daquele ator ou daquela atriz (nessa altura, a nossa cinefilia ainda não está muito esclarecida e o nome dos realizadores ainda nos escapa).

O meu primeiro filme aconteceu no Cineteatro Avenida, em Aveiro: A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, com o famoso Cantinflas a fazer de Passepartout e o David Niven no papel de Phileas Fogg. Uma emoção! Imagens inesquecíveis! A ele se seguiram tantos outros! Na televisão, os ciclos de cinema dedicados a realizadores e a atores mostraram-me aquela que é para mim, ainda hoje, uma das maiores atrizes da história do cinema: Bette Davis. Os gestos, as aventuras e as piadas de Totó levaram-me até ao mundo do cinema italiano. Ao meu lado, explicando, mostrando, ensinando, outro cinéfilo incorrigível: o meu pai.

O cinema também é cenário de histórias de família: os meus avós paternos fizeram questão de, ao longo da sua vida, se deslocarem ao cinema para assistir, repetidas vezes, à projeção do Ben-Hur, de William Wyler: estive presente numa das últimas vezes, no Teatro Aveirense. A minha mãe conta-me mais uma história de esconde-esconde ligada ao cinema. O meu avô materno autorizou-a a ir ao cinema com o namorado (o meu pai) mas, clandestinamente, também foi para controlar a situação. O casalinho não deu conta de nada. À noite, quando a minha avó perguntou à filha se o filme era bom, o meu avô denunciou-se imediatamente dizendo “a música era fabulosa”. O meu avô tocava numa tuna. O filme chamava-se Luzes da Ribalta, de Charlie Chaplin, realizador e compositor da banda sonora.

A transgressão continua nas histórias da juventude. Eu e uma amiga faltámos a um seminário de estágio para ir assistir a Os Amigos de Alex, de Lawrence Kasdan. A pressa foi tanta que nem deu para lanchar. As personagens passam quase todo o tempo na cozinha a cortar legumes e a preparar sanduíches. Só me lembro da fome e da sede que passei durante o filme!

Não foi este obviamente o filme da minha vida. Quanto a isso, fui tendo, ao longo dos anos, a perceção de que, muitas vezes, as pessoas não querem falar do filme das suas vidas! Os que estudam cinema começam a ser engolidos pelo preconceito de uma cinefilia culta, muito académica e acham que parece mal dizer qual é o filme da vida deles porque, às tantas, não é assim tão bom, não cumpre todas as qualidades cinematográficas exigidas ou não é europeu, ou não é “chato” e incompreensível! E quando perguntamos qual o filme da sua vida começam a ficar muito nervosos e a tentar vasculhar na memória cinematográfica aquele que será mais intelectual ou mais politicamente correto.

Eu sei muito bem – e digo logo sem hesitar quando mo perguntam – qual é o filme da minha vida. Uns e Outros (Les Uns et Les Autres) de Claude Lelouch (1981). É o filme da minha vida porque fui vê-lo duas vezes, numa sala de cinema (o que era muito raro naquela altura!). Porque é francês, porque retrata a ocupação nazi em França, porque tem uma banda sonora fabulosa, porque as últimas sequências são filmadas no Trocadéro, com a Tour Eiffel ao longe e com um bailarino fabuloso a dançar o bolero de Ravel, em cima de uma mesa. E porque foi visto ao lado de duas pessoas especiais da minha juventude: a Guida e o Chico. E porque fiquei maravilhada com a história, com os atores, com as danças e trauteei todas as músicas e porque o Chico arranjou o disco da banda sonora e fez uma cópia em cassete para eu poder ouvir em casa. E porque, uns anos depois, ele voltou a ser exibido na mesma sala e voltei a vê-lo, com outros amigos! Uns aninhos mais tarde, em 1989, em Paris, Les Uns et les Autres voltou à minha vida quando, no espetáculo 1789… Et Nous, do coreógrafo Maurice Béjart, no Grand Palais, voltei a encontrar, desta vez ao vivo, o bailarino Jorge Donn a dançar em cima de uma mesa (tal como no filme) ao som inebriante do Bolero de Ravel. O filme da minha vida conquistava, no meu inventário de emoções, mais um ponto.

A vida, o ensino e a investigação empurraram-me para outros realizadores, para outras estéticas. E assim, Alain Resnais, Emir Kusturica, Tim Burton, Federico Fellini, Manoel de Oliveira e Jacques Tati entraram repetidamente na minha casa e na minha vida. Deram-me outros olhares, outras emoções e outras urgências. Mas o filme da minha vida continua a ser o mesmo! Porque faz parte de emoções que não se transformam em análises críticas ou em cinefilias eruditas.

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