ANABELA BORGES |
Desta vez, a publicação, em tranches, do conto “A Tundra” traz-nos o labor das antigas fábricas da TABOPAN e da vida envolvente.
Tudo pode acontecer neste cemitério de memórias de uma povoação do Norte de Portugal, memórias atestadas de crenças, vícios, amizades e desavenças, numa história que se diz atemporal.
Antigamente, as fábricas laboravam vigorosamente, dando trabalho a grande parte das famílias da região. Os operários trabalhavam com ânimo e devoção e enchiam aquela estrada nacional, numa incursão alegre, despachada, a pé, em bicicletas, ou motociclos, à hora da saída, animados para irem para os seus quintais e para as suas casas, tratar ainda de vida, antes que fosse noite. Aquela actividade preenchia a vida económica da vila. E a casa de Lisinha também. Eram os seus clientes, os que almoçavam, espalhando-se pelas mesas da loja e da adega, os que merendavam, pelas grades do grande portão vermelho de ferro das fábricas, com uma moeda, “Menina, traz-me uma cerveja e uma sandes de queijo, e fica com o troco”. E a filha da Carminha costureira fazia o recado, mais um proveito para a Lisinha. Eram também os que compravam cigarros e guloseimas e mercearia. A casa de Lisinha era uma casa farta – de gente, de géneros, de tabaco e de fritos. Às vezes, as crianças chegavam lá, “Dois kentukies, Lisinha”, e ela, a iludir-se, a fazer-se de despercebida, “Não são para vós, os cigarros, não”, “Não Lisinha, são para o senhor José”, “Então, está bem”. Aquilo era uma roda-viva, uma casa de muita lida. O que importava era vender, “Amealhar hoje, porque amanhã ninguém sabe”. Agora, o povo antes quer supermercados e cafés e aquelas lojas onde as máquinas fazem tudo. E os computadores também. As fábricas fecharam. E a loja de Lisinha fechou com elas. Não fora a assombração de Gustinho e a sua casa seria agora um sossego. Tudo muda com o tempo, “Tudo muda, Gustinho”.
Foi assim que, numa manhã fria e cinzenta, Lisinha, pela calada, com a geada a estalar-lhe humidamente debaixo dos pés, se dirigiu para a casa da Mortiça. Queria ter um Natal sossegado, em casa da filha, sem o Gustinho a sussurrar-lhe disposições aos ouvidos, “O Natal agora não presta, não há o mesmo calor dos filhos, não há o movimento da loja”, sem o seu halo, o seu sopro amarelo e bafiento, “cu-curru”. Lisinha encontrou a Mortiça mais morta do que nunca, mas com um trejeito nos olhos de sangue, manifestou a vontade de prestar o serviço. Não foi preciso a Mortiça falar através da voz do senhor Augusto, com a súplica tenebrosa dos mortos como sempre fazia, nem de repetir alguma insatisfação ou vontade por cumprir. Gustinho estava sereno, apenas lhe faltava a sua Elísia. Num murmurejar, com uma ladainha demorada e amena, Mortiça mandou-o embora. E ele foi, partiu, enfim. Lisinha benzeu-se, “Em nome de Jesus. Espera lá por mim, que eu hei-de ir na minha vez”. Mortiça faleceu, dois dias depois, em plenas vésperas de Natal. Na noite da consoada, Maria Vigoila deixou que todos se recolhessem, foi ao velho barracão, nas traseiras da casa, meteu a corda ao pescoço, deixou estremecer o seu corpo de ave, e foi ter com a Mortiça, a sua vida. Descobriram-na três dias depois, um pequeno farrapo molemente dependurado nas traves do barracão. Não foi preciso chamarem o vírus, lá está. Foi o demónio que tentou a Maria Vigoila a trair a própria vida, convencendo-a de que não seria capaz de viver sem a sua menina. A mulher não via sentido numa vida que era, na verdade, composta por duas meias vidas. A sua menina, que apenas tinha de sua meia vida, porque a outra meia era dos mortos que não queriam morrer, poderia precisar da mãe, uma meia vida de gente, pequena, frágil e raquítica. Foi-se, assim, a mulher, levando com ela aquela inquietação e fazendo jus ao nome do lugar, bouça da forca.
DR Life Thru A Lens |
Sem comentários:
Enviar um comentário