RUI SANTOS |
No passado domingo, dia 5 de Junho, os suíços votaram em referendo a introdução no país do Rendimento Básico Incondicional (RBI). O resultado da votação traduziu-se numa rejeição da proposta apresentada com 76,9% dos votos contra e 23,1% a favor. A taxa de abstenção foi de 53,7%. Em causa estava a atribuição de um rendimento mensal de 2500 francos suíços para os adultos e 625 francos suíços para as crianças e jovens.
Os promotores da iniciativa já contavam que ela não fosse aceite – a sociedade suíça é fortemente conservadora e a iniciativa bastante revolucionária – mas dois outros objectivos, a divulgação e a discussão do conceito, foram conseguidos.
O governo suíço opôs-se à introdução do RBI argumentando que a medida iria contribuir para uma menor disposição para o trabalho e que o seu custo, em termos orçamentais, seria enorme para o país uma vez que custaria cerca de um terço do PIB. Além disso, o governo fez sempre questão de referir que os impostos teriam de ser aumentados e que os trabalhadores seriam dessa forma penalizados. Os defensores do RBI argumentaram que o governo poderia criar um imposto sobre transacções financeiras para dessa forma arranjar a verba necessária para a aplicação do RBI.
A incerteza económica em torno do RBI é enorme: desafia as nossas noções de rede de segurança social, a relação entre trabalho e rendimento, e como nos poderemos adaptar às mudanças tecnológicas. É uma das políticas sociais mais audaciosas da história moderna.
Os apoiantes do RBI defendem que no futuro a robotização do mercado laboral irá diminuir drasticamente a necessidade de mão-de-obra, mas não necessariamente a riqueza dos países. Como tal, os Estados deverão pagar uma verba a todos os seus cidadãos para estes fazerem face às suas necessidades mais básicas. Adicionalmente, sustentam que uma grande quantidade de empregos na economia moderna não proporciona um salário digno e que resolveria o problema mais fundamental do capitalismo moderno, a falta de procura. Desde a Grande Depressão que a maioria dos economistas reconhecem a procura como sendo o calcanhar de Aquiles da economia actual.
Apesar de parecer um conceito associado ao século XXI, a noção de RBI surgiu no final do século XVIII através de Thomas Paine que defendeu um pagamento universal a todos os cidadãos em virtude da partilha coletiva dos recursos naturais da Terra. Em 1797, Paine delineou um plano, no seu ensaio «Justiça Agrária», para criar um fundo nacional que pagasse 15 libras esterlinas a todos os adultos, isto é, a todos os que tivessem mais de 21 anos de idade.
No início do século XX, muitos socialistas assumiram a causa considerando que o RBI poderia estimular os trabalhadores e transformar as economias. Um desses socialistas foi o filósofo britânico Bertrand Russell. Na década de 1940, os economistas George Stigler e Milton Friedman conceberam uma versão do RBI. Gizaram um imposto de renda negativo destinado a apoiar as pessoas com poucos recursos económicos. Mais tarde, em 1967, Martin Luther King defendeu o RBI no seu livro «Where Do We Go From Here: Chaos or Community?». Também a administração Nixon da década de 1970 tinha planos para a criação do RBI. Aliás, entre 1968 e 1978, o governo dos Estados Unidos da América fez uma série de experiências em locais como Nova Jersey, Seattle e Denver. Uma outra experiência foi realizada, em 1973, na pequena cidade canadiana de Dauphin, na província de Manitoba. Os resultados desta última experiência apontaram para uma diminuição da procura das instituições de saúde e um menor abandono escolar nas famílias abrangidas pelo RBI.
Hoje, o RBI recolhe apoio em todos os quadrantes políticos, da esquerda à direita, por todo o mundo. Para a esquerda, elimina a pobreza e liberta trabalhadores de actividades que os colocam num beco sem saída, sem prespectivas de realização. Para a direita, reduziria a burocracia e criaria um sistema de segurança social auto-suficiente. Entre os defensores mais conhecidos do RBI encontra-se o ex-ministro das Finanças grego Yanis Varoufakis.
Como vimos atrás, o desenvolvimento tecnológico é referido como uma das causas para a introdução do RBI. De acordo com o jornal Guardian, 47% dos postos de trabalho nos Estados Unidos da América encontram-se em risco devido à automação. Todos nós assistimos à diminuição de postos de trabalho em virtude de inovações tecnológicas. Poder-se-ia referir a este propósito as agências bancárias, postos de combustível, hipermercados, indústria, agricultura, etc. Agora começa-se a pensar no impacto que a tecnologia driverless pode ter no mercado de trabalho. Não é utópico imaginarmos que no futuro, talvez daqui a 10 ou 20 anos, os nossos veículos não irão necessitar de condutor para se moverem. É uma tecnologia que já vem sendo desenvolvida pelos mais diversos construtores de automóveis. O seu principal objectivo é contribuir para a ausência de acidentes de viação. Contudo, tal tecnologia irá afectar fortemente o mercado de transportes. Por exemplo, taxistas e motoristas de autocarros ou de camiões irão ver a sua profissão desaparecer. De igual forma, os postos de trabalho no sector do comércio e da logística serão alvo de diminuição devido à automatização e à digitalização. Basta pensar-se no sistema de logística da Amazon para se perceber que o trabalho humano é cada vez mais dispensável nos seus armazéns. Também as áreas da saúde, do direito e do jornalismo têm muitos postos de trabalho em risco nos próximos anos devido ao desenvolvimento tecnológico.
A ideia do RBI encontra recepção na maioria da população europeia. Uma pesquisa recente efectuada pela Dalia Research descobriu que 68% das pessoas em todos os 28 estados membros da UE disseram que definitivamente, ou provavelmente, votariam numa iniciativa de renda básica universal. Finlândia e Holanda têm projectos-piloto prestes a avançar, em França vários deputados, e o ministro das Finanças, têm apoiado a realização de experiências em território francês. Também o Canadá tenciona repetir uma nova experiência em Ontario.
Ao contrário da iniciativa suíça, a noção de RBI na Finlândia conta com o apoio político do governo, uma coligação de conservadores, liberais e de direita populista. O enquadramento da iniciativa finlandesa também é marcadamente diferente. O primeiro-ministro, Juha Sipilä, anteriormente um bem-sucedido homem de negócios de TI, encomendou um estudo ao Kela, organismo que gere a segurança social finlandesa para determinar se o RBI poderia tornar o sistema mais participativo e reforçar os incentivos ao trabalho e reduzir a burocracia de uma forma que garanta a sustentabilidade das finanças públicas. Um relatório preliminar publicado no final de Março sugere que o governo tenciona alterar o modelo de rendimento básico integral, que seria na opinião dos autores «muito caro», para um parcial. A experiência finlandesa, que terá lugar em 2017, é susceptível de envolver um máximo de 180.000 finlandeses sendo o valor do RBI a atribuir entre 500€ a 700€ – substancialmente menos que o salário médio finlandês que é de 2.735€.
A Holanda tem prevista uma experiência de RBI para começar em 2017 e que se situa algures entre o modelo suíço e o finlandês. Na experiência em Utrecht, que terá início a 1 de Janeiro de 2017, um grupo de beneficiários de prestações permanecerá no regime de workfare – rendimento auferido em troca de trabalho determinado pelo Estado – no qual as pessoas que vivem sozinhas obtêm 972,70€ e os casais 1,389.57€. Um segundo grupo receberá os mesmos benefícios, incondicionalmente, sem sanções ou obrigações. Um terceiro grupo também irá receber benefícios incondicionalmente, além de um bónus extra mensal de 125€ se optar por fazer trabalho voluntário. Um quarto grupo fará trabalho de voluntariado. Caso optem por não o fazer perdem a bonificação de 125€. Um quinto grupo receberá o rendimento e poderá trabalhar e dessa forma obter um rendimento adicional. Experiências semelhantes serão realizadas em outras cidades holandesas como Wageningen, Tilburg, Groningen e Nijmegen.
O conceito do RBI é bastante revolucionário e, como tal, é natural que inicialmente encontre resistências. Contudo, é algo que terá que ser começado a levar em consideração pois é certo que o emprego irá diminuir em virtude das inovações tecnológicas e os empregos que estas criaram não serão suficientes para absorver o número de trabalhadores que se encontrarão desempregados. Também convém pensar naqueles que hoje já não encontram trabalho por se encontrarem no desemprego devido à extinção, ou diminuição, das suas profissões. Se pensarmos que a riqueza do mundo se encontra extremamente mal distribuída, se pensarmos que uma minúscula minoria detém a esmagadora maioria do capital percebemos que algo está errado.
O capitalismo enfrentou uma enorme crise em 2008 e desde essa altura, ou mesmo desde o início do século XXI, que se fala nos meios económicos da necessidade de se repensar o seu modelo. Chegamos a um ponto em que a sua própria existência começa a estar em causa devido à diminuição da procura perante tanta oferta. O próprio modelo capitalista afirma-se cada vez mais como um modelo baseado na especulação e não na transacção de bens. Um robot pode construir um automóvel, um telemóvel, etc., mas é necessário que o ser humano tenha recursos financeiros para o poder adquirir.
Também a saúde pública iria melhorar bastante com o RBI, nomeadamente a saúde mental. Todos sabemos que o desemprego e a precariedade laboral proporcionam um elevado número de distúrbios mentais. A coesão nacional seria reforçada pois diminuiriam as fracturas sociais, as pessoas poderiam optar por fazerem algo que realmente gostam sem se importarem com a remuneração daí auferida pois seria complementada pelo RBI, o abandono escolar decresceria, etc. O argumento de que a atribuição do RBI iria diminuir a procura de emprego não faz sequer sentido pois os valores que os diferentes países consideram nas diversas propostas são sempre inferiores aos valores mínimos pagos pelo trabalho. Ninguém quererá deixar de trabalhar para ficar a viver do RBI. Só quem está em situação de carência económica é que poderá ficar mais satisfeito. O RBI resolveria o problema da procura, estimularia dessa forma a economia e aumentaria os lucros das empresas, daria aos trabalhadores mais liberdade e forneceria uma rede de segurança para os mais vulneráveis. São os muito ricos que temem uma alteração na redistribuição dos rendimentos e eles serão a força mais significativa contra a implementação do RBI.
No entanto, nós devemos nos questionar sobre alguns aspectos que carecem de reflexão:
- A introdução do RBI implicaria a baixa salarial em novos contratos e revisão dos actuais, por parte do sector privado?
- A maior disponibilidade de rendimento conduziria a um aumento da inflação?
- Caso o rendimento básico fosse atribuído a todos, e não só aos mais necessitados, de que forma é que a relação entre poupança e consumo seria alterada? A banca iria procurar captar esse rendimento adicional através de uma maior taxa de juro nas aplicações financeiras ou o juro seria tão baixo que incentivaria ao consumo?
Não é crível que o ser humano deixasse de trabalhar só por auferir do RBI. Um dos factores de realização pessoal é através do trabalho. Mesmo aqueles que são extremamente ricos acabam por trabalhar de alguma forma. O que é crível é que enquanto não se pensar numa nova forma de se lidar com todas estas questões, o sistema financeiro e o mercado de trabalho – que ainda são reflexo da Revolução Industrial – mostram-se cada vez mais desadequados aos novos tempos e quanto mais tarde se reflectir sobre estas questões mais tensões sociais irão surgir nos próximos anos.
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