HELDER BARROS |
O Moedinhas foi um personagem que me marcou desde muito novo, pois habituei-me a vê-lo passar pela casa dos meus pais, com uma periodicidade quinzenal. Quase sempre antes do meio dia, o Alfredo Moedinhas lá aparecia com a sua lengalenga habitual. Virava-se para a minha Mãe e repetia, invariavelmente, a mesma questão: “A Senhora não tem aí umas moedinhas, para este pobre desgraçado e doente, que não tem recursos para se alimentar e vestir”. Quase sempre a minha Mãe verificava se tinha uma moeda ou outra no porta moedas e lá lhe ia dizendo: “leve isto, é o que tenho e a vida está má para todos!”
Este personagem que nunca gostou de trabalhar, mas que idolatrava o dinheiro, percorria o nosso concelho e os limítrofes, estendendo a sua atividade ao antigo Condado Portucalense. Quando eu ia ao mercado semanal de sábado, com a minha Mãe, também era normal vê-lo no seu mister de pedinte, lançando um apelo estereotipado, mas eficiente, aos pedestres que passavam. Alfredo, desde muito novo foi ensinado por um tio, nesta arte de pedinchar, pelas feiras e festas locais. Não raras vezes, era possível vê-los na movimentada Rua de Santa Catarina na cidade do Porto, com o Alfredo a simular um braço estropiado, enquanto o tio apelava à caridade dos passantes, bastante impressionados, com o cenário montado. Um dos braços do Alfredo era atado junto ao corpo de forma a parecer que faltava e a camisola tinha apenas a manga descaída, dando a entender que não tinha braço.
Alfredo vivia algures numa remota aldeia de Vila Real, ninguém sabendo muito bem onde se situava a sua habitação. Entretanto, começaram a surgir rumores de que o Alfredo tinha já mais do que uma casa, mais do que uma quinta, resultante quer dos legados do tio pedinte e do dinheiro que ia acumulando com a sua atividade de caminheiro pedinte pelas nossas freguesias, para cá do Marão. Usava sempre um fato todo gasto e sujo, mas onde podia guardar as suas moedas que ia trocando por notas nas tascas dos caminhos das aldeias, onde mendigava também umas sandes e uns copos de vinho que, quase sempre, por misericórdia, lhe concediam; porque ele gastar nunca podia, dizia sempre que não tinha dinheiro.
Esta avareza que alimentava os dias deste homem, que fazia com que vivesse em função da soberba, do embuste, de uma ignomínia interior, que nos poderá levar a questionar como podem ser nublosos e intrincados os meandros da natureza humana. O homem enquanto ser livre e que Deus criou à sua semelhança, pelo menos segundo a crença Judaico-Cristã, pode sempre escolher múltiplas formas de viver, de ser feliz, ou de sobreviver. Afinal, as matizes de uma paleta em que o branco e o preto, correspondem respetivamente a Deus e ao Demo, apresentam infinitas cambiantes. A cor branca, sinal de luz, de paz, de eternidade; a cor preta, sinal de morte, de dor e de sofrimento; serão sempre intercalados por uma gama interminável de outras combinações de cor, mais ou menos claras, mais ou menos sombrias.
Conheci muitos mais homens avaros, mas poucos se dedicaram tanto à sua causa de conseguir dinheiro, por métodos de moralidade dúbia, como o Alfredo Moedinhas. Afinal, não deve ser fácil abdicar de uma vida, para andar a mendigar diariamente, mais e mais moedinhas para um mealheiro que, de tão insaciável, mais parecia estar furado. Andar de aldeia em aldeia, de rua em rua, de vila em vila, de cidade em cidade, sempre a repetir a mesma lengalenga e a ludibriar os outros, sem verdadeiramente precisar de tal, só pode ser do domínio do patológico, de um estado febril que o dinheiro provoca em algumas pessoas, com mentes mais ou menos perversas.
Um dia, numa tasca da minha freguesia, alguns frequentadores mais atrevidos, perguntaram ao Moedinhas, por que raio amealhava ele tanto dinheiro, se não tinha filhos, o dinheiro que ele teria, a sua idade avançada, já deveria dar para viver sem trabalhar. A família que se resumia a uns primos e sobrinhos que estavam longe da sua terra, quase todos emigrados, e que tinham vergonha deste tio pedinte, não lhe ligavam nem se interessavam por ele, cortaram todas as ligações umbilicais com este solitário e celibatário homem... comentava ele então: “Eles queriam eram as minhas economias, que me custam tanto a juntar, mas o meu dinheiro, nem quando eu morrer eles o vão encontrar...” Como se pode dar valor a uma vida assim, acreditar tanto nela, que se sacrifica tudo em prol de uma ilusão criada; acumular do dinheiro. São de facto estranhos os desígnios que Deus nos confere, ou não, e o nosso lado mais negro é bastante bizarro. Acreditando num julgamento final das Almas, o que se poderá dizer disto. E acreditando que Deus nos concede o livre arbítrio de escolher o caminho do Bem, ou o do Mal, como justificar uma escolha destas. Há tantas vidas e vida desperdiçadas no território dos humanos que somos levados a questionar todo este mistério, que se consubstancia nas diferentes existências e experiências humanas, algo do domínio da teleologia, ou mesmo, da escatologia.
Como os boatos correm depressa, o Moedinhas começou a ser seguido e perseguido por charlatães e amigos do alheio, no sentido de tentarem descobrir o local exato, onde estaria o tesouro deste pobre homem. Como desconfiava de tudo e de todos jamais colocaria o seu dinheiro num banco, com medo que se descobrisse a amplitude da sua fortuna. Assim, fazia como o seu tio falecido lhe ensinou a fazer: enterrava o seu dinheiro em locais insuspeitos. Deste modo, no chão térreo da sua cozinha, a terra batida que o enformava, cobria muitos potes com moedas e notas, mas como ele era muito cuidadoso com os horários em que fazia os seus depósitos muito bem dissimulados pela terra batida, ninguém que entrasse naquela pobre cozinha de uma casa tão humilde, poderia ter alguma leve suspeita que fosse, que o chão estava sobre potes de dinheiro. Também enterrou alguns potes no seu galinheiro, que ficaram bem escondidos pelo manto de mato e de estrume de galinha, jamais alguém pensaria ali encontrar potes de dinheiro. Um dia, uma dupla de assaltantes de Lordelo que o seguiu até casa, tarde da noite, sequestrou o Moedinhas e obrigou-o a dizer onde este escondia o seu dinheiro, sob a ameaça de tortura. Passaram a noite toda a fazer-lhe mal, com muita violência física e psicológica, até que este, sem nunca confessar nada, acabou por morrer de tanta porrada que levou. Sem herdeiros e como os ladrões não desconfiaram dos locais de enterramento do dinheiro, assim se perdeu uma fortuna que, verdadeiramente, não serviu ao Moedinhas que foi um seu escravo, nem à sua família que não lhe prestava atenção por este ser um pedinte sem ter necessidade disso. Os ladrões puseram-se rapidamente em fuga, para não serem apanhados, pelos populares e assim terminou a estória do Alfredo Moedinhas que: morreu a tentar proteger a sua fortuna que, nunca gozou, nem deixou que ninguém gozasse. A ironia do destino foi morrer caído sofre o chão que cobria a sua fortuna. Será que vale a pena passar ao lado da vida?... Será a vida que nos leva a passar a seu lado?... Será uma experiência do Divino?... Será que o nosso destino é codificado?... Será tudo um acaso simples?...
“A fome de ouro, esta pedra filosofal dos herméticos da atualidade, tem raspado, pulverizado, fundido e depurado, no cadinho da avareza, todos os mistérios, todas as idealidades, até lhe extraírem o átomo palpável, luzente e incomparável da moeda cunhada, sonante e tangente.” Camilo Castelo Branco
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