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esta crónica não é mais do que uma mera crónica na explanação de um ponto de vista; tal não servirá, portanto, para extrapolar do ou sobre o autor o que quer que seja.
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ALVARO GIESTA |
Há coisas na nossa vida, que ou nos saem em certos momentos, não propriamente de fraqueza mas em que os nossos estados de alma, por carência de algo, estão mais propícios a extravasarmos, para terceiros, aquilo que durante anos se escondeu no mais fundo de nós mesmos, ou então nos custa dizer fora desses estados de alma porque, numa falsa honestidade envergonhada, nos continuamos a preferir esconder, cobardemente, nessa letargia que nos domina e nos contaminou toda a vida, empurrando-nos para a sombra de um casamento vegetativo, acomodado na podre paz dum lar que, há muito fracassado, teima em fazer crer, aos outros, que “apesar de tudo” continua firme, de pedra e cal plantado, apesar das intempéries da vida, no seio desta sociedade hipócrita em que vivemos. É como um enterrar da cabeça da avestruz na areia do deserto escaldante. Verdade insofismável dos casamentos que ruíram há muito. É uma evidência indesmentível!
Há descrições claras que pretendem interpretar esse sentir relativamente a esses fracassados enlaces e ao que nos prendem a continuar neles, como se de uma tábua de salvação se tratasse. É um porto de abrigo para esses náufragos do amor. Há lições de vida que se passam ou, pelo menos, se tentam fazer passar. Se calhar da própria vida. Interiorizando-as, transmitem-nos alento e dão-nos paz de espírito. E, inconscientemente, somos obrigados a interiorizá-las. E sentimos que é boa essa interiorização.
Acertam esses adivinhadores do infortúnio? Se acertam, ficam apenas a saber de uma das partes. Mas só ficam a saber algo. Não sabem tudo. Nem sabem, nem o diremos, porque quantas vezes se tentou dizer e a audição foi rejeitada.
A não ser que um desses estados de alma nos alucine e nos faça abrir o livro da vida. Da própria vida. Livro que, se alguma vez se quis abrir e alguém não aceitou olhar, que mais não fosse por compaixão, se guardou definitivamente e religiosamente no mais fundo duma gaveta. Para aí ficar adormecido. Em hibernação permanente. Para aí morrer e se desfazer em cinzas longe dos olhares mundanos.
Há tombos que se dão devido a casamentos esfrangalhados. E muitas vezes dão-se até uma certa altura da vida. E ainda bem que assim é! É quase sempre assim, até se encontrar o ponto certo em que a ignição desliga o motor e nos faz caminhar em equilíbrio, não dando possibilidades a que dedos acusadores nos apontem os erros cometidos. É uma questão de saber conjugar as coisas… ou talvez seja um rasgo de lucidez que nos faça abrir os olhos, esquecer um passado tortuoso em que sempre se depositou esperança – uma esperança falhada e nunca alcançada – e partir rumo a um futuro que se espera mais risonho e promissor.
O importante é partir. Não é ficar! – Dizem-nos. Mas… e se caímos no mesmo erro? No mesmo poço lamacento ou de areias movediças? Coloca-se nas mãos de alguém aquilo que nunca se disse a ninguém. Ou, pelo menos, tenta-se fazer desse alguém, em quem se confia quase cegamente, embora sem que dele se tenha visto mais do que uma ténue imagem, o fiel depositário das suas confidências. Será a sua caixinha de segredos mas não o seu guardador de lamúrias. Tal não é entendido assim e, se calhar mais por uma questão de comodismo do que desejo de não intromissão no privado de cada um, é desarmado com o argumento de que o passado é passado e, como tal, deve permanecer enterrado. Mas nem sempre o conseguimos enterrar. Porque somos um poço sem fundo de contradições…
Qualquer coisa assim serve para um desarmar de intenções. Mas é pura hipocrisia, se bem que nos leve a pensar: “Tens razão!” Passado é passado. E para quê estar a incomodar, com que direito estar a incomodar com as máculas – manchas, sim, mais que mágoas, são manchas! – da nossa própria vida? E apaga-se, do papel que não da memória, aquilo que se escrevera…
Teima, por um lado, a razão em vencer o coração, que destas coisas da vida amorosa pouco percebe, e andam-se dias, em tentativas desesperadas, num turbilhão de sentimentos desencontrados, a querer dizer-se que nos revemos, se não no todo pelo menos em parte, naquilo que pensam de nós. Nós, que cobardemente, sem vontade para ser, levamos o resto das nossas vidas a “guardar um amor morto e podre em redomas de falsos gestos que fingem a doçura que não existe”. Porquê não assumir a ruptura? Porquê ter medo de cedências? Porquê preferir a “atitude socialmente correcta de manter a imagem” que já não é? – Pergunta teimosamente a razão. Questão que o coração não entende, muito menos aceita dar resposta à razão. Prefere quebrar a torcer.
Sim! Porquê isso tudo à aceitação da verdade, ao sem medo da ruptura, à coragem de dizer “não!”? Simplesmente porque esta acomodação à sombra da bananeira, esta cobarde acomodação em que se vive anos sem conta, cria em nós uma couraça de habituação fácil, mas difícil, se não impossível, de romper. Depois, experiências, e quantas vezes várias, de vida – as tais que se nos tornam difíceis de revelar – só nos vêm mostrar o ilusório da questão: a mudança. Mal por mal – conclui-se – antes o mundo de mentira, que mente mas não prejudica, em que se vive, à aceitação de outra vida, com outra tanta ou mais mentira aliada ao encapotado oportunismo que a maior parte das vezes lhe está subjacente.
Vegeta-se, que viver não é! Escondemo-nos no nosso silêncio, na paz do nosso canto, solitário mas não envergonhado, e pedimos que não colidam com as coisas que são nossas. É-se como aquele nenúfar que um dia, sozinho, num recanto dum velho lago de águas contaminadas e negras, dum jardim que já ninguém visita, cresceu e viveu feliz… feliz à sua maneira. E desabrochou em flor. Aquela flor que contra toda a evidência teimou em edificar um molhe, qual couraça, que só ela sabia indispensável à vida. Mesmo que cada dia e cada noite, em silêncio, houvessem olhares sequiosos que a tentassem roubar ao sossego e quietude daquele velho lago – o seu sítio de paz, de silêncio e solidão. O seu sítio de meditação. Como aquele nenúfar que em segredo contemplou aquele candeeiro, de luz mortiça, a dizer-lhe que já não valia a pena a vida. Aquela vida que se pretendia nova. Ou talvez valesse… Também ele – o tal candeeiro – esquecido e abandonado à esquina daquele jardim, onde, debaixo dele, montou residência fixa um vagabundo errante que, esquecido da vida, ali se deixou apodrecer no meio de tanta chaga que se negou a tratar.
Por isso mesmo, por se achar que já não vale a pena mudar, vai-se vivendo o dia a dia, fazendo das tripas coração – milagres impossíveis de realizar! – para se evitarem os tumultos familiares, na recordação dos ecos dos passos na calçada, que um dia até soaram felizes. Vivendo ou vegetando?!
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