Continuamos com a publicação, em tranches, do conto “A Tundra”.Desta feita, Lisinha, personagem afectuosa e diligente, vai talhar o bicho a uma menina.Porque o Diabo anda sempre. Anda.
ANABELA BORGES |
Com a chegada do Inverno, muito se falou ainda, “Não se fala de outra coisa”, sobre a moléstia que ocupava as prosápias do mundo. Já causava incómodo que não se falasse de mais nada, onde quer que se fosse, na televisão, na cabeleireira, “Não se fala de outra coisa”, no supermercado, na vizinhança. Os invernos eram tão longos, escuros e frios, que aquela situação, no país e no mundo, apenas vinha adensar os sentimentos de medo e depressão. Mas Lisinha não se deixava impressionar pelas informações, pelas recomendações e pedidos de cautela que todos os dias eram repetidos, vezes sem conta, “Já enjoa. Não se fala noutra coisa. Antigamente, havia cada doença, que as pessoas de agora nem sonham. Morria-se sem se saber porquê. Agora, ao cabo de uns meses, morreu meia dúzia de gente com aquilo e é um pânico, uma aflição. É mas é para dar emprego a muitos desses que vêm falar à televisão. E, olha, a vacina tomai-la vós, que nem sabeis se faz bem ou se faz mal e quereis que o povo a tome. Ora essa”.
Antigamente, “Lisinha, Lisinha”, “Diz, menina, que vens numa aflição”, a filha da Carminha costureira, vinha numa aflição, com a irmã mais pequena pela mão, “A minha irmã tem o olho inchado, Lisinha. A minha mãe já tentou com o carvão, mas não sabe dizer as palavras. Ela acordou assim”. Belinha era tida como uma menina esperta e, como todos os filhos da Carminha, muito educada, mas tinha um grande medo de falhar, de não saber as coisas, tornando-se, mesmo, muito diplomática para a idade. Uma vez, o Toninho estava a estrelar ovos, na confusão da hora do almoço, e, enquanto a menina esperava que ele fosse atendê-la, na loja, o telefone tocou – a casa de Lisinha era a única do lugar que tinha telefone –, “Belinha, sabes estrelar ovos”, “Sim, Toninho, sei”, “Então toma-me conta desses, que eu já venho”. Mas não sabia. Arregalou os olhos para a negra frigideira, o cheiro a fritos a gritar, a entranhar-se pelas paredes de granito, a sair da velha cozinha, a espalhar-se pelo ar. A menina olhou em redor, ninguém estava a vê-la, e correu para casa, os ovos já negros como tições e, lá chegada, disse à mãe que já não havia pão. Engraçada, a Belinha, “A minha mãe diz que foi bicho, ou assim”, falava rapidamente a olhar para Lisinha, com os olhos grandes e a voz ofegante. Era assim que falava sempre, com os olhos arregalados, a explicar tudo muito bem, “Vai ser doutora, a Belinha, vai. Um treçolho, filha, é um treçolho. Vamos já tratar dele”. Desde muito cedo, Lisinha era procurada pela vizinhança, para tratar os males miúdos, com os seus remédios improvisados e eficazes. Aprendera a arte com a sua mãe e esta tinha aprendido com a sua, e assim sempre para trás, até se perder no tempo a primeira mulher da família que a praticara pela primeira vez. “Eu te talho bicho, bichão, sapo, sapão, aranha, aranhão, bicho de toda a nação”, Lisinha estendia o pau de carvalho em brasa, em direcção ao olho da menina, “em louvor de S. Silvestre e de nosso senhor que é verdadeiro mestre”, três vezes, em cruz. Lisinha não tratava males de inveja, nem de amor, nem fazia bruxedos. Uma coisa é fazer um defumadoiro, à hora certa com as ervas certas, outra é esconjurar alguém, benzendo-lhe as roupas interiores, ou fazendo injúrias, num chorrilho de palavras imperceptíveis, vomitando para a fotografia do visado, para que ele largue a desavergonhada da amante, que há-de de cuspir cabelos durante mais de um mês. Como fazem as Vigoilas. Isso não. Três vezes, em cruz, “Que anda pelo ar e pelo chão, corta-se-lhe o rabo e o coração, seja negro e esmirrado como este carvão”. Ao outro dia, o olho da menina estava bom, “Obrigada, dona Elisa”.
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