Foi-me pedido neste artigo que falasse da minha experiência pessoal no desporto adaptado, experiência essa com várias épocas desportivas a lidar de perto com jogadores de diferentes níveis competitivos, e a chegar à conclusão de que a gradual perda de competitividade portuguesa nos Jogos Paralímpicos tem uma justificação que vai muito para lá da escassez de recursos financeiros e logísticos que possibilitem uma dedicação plena à actividade de treino e preparação desportiva para as grandes competições. Sendo este, apesar de tudo, um factor condicionador dos resultados obtidos, está longe de explicar a progressiva mas consistente redução no número de medalhas conquistadas pelos nossos atletas paralímpicos.
Outra das explicações, e essa é uma explicação fortíssima, é a escassez de pessoas com conhecimentos técnicos e científicos de treino e preparação desportiva quer num âmbito mais geral quer num âmbito mais específico, que trabalhem sistematicamente com os atletas a fim de garantir uma adequada preparação desportiva dos mesmos.
E já que começámos por falar em artigos anteriores de PROCESSO MOTIVACIONAL, vejamos como um único de muitos aspectos da preparação de um desportista constitui desde logo um indício de que algo tem de melhorar urgentemente nos processos de desenvolvimento desportivo dos praticantes.
Ao iniciarmos um processo motivacional com um atleta com deficiência devemos ter logo a preocupação não apenas de fazer o natural levantamento de dados biográficos sobre a sua carreira desportiva, de identificação de características da sua personalidade e auto-percepções, e de quais os objectivos de realização que o atleta eventualmente persegue, como devemos fazer uma coisa ainda mais importante, e talvez mesmo CRUCIAL para o sucesso de todo o nosso trabalho: identificar a forma como o desportista vê a sua deficiência e como aqueles que o rodeiam a vêm. Se trabalharem um dia no desporto adaptado, NUNCA percam isto de vista. Nunca deixem de tentar encontrar respostas a perguntas por vezes sensíveis e incómodas. Como esta pessoa se vê a si mesma e à sua deficiência? Que implicações a sua deficiência tem na sua vida quotidiana e na satisfação que ele tem com a vida que leva? E quem o rodeia, como o vê? Como interage com ele? Que valor dá aos objectivos de realização do atleta com deficiência? Saberão as pessoas mais próximas do atleta com deficiência o que é que o leva a querer praticar desporto, e que objectivos ele tenta perseguir?
Regressando ao tema dos objectivos de realização, colocar-se-á em várias ocasiões um problema pertinente e que muitas vezes, numa visão algo ingénua que temos do desporto adaptado antes de conhecermos a forma como muitos destes atletas trabalham, nos escapa completamente, que é a grande dificuldade que muitos destes atletas manifestam em transmitir quais os objectivos de realização que os norteiam, quanto mais saber defini-los. Dou-vos um exemplo de duas das respostas mais frequentes que ouvi para vos situar neste ponto. A primeira é “Eu pratico desporto para me divertir”. A segunda é “Eu quero ser campeão”.
Agora regressemos um bocadinho atrás no artigo. Lembram-se de eu ter focado grande interesse nas pessoas que rodeiam o desportista. Porque são essas mesmas que, em casos em que o atleta apenas se queira divertir, devem ser orientadas por quem lidera o processo desportivo de modo a impedir que esse prazer se transforme em desprazer, em virtude de quem rodeia o praticante ter expectativas para a pessoa com deficiência desajustadas ao verdadeiro objectivo da pessoa: DIVERTIR-SE. O facto de Portugal ser bem conhecido pelas medalhas paralímpicas que já ganhou não implica que todos os atletas com deficiência tenham que trabalhar para virem a ser atletas de alto rendimento na categoria, independentemente do seu talento e das suas capacidades desportivas. Porém, por vezes a “voz”, o pensamento, os objectivos de realização genuínos destas pessoas, são completamente desvalorizados por um conjunto significativo de pessoas que desconhecem os motivos que as levam a praticar uma actividade desportiva e a envolverem-se na mesma, um problema que infelizmente atinge por vezes competições inteiras de várias modalidades, o que leva a que o vencedor seja por vezes aquele que, de todos os processos desportivos desenvolvidos, foi o “menos mau” e não necessariamente “o melhor”.
Casos desafiantes são aqueles que emitem a segunda resposta. “Eu quero ser campeão”. À partida isto pareceria suficiente para agradar a alguém que trabalhasse com atletas ambiciosos deste género. O problema, no entanto, é bem mais grave do que parece. Muitos destes ambiciosos não têm, por força de sucessivos ciclos desportivos de preparação desportiva inadequada devido à ausência de recursos financeiros, humanos e logísticos, uma formação desportiva que os leve a ter a noção que ANTES DE GANHAR HÁ TODO UM PROCESSO POR TRÁS. E para terem uma ideia, muitas modalidades paralímpicas, por severa falta de recursos, têm muitos atletas ora a trabalhar com pessoas que os ajudam em aspectos logísticos básicos (como por exemplo, no boccia, os pais ajudam os seus filhos, praticamente todos utilizadores de cadeira de rodas, a apanhar as bolas que eles vão lançando quando estão a treinar) sem supervisão de qualquer treinador, ora recorrem a um sistema de “auto-treino”, ou seja, treinam-se a si próprios, desenvolvendo os seus próprios programas e hábitos de treino, não raras vezes com total desconhecimento dos princípios biológicos, metodológicos e pedagógicos que norteiam um processo de treino desportivo de boa qualidade. Ao fim de vários anos sem que seja disponibilizado a estas pessoas supervisão técnica por parte dos clubes onde treinem, todos estes hábitos e rotinas tornam-se de tal maneira estruturantes de todo o processo, que ao fim de um certo período a introdução de alguém com efectivas competências técnicas vai deparar-se com uma autêntica “muralha”, traduzida numa completa falta de disponibilidade para trabalhar de forma diferente. Porque entretanto os anos passaram, e por muito inadequado que tenha sido o processo de trabalho, houve aprendizagens que foram sendo feitas e evoluções competitivas registadas, desenvolvendo-se com isso a crença de que o método de trabalho que está a ser seguido é adequado, quando na verdade já se assiste a dada altura a uma estagnação evidente do rendimento desportivo do atleta, e a uma perda de um possível desportista de grande qualidade por força de um apego teimoso a métodos de trabalhos errados.
Torna-se por isso fundamental, face a estes dois exemplos, começar a olhar para o desporto adaptado no sentido de definir uma estratégia de desenvolvimento assente, desde logo, a um significativo aumento de apoios de natureza logística, financeira e técnica aos atletas desde os estágios iniciais do seu desenvolvimento desportivo, e por outro lado, a uma supervisão técnica e científica permanente de quaisquer processos desportivos desenvolvidos, em particular com atletas de nível competitivo maior a nível nacional e internacional.
Porque se queremos voltar a ter sucesso nos Jogos Paralímpicos, temos de treinar com qualidade, e não da forma como achamos mais conveniente. Mas também temos de nos habituar a ouvir e a conhecer toda a dimensão existencial da pessoa com deficiência, saber o que ela pensa e como pensa e opina sobre a sua vida, as suas actividades e outros fenómenos que a rodeiam, ao invés de votarmos estes seres humanos a uma negligência que prejudica largamente todo e qualquer tipo de trabalho que se pretenda fazer com eles.
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