PAULO GUINOTE |
Não é raro surgirem-me ideias que hesito em passar para o papel, com o receio de serem demasiado pessoais e não traduzirem um sentimento mais espalhado entre a classe profissional a que pertenço; há poucos dias fiz o rascunho para um texto motivado pela sensação resultante do que vou lendo sobre Educação nos últimos meses, em especial no que se refere à renovada pressão para o sucesso dos alunos, às estratégias destinadas a reforçar os docentes como únicos responsáveis pelo insucesso escolar, às propostas de reorganização dos ciclos de escolaridade e a outras constatações que se querem “sociológicas” sobre alegadas práticas segregacionistas ou mesmo racistas dos professores portugueses, tudo feito por investigadores e políticos que depois gostam de afirmar a sua confiança nesses mesmos professores e nas escolas às quais querem retirar competências para as entregar às autarquias.
Mas, na sequência de diversas conversas, pude verificar que muitos outros professores sentem, afinal, algo parecido... a sensação de que somos indesejados no sistema de ensino por boa parte dos decisores, bem como dos que os apoiam ou pretendem aconselhar, na área da Educação.
Porquê?
Porque muitos dos professores na casa dos quarenta e muitos ou cinquenta e tal anos ainda têm a memória viva de outros tempos, de outras formas de fazer e estar (nas escolas, na política), de outros modos de organização escolar, de tomada de decisões, assim como do percurso, práticas e retóricas de muitos dos que continuam sempre na ribalta no que diz respeito a aconselhar como se faz ou deve fazer, mas sem nunca terem demonstrando, quando puderam, serem capazes de o fazer. Os professores que nasceram ali pelos anos 60 ou mais e que entraram na profissão até aos anos 90 ainda sabem como isto evoluiu, o que melhorou e o que piorou e, salvo algumas minorias de crédulos, rendidos ou desistentes, têm uma opinião bastante parecida - que é transversal a simpatias político-partidárias - pelas legitimações de políticas pela OCDE, dos estudos com origem em instituições como o ISCTE (governos de esquerda), ou a Universidade Católica (governos de direita) ou das vagas de maior intensidade dos pareceres do CNE (é fácil ler as fichas técnicas e encontrar os nomes, os mesmos quase desde a fundação afonsina).
É uma geração muito céptica de professores, que para alguns estão imbuídos de uma "cultura de retenção", que ainda não conseguiram ver a luz do belo pensamento das pedagogias mais avançadas ou de alegados “novos paradigmas” com pelo menos um século de formulação, que ainda não se renderam à inevitabilidade da proletarização ou da precariedade e que, conforme os contextos, são mais ou menos acusados por alguma opinião publicada de serem "conservadores", "retrógrados", "privilegiados" ou "corporativos". Em tempos de governos do PS costumam avançar os progressistas que anunciam o século XXI com amanhãs sorridentes de sucesso (agora reforçados com opinadores na área mais à sua esquerda), enquanto em tempos de governos do PSD/CDS avançam os apóstolos da racionalidade financeira, da necessidade de accountability e dos novos modelos de gestão.
Para além das guerras de alecrim e manjerona para cerrar fileiras que se pretendem antagónicas, quase todos convergem em políticas de centralização hierárquica das decisões, de esvaziamento das competências das escolas e de domesticação da carreira docente. E todos defendem um rejuvenescimento do corpo docente ou da sua forma(ta)ção para as novas tendências, por forma a implementarem com pouca contestação as políticas de sucesso escolar e financeiro que se apresentam como inadiáveis para melhorar o desempenho dos alunos, mesmo se esse desempenho melhorou de forma consistente nas últimas duas décadas de acordo com os testes internacionais PISA, TIMMS ou PIRLS.
Os indesejados são os professores que, apesar de congelados a meio da carreira ou pouco mais, são considerados caros, problemáticos e “incapazes de se adaptar aos novos tempos”, mesmo se somos nós que vivemos diariamente esses tempos. O que se deseja é um proletariado docente, cordato, agradecido por lhes darem um lugar ao sol, a quem se fomenta a inveja em relação aos mais velhos, de quem se espera uma obediência quase total, como retribuição por uma qualquer vinculação ou contratação, mesmo que precária. Os indesejados são aqueles que se querem afastar ou vencer pelo cansaço, pelo esgotamento, pelo massacre contínuo, de forma mais explícita ou mais melíflua, combinando demagogia política com "estudos científicos" encomendados à medida, com amostras adequadas às teorias que se querem demonstrar ou com a clara distorção dos factos para justificar medidas desejadas. Como acontece, por exemplo, na entrevista dada pelo autor de um recente relatório do Conselho Nacional de Educação em que afirma que “a transição do 1.º ciclo para o 5.º ano de escolaridade, de um para onze professores, é um salto muito grande, com mudanças bruscas”, o que é objectivamente falso, porque nem essa transição acontece nesses termos (no 5º ano a média é de 7 professores), nem o 5º ano é um dos que revela maior insucesso. Como se demonstra num outro relatório de 2015 do mesmo CNE.
Quase por definição, os professores indesejados são muito teimosos. E têm uma longa experiência de suportar as manipulações, as desconsiderações (materiais e simbólicas) e as mistificações da opinião pública. O que é uma chatice para quem os quer exterminar, porque a Memória resiste e, apesar do avançar da idade, a sua erosão ainda é capaz de demorar uns anos a acontecer.
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