PAULO GUINOTE |
Estes
últimos dias têm sido marcados pela polémica acerca da decisão governamental de
rever os contratos de associação com estabelecimentos de ensino do sector
privado quando chegar o momento da sua eventual renovação. A discussão tem-se
destacado por intervenções alarmistas, com argumentações despropositadas,
recurso a dados truncados e uma evidente vontade de provocar alguma comoção
social por parte de que acha ser possível aproveitar a inabilidade
comunicacional do ministro da Educação nesta matéria para descredibilizar uma
medida que se limita a estender aos contratos com o sector privado o fortíssimo
reajustamento financeiro que foi imposto à rede pública.
Esta
problemática é simples de entender se conseguirmos ultrapassar o ruído que foi
criado para desviar a atenção de alguns factos fundamentais, de que vou
apresentar uma curta selecção:
1.
Os contratos de associação surgiram, tal como os contratos simples (muito
similares ao cheque-ensino), de desenvolvimento, de patrocínio e de cooperação
no início da década de 80 do século XX para permitir que as insuficiências da
rede pública de ensino fossem supridas com o recurso a contratos com escolas
privadas. Em nenhum momento ficou legislado que os contratos seriam perpétuos,
nem sequer no mais recente Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo (Decreto-lei
152/2013, de 4 de Novembro), pelo que, passando a haver rede pública com
capacidade para absorção dos alunos de escolas privadas financiadas pelo
Estado, não parece existir qualquer interesse público em renovar tais
contratos. Repare-se que não falo em rasgar os contratos existentes, mas sim em
não os renovar, quando se revele que duplicam oferta pública.
2.
Pessoalmente, discordo bastante de algumas medidas de racionalização da despesa
na área da Educação, porque considero que esta é uma área que (como muito bem
demonstrou Martha Nussbaum) não deve ser gerida com o objectivo do lucro ou do
menor custo possível. No entanto, perante o brutal ajustamento verificado nos últimos anos no orçamento da Educação
destinado ao ensino público, não me parece razoável que a rede privada
dependente do Estado fique quase imune a esses cortes. Reparemos como de 2014
para 2015 a rede pública sofreu uma redução de verbas acima dos 10% (a acumular
com outros que vinham de anos anteriores), enquanto a rede privada
contratualizada apenas viu a sua dotação ser reduzida em pouco mais de 2% (o
último corte significativo ocorreu de 2010 para 2011). Sendo que, em virtude da
assinatura de contratos trianuais de última hora, a despesa com esse sector
disparou para mais 20% do que valor previsto para 2015.
Fontes:
Orçamento do ME para 2015 e Orçamento de Estado para 2016
3.
Na argumentação dos defensores dos contratos de associação há um outro detalhe curioso
que é o de referirem que a questão afecta “apenas” uns 80 “colégios” num
universo de mais de 2600 estabelecimentos de ensino privado. Afirma-se que são apenas
3% do total. O que parece irrelevante. Mas depois declara-se
que, afinal, podem vir a ser afectados
mais de 17.000 alunos por uma decisão de
rever os contratos de associação com esses colégios, o que é um número muito
elevado num sector que tem pouco mais de 120.000 alunos no Ensino Básico e um
pouco mais de 70.000 no Secundário de acordo com as estatísticas oficiais mais
recentes. Seriam quase 10%. Isto só é possível
não revelando que o número de alunos é, em termos relativos, muito mais elevado
nas escolas com contrato do que nas restantes privadas, chegando a 38,7%... o que significa que são
muito mais de um terço do total, um peso desproporcionado em relação ao
"número de estabelecimentos". Em Portugal, quase 40% do Ensino Básico
"Privado" é subsidiodependente, daí o tal “alarme” que levou a uma
mobilização com tons muito pouco coerentes com pessoas e grupos que, ainda há
poucos anos, se queixavam da “instabilidade” causada nas escolas pelas
manifestações de professores aos sábados (manifestações essas que em muito
resultavam da decisão unilateral de atropelar um estatuto de carreira e
relações contratuais de trabalho sem termo definido).
4.
O princípio da “liberdade de escolha” é uma falsa questão em todo este
contexto, porque só faz sentido se for acompanhado do respeito por princípios
como a equidade e a justiça social na forma como todos os cidadãos são tratados
no acesso aos estabelecimentos de ensino com gestão privada ou como esta
organiza a sua oferta educativa. Basta verificar a alergia notória que as
escolas com contrato de associação têm em relação às vias curriculares
“alternativas” para percebermos que o seu público-alvo não é o mesmo das
escolas públicas. Nessas escolas, em 2013-14 existiam 18 alunos matriculados em
turma de percursos curriculares alternativos, o que equivale a uma única turma.
Já no caso do Secundário, nas escolas públicas a via dita “regular” é seguida
por apenas 61,2% dos alunos,
enquanto nas escolas com contrato de associação são 76,6%. Assim
como é estranho que se gabem de “melhores resultados” mas nos rankings não
surja qualquer informação sobre o contexto sócio-económico dos seus alunos.
Fonte:
Perfil do Aluno (2013-14)
5.
É ainda importante que se perceba que em Portugal o sector privado na Educação
é muito mais forte do que em outros países ocidentais. Mesmo nos E.U.A. o peso
das escolas privadas com apoio estatal só cresceu acima dos 4-5% nos últimos anos
e em alguns estados. Sendo que há muitas escolas privadas com mecenas
particulares, uma prática que por cá é quase inexistente. Para além disso, há
ainda “pormaiores” ao nível do modelo de gestão. Na Holanda, as escolas privadas
com fundos públicos devem ser obrigatoriamente geridas por instituições sem
fins lucrativos e sem distribuição de dividendos ou lucros no final do ano. As
verbas que não sejam gastas num ano transitam para aplicação ou investimento no
ano seguinte e não há lugar a prémios de gestão. Na Suécia, as políticas de
privatização e descentralização iniciadas na última década do século XX
começaram há alguns anos a ser desmontadas em virtude do aumento da
desigualdade de desempenho dos alunos e da queda dos resultados nos testes PISA
(aqueles em que Portugal revelou uma subida assinalável de acordo com Andreas
Schleicher, especialista da OCDE que esteve em Portugal há pouco tempo a
convite do ME).
Por
fim… acho desnecessário e mesmo contraproducente a intervenção nesta polémica
de instituições ligadas ao sector (sejam sindicatos ou instituições
eclesiásticas) mas que só servem para contaminar ainda mais um debate que é
essencialmente político, embora esse seu carácter não justifique uma
multiplicidade de declarações de políticos (nacionais ou locais) que só servem
para revelar as suas dificuldades em ir além das suas obediências particulares
a interesses que raramente são os do tão proclamado “interesse público”. E isto
é válido mesmo para ex-primeiros-ministros que deveriam dar um exemplo de
serenidade e conhecimento nestas questões.
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