MIGUEL GOMES |
Vou ali, sem sair
daqui, onde me desloco sem viajar, onde sou sem necessidade de estar, pelo
simples prazer de me encontrar comigo mesmo e dizer: deixaste esvair um dia sem
que apenas um e um só rápido segundo te ondulasse um sorriso na carne.
Estou aqui, sem
sair dali, para onde viajei sem me deslocar, onde estou com necessidade de ser.
É por isto que
admiro a tenacidade dos pastores, mesmo os sem cajado, capa ou rebanho. Quando
já todas as luzes se apagaram, suas trindades reais que se ocidentalizaram, a
ascensão de uma sofrida mãe e a morte de um artesão, restam os pastores como
verdadeiros guardiões de um regresso, imaculado ou puritano. Perscrutando sob a
pala do chapéu as faces e olhando com a sabedoria que só as noites estreladas
lhes dão, quem sabe de onde virá novo burrico carregando dores de parir, puxado
por um gaipirador que de mãos feitas de aparas alcofará um qualquer ninho onde
possa nascer um, de muitos, que lhes diga, novamente, aos pastores, não a nós,
sedes livres e, por isso, reis de vós mesmos. Não existe outro reino, apenas
este, que nasce entre qualquer abraço ou beijo de quem se ama mais do que
aquilo que possui.
Voltar, volitar,
volver, entre diásporas e inacabadas conjugações que oscilam entre uma aberta e
um aguaceiro. De quanto sol precisa um arco-íris de tons infinitos? A que
saberão os limites do inalcançável diâmetro da circunferência da onda que se
forma quando, quase vagabundeado, atiro mais uma pedrita a este lago a que
chamam vida?
Não me contabiliza
a chuva, nem tão pouco o sol, a minha conta corrente flui sem grandes cálculos,
um dia traz outro e Salomão sentado à sombra do conquistado suspira e anseia
ser um dos lírios do campo.
Longe, entre mim e
o gume, a vida que se expressa como um sussurro ou um torpor, ninguém nada
nunca sabe abrir o dia sem chuviscar dor.
O tempo entrega-me,
em mãos, um caderno com tempos escritos em anos que não contei.
Cada palavra um
eco.
Um eco de sons que
não recordo ter frequentado. Apraz-me, o cheiro e a simplicidade destas linhas
pautadas, como que traçando latitudes imaginárias onde poderiam, apenas,
repousar incógnitas letras que acomodei à sombra de luzes menos brilhantes e de
noites mais longas.
Nunca é tarde para
nos encontrarmos ao largo deste zodíaco.
Vou entregar-te a
chave da vida,
era minha
ofereço-ta,
para que encerres o
capítulo
de caneta caída,
finda a batalha
de que nos serve a
luta?
Gosto da fluência
das rugas na face, cada sulco dermático um trilho, uma vontade, um percurso percursiado
e uma palavra nova, que tento reduzir ao mesmo denominador: Viver.
Gosto do inaudível
tique taque com que Deus brindou o Universo, um dia de cada vez, o amor nosso
de cada dia nos dai hoje, porque o pão esse sairá das mãos, salgado pelo suor de
quem perdoa os seus devedores.
Gosto da
curiosidade sadia de uma criança que me pergunta o que é o infinito. E a
resposta não iniciada nem finalizada, como quem se aguarda pela intemporalidade
que espreita a cada semi cerrar dos olhos quando se sonha em Viver.
O amor nosso de
cada dia nos dai hoje. E se não for pedir muito, amanhã também.
Amem.
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