ANABELA BORGES |
Continuamos com a publicação, em “tranches”, do meu conto A Tundra (cemitério de memórias), premiado e publicado em 2011 pela editora Alfarroba. Desta feita, dou-vos a conhecer a minha primeira publicação, que constitui um verdadeiro epítome do que são as minhas raízes, as pessoas e o lugar onde nasci; o meu norte e o Norte; raízes do profundo Portugal. Neste excerto, Lisinha (a protagonista da história) manifesta a sua indignação perante as reacções do país ao vírus da Gripe A.
Vejamos como:
Lisinha não se admirava que tivesse aparecido agora este demónio, a correr mundo, a espalhar o pânico. Ele sempre correra mundo, encavalitado nas pessoas, mesmo quando não existiam auto-estradas ou aviões, desde os tempos vagos de que falam os evangelhos, em que um homem e uma mulher se uniram para dar filhos e estes se juntaram uns com outros, para ali, irmãos com irmãs, e guerreavam e matavam-se, irmãos a irmãos, mandados, às vezes, pelos próprios pais, e foram-se espalhando, povoando esta e aquela terra, e estes filhos deram outros e assim sucessivamente, sem saberem que, por todo o lado e em tudo o que empreendiam, havia mão negra e satânica, daquele que tomava boleia de assalto para, descaradamente, calcorrear meio mundo e, a seguir, o outro meio. O diabo anda sempre. Anda. Mas Lisinha sabia também que muita da sua maldade era feita recorrendo aos homens e mulheres que, voluntariamente, lhe abriam as portas, verdadeiros ninhos onde ele se instalava, agindo através da cobiça, da raiva e da devastação. Havia de tudo nos caminhos sinuosos do diabo. E se havia aqueles que o recebiam de bom grado para porem em prática os seus mandados, havia também os que faziam de tudo para o expulsar da sua morada aberta, os que, não querendo fazer mal a ninguém, viam-se forçados a praticar bruxaria e a servir aos espíritos, que não queriam partir para o além, ajudando-os a cumprir as suas últimas vontades, para que pudessem, em paz, retirar-se para a sua última morada. E havia ainda os que, como ela, eram meras vítimas dos impulsos do danado, criaturas inofensivas, que não eram mais do que bonecos nas suas mãos trapaceiras, brinquedos nas suas diversões diárias, passatempos nos entremeios das suas infindáveis maldições. Como ela.
Todos os dias, o rapaz das notícias falava sobre o bicho. Era assim há um mês e meio. Ou porque mais uma escola fechara, com cento e cinquenta alunos infectados, ou porque o parlamento fora evacuado, a meio da tarde, porque uma deputada começara a espirrar sem parar, ou porque o juiz cancelara a audiência, com o réu a queixar-se de dores de cabeça e arrepios. Chamavam-lhe vírus, “Chamem-lhe o que quiserem. Eu sei bem quem tu és”. Lisinha gostava de ouvir o jornalista, um rapaz simpático que apresentava as desgraças e curiosidades do mundo. Era um rapaz jeitoso e era muito educado, sorrindo gentilmente para ela enquanto falava.
Era assim todos os dias. Por volta das cinco da tarde, Lisinha atarefava-se a preparar a ceia. Despachava tudo o que podia, incluindo alguma incauta vizinha que, àquela hora, quisesse palestrar, “Até amanhã, se deus quiser. É noute”, fechava as pesadas portas de madeira, dava uma volta à fechadura da loja com a grande chave de ferro, metia-se na cozinha coberta de negrume, e saboreava o caldo com broa e um fio de azeite. Depois, sacudia os restos para um balde preto, carregado de côdeas de comida ressessa, que punha do lado de fora da janela, para, no dia seguinte, deitar às galinhas, e lavava a louça, que deixava a secar, na pia – o prato, a colher e a panela, que ficava muito brilhante, apesar das amassadelas que, como carimbos, o tempo lhe foi conferindo. Depois, cuidava da sua higiene, mergulhava os dentes brancos num copo com água e sabão, vestia a camisa de dormir – não se dava com pijamas –, enfiava os pés nas farfalhudas pantufas que a filha lhe oferecera, envolvia o cabelo grosso numa rede preta, punha a manta de lã sobre as pernas, cruzava os braços e sentava-se no sofá, em frente ao televisor, com as costas muito direitas. Às oito horas em ponto, o seu amigo aparecia e era um rosário de conversas sobre o que se passava no mundo, “Sim, é bem verdade, sim. Realmente, acontece cada uma. Também era boa se esses se pegassem à guerra como os dofaganistão”.
E foi numa dessas noites que o cardeal viera explicar as novas regras para a celebração das eucaristias. Lisinha achou uma exageração. Missa é missa, é a casa do senhor, e não há que temer que o demónio queira lá entrar, porque, mesmo que entre, será vencido pela força maior do amor e da paz. Mas agora era assim. As pessoas chegavam, colocavam a máscara de papel antes de entrarem, nada de águas bentas, nada de hóstias. As portas e janelas ficavam abertas, para arejar, e era uma ventania a sacudir os cabelos das jovens, os véus das velhas e as gravatas dos homens. No fim, saíam de lá com os lenços abertos, dos engomados e dos de papel, a assoar os narizes inchados como batatas. Depois de ditar o aranzel do costume, o padre lembrava os pobres coitados que, por esse mundo fora, tinham sido vítimas da terrível enfermidade: as grávidas, que davam à luz filhos prematuros e finavam-se, infectadas, para que eles vivessem, ficando os pobres bebés, indefesos, metidos em incubadoras como coelhos desmamados; os idosos que se apagavam de vez, porque sofriam do coração e não aguentavam a força da nova doença; ou os jovens saudáveis, que eram apanhados desprevenidos com bronquites ou pneumonias que se complicavam. Mortes e mais mortes, que é do que a vida é, diariamente, feita, mas agora todas eram atribuídas à famosa moléstia. Depois, “Vão em paz e que o senhor vos acompanhe”, saíam as pessoas a espirrar, “santinho, santinha”, por causa das correntes de ar. E cada vez mais parecia a Lisinha que apenas ia à missa por obrigação. Uma obrigação, como se costuma dizer, social. Mas não era bem como lhe parecia à primeira vista. No seu íntimo, sabia que ia também um pouco firmada no receio de que o senhor pudesse vir a zangar-se com ela. E não era preciso agitar os ânimos do senhor. As relações entre ambos sempre foram cordiais e não era agora, por uma côdea de anos de vida, que se estragariam os negócios de toda uma existência.
Outrora, as missas eram verdadeiras, puras missas, ditas na língua mais linda que Lisinha já ouvira, cantadinha, “In nomine patris, et filii, et spiritus sancti. Amen. Laudamus te, benedicimus te, adoramus te, glorificamus te”. Lisinha sabia de cor, e dizia, corrido, o rito do missal romano. Era assim antigamente. E soava melhor. Recordava a sonoridade e a limpeza interior que a missa em latim provocava nas pessoas, domingo após domingo, “Sanctus, sanctus, sanctus, dominus deus sabaote. Hosànna in excelsis”. Isso era missa. Dava por si a repetir a litania romana, mesmo durante o noticiário. Por vezes, a sua mente entrava em divagações, mas logo se revolvia ao presente, “Sim, sim, deves limpar mesmo sozinho as sanitas, deves, sem esfregar. Deves fazer mesmo bem ao coração, eu vou já beber essas porcarias”, sobretudo durante os intervalos dos programas, quando o ruído emitido pela televisão era maior e a fazia voltar a si. Com as telenovelas era igual. Ficava no sofá até pelo menos à uma da manhã, para não perder o andamento das histórias e poder certificar-se de que os vilões acabariam claramente prejudicados, “Olha que ele está-te a enganar. Vai por o que te digo. Não acredites nele”, dormitando e acordando, “Olha que ele está feito com o outro”.
Assim adormecia muitas vezes, o seu ressonar a ecoar pela casa, como um fantasma que percorria todos os cantos, embatia nas paredes, revistava os móveis, revolvia arcas e gavetas.
(para continuar…)
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