HELDER BARROS |
Um jovem lavrador recém-casado da freguesia, era um homem bastante dinâmico e atento ao meio que o rodeava, à sua ecologia social. Estávamos no inicio dos anos sessenta, Quim Cavalo, era assim conhecido, devido à sua enorme capacidade e resistência física, dado que com uma enxada na mão, era tudo dele. Um verdadeiro cavador, criado como tal, numa época em que não proliferavam tratores, mas alfaias agrícolas com tração animal. Mesmo assim, muitas vezes, preferia cavar ele do que estar a preparar os animais e a atrelar as alfaias, tinha a sensação audaciosa que produzia mais com a enxada. Tratava-se de um grande cavador e gostava desse trabalho, o que o levava a superar de forma continuada, os seus limites físicos e mentais.
Este cavador pedia meças a todos os machos da freguesia e arredores, quando era para cavar. Alguns até tinham vergonha de o fazer ao lado dele, pois este fazia questão de os desmoralizar e mesmo de os humilhar, relevando a sua superioridade com comentários curos e sarcásticos. Assim que começava, não parava para comer, beber, descansar; era sempre em frente a ver os outros a ficarem para trás e ele sempre com um sorriso contido na sua face e postura imperial. Claro que qualquer contratante adorava ter a trabalhar nas suas vinhas e lavoiras, um cavador deste calibre, pelo que era muito requisitado em toda a freguesia e às adjacentes.
Ao almoço e jantar, finalmente, poder-se-ia ouvir o cavador a tecer algumas considerações sobre a vida em geral. Foi sempre um grande trabalhador, mas tinha um defeito a essa medida, vivia embalado pela inveja. Às vezes, ao ouvinte mais atento, dava a ideia de que fazia as coisas, mais para mostrar aos outros a sua hegemonia natural, do que para responder a qualquer desígnio interior da sua pessoa; eram mais os traços narcísicos da sua personalidade, o seu real leitmotiv.
E assim a sua vida obedecia a um comportamento de emulação, com as pessoas da sua condição social e até, com os de camadas superiores. Nunca queria ficar atrás de ninguém; isso era como tirar-lhe anos de vida, o que acontecia mesmo, pois perdia noites em claro, quando as coisas não lhe corriam de feição. Assim, se a sua quinta de que era caseiro, não fosse a que produzisse mais carros de milho, mais leite, mais touros, mais vinho, mais feijão, estaria sempre disposto a trabalhar e a investir mais para ser o produtor líder da freguesia…
Igualmente o seu único filho teria que ser sempre o melhor, um espelho do seu progenitor. Acontece que o rapaz era malandraço no trabalho e na escola, o que deixava o pai muito angustiado, pois sempre quis que ele fosse a sua continuação, um verdadeiro seguidor, com a mesma ambição do pai. Além disso o miúdo era muito doente, pelo que os constantes apelos do pai para melhorar em todos os sentidos, caiam, invariavelmente, em saco roto.
O pior estava para vir, com a prematura morte do jovem herdeiro, mas mesmo assim, Quim Cavalo, não se ficou. No cemitério fez a maior e melhor capela, para servir de túmulo ao corpo do seu malogrado filho, gastando o que tinha e o que não tinha nessa última empresa, impulsionada pela sua vontade compulsiva de ficar à frente dos outros. Nem nesse momento dramático, o homem percebeu o que realmente importa... nesta vida!
Claro está que progredir pela inveja é melhor do que não progredir. Se calhar até se pode considerar aceitável esta premissa. Mas o que seria o progresso deste homem se ambicionasse superar-se a si próprio, sem o contraponto da medida dos outros... se calhar seria muito mais profícuo e melhor para ele próprio. Por certo, o seu crescimento exterior estaria mais de acordo com o interior e ele muito mais apaziguado consigo mesmo. Mas isso sou eu, que nada sei, a lucubrar sobre a vida do Quim Cavalo, que Deus tem!
“A virtude neste mundo é sempre maltratada; os invejosos morrerão, mas a inveja é poupada.” - Molière
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