ANABELA BORGES |
Da união de Lisinha com Gustinho resultaram três filhos e um nado morto, todos nascidos de partos naturais, “Naturais é uma maneira de dizer. Só eu é que sei que de naturais pouco tiveram”. Durante os sete anos que Lisinha levou a parir, os partos eram, por força das circunstâncias, naturais, sem intervenção médica ou assistência hospitalar, pelo menos por aquelas bandas. Assim, as crianças foram-lhe nascendo, estando Lisinha, algumas das vezes, entregue a si própria e à sua sorte, o que poderia ser representativo de algum perigo, nos momentos em que a dor e a exaustão tudo fazem esquecer, levando à loucura e ao delírio, pondo em risco aquela vida que, chegada a sua vez, anseia por se apresentar ao mundo.
Um perdeu-o Lisinha, nem sabia que estava prenha, na guarita de madeira, no buraco que lhe servia de retrete, depois de uma grande dor de barriga, quando foi fazer as necessidades. Era um nado morto. Mas não percebeu logo. Desmaiou. Esvaiu-se em sangue e febre, durante mais de uma semana, valendo-lhe os extremosos cuidados da Secândida, erva após erva, emplastro atrás de emplastro. Já no seu estado de normal lucidez, Lisinha não teve dúvidas de que, mais uma vez, havia ali mão do maldito. Lembrava-se bem de ter perseguido, pelas traseiras do quintal, o cheiro de um entrecosto assado, vindo da casa do Manelzinho dos Campos, precisamente onde vivia a Secândida, e de como ficara desconsolada, quando espreitou e, pela porta entreaberta, a viu comer, deliciada, o entrecosto suculento, pela volta do meio-dia, enquanto o Manelzinho não chegava da lida do campo, para comer, somiticamente, a sopa com uma enxúndia, uma batata e um olho de couve. A Lisinha ficara-lhe o entrecosto na ideia, no desejo de o comer. Agora não tinha dúvidas. Fora essa maldição que lhe provocara o aborto. O seu negócio com a loja estava ainda no início, e Lisinha fazia sacrifícios, para que não houvesse desperdícios, e tinha, nessa altura, já uma boca de criança para alimentar. E o seu Gustinho não era nenhum mãos-largas. Não comeu o entrecosto, que, se sobrava alguma carne da taberna, metia-se pela boca do filho e do Gustinho. E ela dizia que comessem, que já tinha comido, “Comei, que eu já comi”. E pronto.
Lisinha perdia-se nos seus pensamentos, dando graças por aquela mulher-menina [Secândida] viver a seu lado, uma boa vizinha, uma alma padecente e piedosa. Ainda assim, para Lisinha, o parto mais feliz fora o primeiro, fosse pela novidade, fosse por ter desfrutado plenamente dos tributos de ser mulher, fosse pela alegria do seu Gustinho, que esperava, ansiosamente, que daquelas ancas largas de potro saísse um belo filho. Lisinha gozou de boa saúde. Andou tão bem, que o rapaz quase se esquecia de nascer. Pelas contas de Lisinha, já tinham passado as luas todas. O povo acabou por concluir que o menino tivera o tempo de gestação de um burro. Para ele nascer, mandou-se vir a Secândida e mais duas vizinhas. A boca do corpo não abria. Deitaram-na numa manta de farrapos e embalaram-na, para um lado e para o outro. Nada. Então, untaram-lhe a boca do corpo com azeite e fizeram-lhe defumadouros, Lisinha, exausta, sentada em cima do caldeiro com água a ferver, para começar a fazer a dilatação, num longo cerimonial dirigido pelas mãos habilidosas da Secândida, “Nada, pelo menos por ora”. E quando teve de ser, lá veio ao mundo um forte rapagão, ligeiramente cabeçudo e com a pele meia roxa pelo tempo a mais passado na barriga. Toninho era o mais feliz dos filhos de Lisinha, ou, pelo menos, assim parecia. Trazia sempre um sorriso nos lábios, assobiava constantemente e era muito trabalhador. Diziam que era um simples. E era. Não deu para os estudos, ficando praticamente analfabeto como a mãe. Casou com a filha da leiteira, ajudava a mãe na loja e ficou a morar no quinteiro, num anexo construído para o efeito.
Com o nascimento da filha de Lisinha, por mais inesperado que parecesse, não houve sinais de maleficência, pelo menos de forma aparente, que ela tivesse dado conta. Pelo contrário, na véspera do nascimento da menina, apareceu-lhe um anjo, muito branco, muito brilhante, com os braços abertos, à cabeceira da cama. Lisinha sorriu-lhe timidamente, espavorida com a aparição e embriagada pelo padecimento. Mas o querubim não lhe falou. Esteve ali durante uns instantes e foi embora, encavalitado numa luz. Lisinha nunca percebera aquilo, apenas via que a filha era uma criança normal, crescera saudável, esperta e vaidosa como a mãe, mas de postura mais altiva e pouco afável. A maldição, porém, viria mais tarde, nos anos de vida em que Lisinha se vê, agora, destinada a aturar a filha, “Mãe, agasalhe-se”, “Mãe, telefone-me, para eu saber que está bem”, “Mãe, tomou os remédios”, que suplício. A filha bem queria que Lisinha fosse viver com ela. Moravam a uma distância considerável e, com a mãe por perto, sempre ficaria mais sossegada. Com a falência das fábricas, o Toninho e a mulher abriram o seu próprio negócio – já não dava para viver da loja e da taberna, nos arredores de uma cidade que crescia, ávida de movimento, aberta ao comércio e aos turistas –, cresceram-lhes os filhos, o local de trabalho, o orçamento e a casa para morar. E Lisinha ficou sozinha naquele casarão, frio, desgastado pelo tempo, preenchido de sombras de fileiras de pessoas que por ali passaram, durante anos a fio. Mas logo fincou pé e desenganou a filha, “Daqui ninguém me tira”. E, agora, diariamente, a filha passava uma aflição para que nada faltasse à mãe. Tinha uma boa reputação no seu meio e nunca se perdoaria se alguma coisa lhe acontecesse, não viesse depois o povo dizer, “ A filha tinha uma boa casa, nunca precisou de trabalhar, que o marido sempre ganhou para ela, bem podia ter tomado conta da mãe”.
Apesar de tudo, o parto mais fácil, aquele em que Lisinha não deu por nada, fora há quarenta anos, quando lhe nasceu aquele peito de pássaro – e por aqui se irá concluir que, por ter sido fácil, não seria, por força da razão, abençoado. Era uma manhã como outra qualquer. Lisinha andava a pensar os animais, nas cortes, quando o largou ali mesmo, no meio do estrume. Foi uma enorme surpresa para Lisinha. Pelas suas contas, ainda faltariam duas luas. Berrou por auxílio. Ampararam Lisinha, ainda não refeita do susto, enquanto revirava os olhos, em direcção às traves, a avistar, um lume fugidio, um fuminho de agoiro. Isso afiançou ela, mas ninguém pôde comprová-lo. Levaram a criança para casa. Mas o menino era frágil, não se podia mexer-lhe muito, quebravam-se-lhe aqueles os ossos de pássaro. Por isso, nem foi possível dar-lhe banho, até ele ganhar consistência, ficando o pobre desamparado na alcofa, fedorento, com um ar remelado, e cheio de crostas do estrume que não se podia esfregar. De facto, o Nelo não era um menino como outro qualquer. Nem nunca viria a ser. Tudo nele, com excepção do nascimento, foi tardio. Mal cresceu, mal chegou a andar, não dizia uma palavra, mais que um grunhido, não tinha fome. Muitas vezes, o filho da Carminha costureira, com os seus três aninhos, um menino robusto e destemido, quando andava por ali a brincar, ia mamar nos peitos de Lisinha, a matar a sede com o leite que o Nelo não queria para si. E, às vezes, na vertigem do sono das noites quentes de verão, uma cobra vinha mamar o leite, quente e espesso, que lhe escorria dos peitos fartos. Lisinha não tinha a certeza se chegou alguma vez a vê-la, mas sabia que era assim. Bem tentava, durante o dia, escorraçar o desprezível animal, que rastejava por entre as ervas do quintal, mas parecia que gozava com ela, desaparecendo num hábil rabear. Enquanto bebia o leite, a bicha metia o rabo na boca do menino, para o manter entretido, o que o deixava ainda menos predisposto a alimentar-se, enjoado de mamar, enganado pelo abjecto que a mãe, desgraçadamente, não conseguia controlar. O menino trazia um sopro dentro dele, um sopro danoso e maléfico. Lisinha soube-o desde o dia em que o deitara ao mundo. Era azul, franzino e apático. Até a moleirinha do menino tardava em fechar, e Lisinha parecia que via lá para dentro os horrores que não queria ver, um óculo aberto para a eternidade. Lisinha bem correu com ele, de médico em médico, de benzedura em benzedura, não poupando esforços para livrar o seu menino do mal que a ele vinha amarrado. Mas nada. O menino começou a andar, pelo seu pé, tremeliquento, por volta dos quatro anos, aos onze, curvado, com uma muleta, e aos quinze, reduzido a metade, numa cadeira de rodas. E era vê-lo definhar de dia para dia, hora após hora, até que os médicos apostaram na derradeira tentativa de o segurar à vida. O rapaz morreu, com vinte e dois anos, na sala de operações, uma alma, um pássaro leve e azul que subiu aos céus. Um fuminho.
Lisinha definhou. Deitou contas ao destino, ou ao que quer que fosse que a deixava viver assim fadada pelo mal, e também ela desejou morrer, “Todo o mal do mundo, toda a dor, mas não há dor maior do que perder um filho”. Não há.
Tristes recordações traz agora Lisinha, “Não há maior dor”, nesta tarde de outono, em que meio mundo está preocupado com a peçonha, que por aí anda e andará, e sempre andou, “Lembraram-se agora”. Lisinha vai ligeira, pela berma do caminho. Vai à cabeleireira, que isto é preciso cuidar do cabelo, para se sentir bem. O seu cabelo sempre fora preto, “Não há-de agora pôr-se branco”. Veste de preto, eterna viúva, eterna mãe que perdeu o filho, as saias a bater no joelho – abaixo não, que baixa já ela é –, as blusas com um detalhe, laço, pequeno folho, pinta branca quase invisível, os casacos de algodão, e os sapatos ortopédicos. E pretos. Tudo é preto, ressalvando-se o ouro, o grosso cordão herdado da mãe, onde pende um medalhão que mandara fazer, com o retrato do seu finado filho, o seu menino suspenso, parado no tempo, anjo-da-guarda.
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