REGINA SARDOEIRA |
A moral dos homens é uma espécie de azorrague e a consciência uma inútil servidão. Se fossemos iguais aos outros seres da natureza, servir-nos-íamos dela sem remorsos ou julgamentos, fruiríamos o bom e tentaríamos afastar o mal, não seriamos cruéis, cínicos ou manhosos mas apenas nós mesmos, imbuídos da nossa própria natureza. Nada saberíamos de nada, a não ser que a vida nos estava a ser quotidianamente servida: e nem sequer teríamos noção deste pensamentos básico.
Sendo homens, martirizamo-nos, buscando objectivos, reclamando direitos, tentando alcançar cumes de grandeza ou de fama ou daquilo a que chamamos, pomposa e orgulhosamente, realização pessoal. E sofremos. Por antecipação: porque lutamos afanosamente pelo nosso fim. Por decepção: o nosso fim, uma vez alcançado, revela-se mesquinho e queremos mais. Por remorso: gostaríamos de ter tentado mais. E arrependemo-nos.
Somos, dentre todos os seres da natureza, os mais miseráveis.
Precisamos de ser educados, e atiram-nos para os terrenos, quantas vezes áridos, inúteis e conflituosos, de uma posse de cultura que para nada nos serve. Precisamos de trabalhar, e aceitamos fazer, por causa do salário, tarefas que desprezamos, dia após dia, com lamentos de tédio ou vociferações de raiva.
Unimo-nos a outros humanos e formamos famílias que, amiúde, se desentendem e muitas vezes são o fardo que temos vergonha de admitir.
Estabelecemos missões e metas, modificamos a natureza, criamos um outro mundo que, visto de um golpe, é de uma terrível e inquietante fealdade.
E, sim, tornamo-nos feios, obesos ou esqueléticos, com inúmeros sinais de um usufruto da nossa condição biológica, feita à revelia daquilo que o corpo nos pede. Vestimo-nos de um modo absurdo, cada vez mais absurdo (ou decerto tão absurdo como sempre foi) e as ruas das nossas cidades, como as casas, os monumentos, as festas são um espectáculo tremendo de selvajaria e barbárie.
Para cúmulo, com a nossa arrogância de reis de uma natureza, de que afinal precisamos (como os outros todos) , matamos inexoravelmente a condição da nossa vida e do mundo, do qual somos apenas uma parte, e chamamos, aos montões de pedra que fomos erigindo pelos séculos fora, o nosso património, a nossa história.
Não conheço a solução para o descalabro completo a que chegamos e vejo bem que, aqui e ali, uma meia dúzia de lúcidos tapam buracos, deitam remendos. Creio firmemente que apenas um qualquer surto de dimensões apocalípticas terá poder para varrer este mundo de tudo aquilo que o vem corrompendo, instaurando nele o grande vazio. Sim, o vazio. Puro, infinito, gelado e novo.
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