ANABELA BORGES |
O Natal era aquela porra a que nunca
dera importância, e agora cravava-lhe lembranças na cabeça, como pregos.
Parecia-lhe, de facto, mas talvez fosse ilusão de velho, que venderia a alma,
se nisso acreditasse, para voltar a ter uma noite de calor, igual às noites de
Natal de antes.
Já agora! Nunca quis saber das
alegriazinhas do Natal. Não haveria fantasma que lhe dissesse, “Os homens têm obrigação de viajar pelo
mundo, visitar seus irmãos… Os que não o fizeram em vida são condenados a
fazê-lo depois da morte. O destino dos espíritos … que viveram só para si, é
ver aquilo de que não partilharam. Oh, que horrível desgraça!”. Isso eram
fraquezas para o Scrooge acreditar, não para ele.
O homem Só telefonou aos filhos. O Natal
seria passado lá em casa.
Os filhos tratariam de tudo. Não teria
de fazer nada. Ninguém iria importuná-lo. Ficaria só a observar, sentado no
velho cadeirão.
Permitiu que, finalmente, a
mulher-a-dias limpasse os cantos todos à casa. E ele foi arrumar os livros. Ao
ver aquela azafama pouco rotineira, a gata soltou um miado forte e prolongado,
mais parecido com um rugido, e desapareceu.
Cedo, pela manhã, o homem Só tomava o
café no alpendre. Longe, a bruma ondulava como se fosse um corpo vivo. Os
pingos de gelo nos beirais reluziam como o velho candelabro da igreja, e um
tapete branco e fino cobria as ervas do jardim.
O dia avançou num entusiasmo lento. A
tarde apresentava o escuro da serra ao longe e mais para cá tudo era envolto no
esbranquiçado da névoa. A névoa fazia o negro da montanha esbatido de mistérios
longínquos. E nuvens que se avolumavam deixavam transparecer verticais raios de
luz dourada, mistérios de Deus.
Levava tempo para que absorvesse o
descer da tarde em véus finos de claridade. Sabia que, em menos de nada, seria
o ocaso, horas que sempre lhe traziam uma dor maior, mais difícil de suportar.
Porque céus nocturnos tinham tectos mais baixos, abóbadas a captar pensamentos
funestos, sonhos assustados e silêncios pesados.
Uma a uma, as chaminés começavam a
fumegar e luzes festivas acendiam-se por todo o lado, em redor.
O homem Só sentia-se especialmente
debilitado e simultaneamente quase em paz. Lembrou-se de um dito de Shakespeare
que, esbatido no torpor da memória, era mais ou menos isto, “Vinde pela hora de vésperas… e
encontrar-me-eis um homem para a cova”.
Esperou por aquela noite, com a maior
esperança do mundo: a esperança de alcançar um laivo de felicidade.
Excerto do conto “O Natal do Homem Só”,
integrado na colectânea “Lugares e Palavras de Natal” (2016) da editora Lugar
da Palavra.