ANABELA BORGES |
Haviam de lhe ter levado a mulher, porquê?
A igreja fria. Havia um qualquer mistério que se evolava. Das figuras nos altares, dos símbolos, da talha dourada, da alvura dos linhos, do trejeito dos paramentos, do cheiro a flores mortas, a cera e a incenso, de tudo se soltava uma sombra, tudo envolto na semi-obscuridade e no silêncio apenas interrompido por um ou outro suspiro. A luz coada pelos vitrais e o andar vagaroso de toda a cerimónia, o ciciar de vozes… tudo estava a enlouquecê-lo. Aquilo estava a mexer com ele. Aquilo, mesmo que fingisse indiferença, afectava-o. Apetecia-lhe gritar, mandar toda a gente embora, dali para fora. Manteve-se calado, absorto, sem reacção, mesmo quando a filha lhe passava a mão pelo braço ou quando procurava olhá-lo nos olhos para ver se estava bem. Não emitiu uma palavra, não desenhou um gesto. Não verteu lágrima. Deixou-se conduzir maquinalmente até à igreja e depois ao cemitério, os ombros ligeiramente descaídos no pullover gasto e sem forma. Estremeceu-se por dentro quando as cordas soltaram o caixão que tocou com uma batida seca nos abismos da terra. Estremeceu-se com as pazadas carregadas de húmus que nunca mais acabavam, a encher o buraco. Enojou-se com o cheiro, ainda outra vez, das flores mortas. Sabia que depois daquilo tudo, voltaria para casa. E, mais cedo ou mais tarde, acabariam por deixá-lo em paz.
Ficou, a espaços, a ecoar-lhe na cabeça o “Húmus” de Raúl brandão, “Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste…”. Não tinha como evitar: em situações de particular relevância, eram versos ou frases dos livros que lhe vinham à ideia. A ficção servia-lhe a vida.
Bebeu o café em sorvos sonoros como soluços. A vida não lhe trazia as coisas de volta. Só as levava. Mas por vezes, a tontura do sono parecia trazer a voz mulher, o tom compassivo e firme com que dizia tudo, “Calça umas meias. Vais ficar doente. Depois não há quem te ature”. Acordava com a realidade remelenta nos olhos, ainda a ouvir, “Veste o pullover. Não vês que o tempo arrefeceu? Vais ficar doente, cheio de tosse”.
O tempo, o tempo, que se lixasse o tempo. Só dava trabalho, o tempo. Era uma canseira aturar o tempo.
O tempo seguia, submisso, o repertório do calendário. Entrava Outubro e em menos de um sopro era o Natal. E tudo isso, mesmo que não o admitisse, afectava-o.
Vinha-lhe à ideia a frase ridícula de Dickens, a batedela de consciência que afectaria o velho Scrooge para todo o sempre, “Honrarei o Natal em meu coração e tentarei conservá-lo durante todo o ano”. Ridículo!
Não se deixaria rondar por fantasmas, nem do passado, nem do presente, nem do futuro. Desta vez, a ficção não iria sobrepor-se.
O Natal era aquele frémito. Aquele bater de asas. Era um espaço quente, pegajoso e buliçoso ao qual sempre queria escapar. A mulher a andar pela casa em sapatinhos de lã, apressada e silenciosa, era o que mais lhe vinha à ideia. E depois os gritos dos netos, as conversas irritantes dos filhos, as discussões, os risinhos.
Estava para ali sozinho. Os filhos não queriam que estivesse para ali sozinho. Queriam pô-lo num lugar melhor, vigiado, acompanhado, com comodidades, onde cuidassem dele. Estavam lá sossegados, sem saber se o pai estava bem…
Manteve-se calado. E no fim daquele drama de silêncios, deu-lhes uma corrida. Soltou tal bramido que a casa estremeceu. Era sempre assim que reagia quando se sentia fora do pé. E era assim que estava – fora do pé – embora não lhe interessasse ter essa percepção. Isso afectava-o. Sentiu todo o corpo estremecer. Do alto da amargura, morriam-lhe as mãos no vago do tempo, a ponto de se perguntar para onde foi o tempo, todos aqueles anos.
(continua...)
Excerto do conto “O Natal do Homem Só”, integrado na colectânea “Lugares e Palavras de Natal” (2016) da editora Lugar da Palavra.
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