MANUEL DAMAS |
A pergunta rebentou nas minhas costas, apanhando-me desprevenido, quando já tinha terminado e arrumava a pasta. Instintivamente encolhi-me…
Ato contínuo ecoou pelo Auditório uma gargalhada fria e cortante, em uníssono, cuspida, velha de séculos.
Aí estava A pergunta…
Todos nós, docentes, receamos A pergunta a que não sabemos dar resposta, anátema com poder para nos deixar desnudos e que nos persegue, qual ameaça, ao longo dos tempos, desde o momento da primeira aula. Em mais de duas dezenas de anos A pergunta perseguiu-me, deliciada com o jogo do gato e do rato, expectante, atenta, aguardando o melhor momento, qual ave de rapina, para me enredar, imperiosa e altiva.
Durante anos e anos aguardei por ela, apesar de não lhe conhecer a forma ou o contexto.
Fui esperando, à medida que o tempo ia passando e aprendi a respeitá-la, com temor, logo eu que não sou dado a medos, muito menos reverenciais…
Finalmente tinha surgido, explodindo no ar…
“O que é Amar?”
Virei-me lentamente, usando o período de latência para tentar construir uma saída, uma resposta protectora mas que fosse, também, minimamente esclarecedora.
E logo hoje, que tinha dormido mal e que não me sentia na posse de todas as minhas capacidades, em que o verbo flui e as ideias saltitam, ao longo das frases, num bailado sedutor.
Mas ninguém tem o poder de escolher o seu destino, pensei, enquanto me virava e a pergunta ecoava, ameaçadora, em todos os recantos do cérebro, queimando.
“ O que é Amar?”, espalhava-se, vagueando de lobo para lobo, deixando uma dor fina e incomodativa que já se estendia a todo o meu tecido cerebral.
Ao completar o movimento de rotação e preparando-me para o confronto com o público, apercebi-me de que a tonalidade do Auditório tinha mudado, perdendo a luminosidade, tornando-se cavernosa e ancestral.
Quando terminei de rodar, reconheci-os a todos que, do alto da sua sabedoria, zombavam…
A sala estava repleta e estendiam-se, muito para além de onde a visão conseguia atingir.
Pálido, analisei a disposição.
Na primeira fila, os Clássicos, com as togas amarelecidas pelo tempo…reconheci Aristóteles, Platão, Sócrates, Ésquilo, Diógenes, Heráclito, Demóstenes, Sófocles, entre outros.
Simultaneamente curioso, nervoso e atónito verifiquei que, a partir da primeira fila, misturavam-se todos, numa organização desorganizada, esquecendo referenciais, tempos, teorias, origens e estilos, unidos apenas por um fio condutor, o Verbo, utensílio único dos artífices do Saber.
A uns vi, a outros antevi e, a outros, senti…
Estavam Homero e Dante, misturados com Petrarca, Erasmo, Pessoa e Espinoza. Mais além Descartes, Flaubert, Diderot, Namora e Bacon. Ali Camus, Cervantes, Aquilino e Confúcio…atrás Goethe, Simone de Beauvoir com Marguerite Yourcenar e Marguerite Duras. Mais ao lado Montaigne, Rousseau, Hemingway, Voltaire e Conan Doyle, acompanhados por Montesquieu, Shakespeare e Dickens. Do outro lado despontavam Nietzsche, Kant, Ibsen, Joyce e Leibniz, logo seguidos por Malraux, Gabriel Garcia Márquez e Jorge Amado. Mas também se viam Eça, Camilo, Balzac e Jorge Luis Borges. Antevi, ainda, Drummond de Andrade, Dumas, Oscar Wilde e Miguel Torga, assim como Victor Hugo, Stendhal e Tolstoi. Mais distantes sentavam-se Umberto Eco, Gorky e Huxley. Ainda consegui visualizar, já lívido, Camões, Aquilino e Dostoievski, com Sartre, Júlio Dinis e Byron.
Mas eram mais e muitos mais…
Misturados, todos, mas unidos pelo mesmo elo gnósico, olhavam-me descrentes, possuídos pela arrogância universalmente consentida do Saber.
Eram o Saber…
Já mais calmo, não procurando compreender a lógica da situação, encontrei-me a tentar organizar o pensamento, as ideias em turbilhão e a voz saiu-me titubeante…
“Amar é gostar, gostar muito, gostar tudo, o que não implica gostar de tudo!”
Olhavam todos para mim, sem ver, do alto do Tempo, sustidos pelo peso do Saber. Antevi sorrisos, alguns de desdém, outros expectantes.
“Amar é dar, mas também receber”, continuei, tentando articular o discurso, “não porque se quer ou tem que ser, tão só e apenas porque é, naturalmente”.
“Amar é ter alguém em nós, connosco, nunca atrás ou à frente mas ao lado e, acima de tudo, do nosso lado”, acrescentei.
Os rostos, os nomes, as obras, os percursos, os discursos, o Saber, continuavam a olhar-me, plenos de gozo.
Pigarreei e articulei, já com mais força…
“Amar não é transformar o outro à nossa imagem e semelhança, modificar no sentido que se gosta…amar é ver, perceber e aceitar o outro, tal como ele é.” E completei…”Amar é gostar de alguém, como é e porque é!”
Num esforço pesado, ainda argumentei…
“Amar é estar a ler, junto ao mar, parar, erguer os olhos, cruzar o olhar com quem se ama e recomeçar a ler, com um sorriso no rosto, tranquilo e em paz, apenas por estar com…”
Sentia-me cada vez mais agitado e desconfortável, furioso comigo e com todos por, já vazio de argumentação, não conseguir estar a ser convincente.
Gesticulava, esbracejava, atirava frases atrás de frases, tentando vencer e convencer, furibundo por não estar a conseguir e, num ultimo alento de raiva e de revolta, rompi a barreira e acordei…suado, sentado na cama, na escuridão do meu quarto.
Ofegante, resmunguei.. “Maldito jantar!”
Recomposto, deitei-me de novo e quando te senti, reconfortante ao meu lado, adormeci, sorrindo, já vitorioso, a pensar…”Amar é a emoção, o prazer e a paz de estar contigo!”
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