Oh! captive, bound, and double-ironed… Not to know that no space of regret can make
amends for one life's opportunity misused! Yet such was I! Oh! such was I!
Oh,
cativo, aprisionado, e duplamente acorrentado... Sem saber que não há remorso que
pague as oportunidades perdidas da vida! No entanto, eu era assim! Exactamente
assim!
Charles Dickens, A
Christmas Carol / Um conto de Natal
ANABELA BORGES |
Era o homem Só. Era um homem só. E era
um só homem.
O dia cavalgara em letargos de incerteza.
Era tarde. O vento fustigava as coisas lá fora e imprimia sombras nas paredes
da casa. Deixou-se estar. Ele e só ele. Tinha-se esquecido de almoçar.
Levantou-se do cadeirão de couro e
madeira escura, que cedeu um gemido. Foi fazer café, na esperança de apaziguar
os azedumes do estômago.
Que se lixasse tudo.
Tinha lido um livro com o título “Só resta o Amor”. Qual amor? A ele não
restava nada.
Na inquieta sucessão de factos, lampejos
e convulsões, a vida foi-lhe tirando tudo. Ou foi ele que abriu mão, “Ou fui eu
que abri mão…”.
A vida tirou-lhe tudo (levasse-o a
ele!). Tirou-lhe a mulher, a força, o viço; empurrou-lhe os filhos para longe.
Ou foi ele que os afastou, “Terei sido eu a afastá-los?”.
Foi tudo. Até só restar ele, a casa, a
gata e os livros. Tudo o mais que existia na casa – bens, valores, móveis,
objectos – não lhe interessava. Nada mais lhe interessava. Nem a sua pessoa lhe
interessava. Não havia nada no seu íntimo que lhe interessasse. Não pensava
nisso. Não se analisava.
Amigos, não tinha. Era um assunto que
lhe acorria à mente, mas que evitava analisar.
A própria casa não lhe interessava. Era
uma carcaça que o abrigava das intempéries e lhe servia de esconderijo. Só os
livros lhe interessavam. Isso e a velha gata, que foi a única que restou de
gerações e gerações de gatos que passaram pela casa. Era mal-humorada e
resmungona como ele.
O tempo era sempre difícil para o homem
Só. O tempo de qualquer dia, qualquer estação. Era raro ver-se animado ou
tranquilo. Chegando o Outono, a irritabilidade aumentava. Dava pontapés nas
coisas, atirava livros ao chão. A gata também não gozava dos melhores dias.
Punha-se nos altos das estantes com o cenho franzido e atirava livros ao chão.
Lá fora, as folhas esvoaçavam, as
árvores envolviam a casa com a sombra dos braços nus, como fantasmas. O homem
Só não olhava para as coisas, não dava importância a isso, mas sem saber, era
isso também que o afectava: o arrastar dos dias em cinzas, o vento, a chuva, a
geada fria pela manhã que lhe deixava os beirais com pingos de gelo. E a merda
dos cães, que ladravam por tudo e por nada.
Tudo o irritava. E se antes se mantinha
calado – taciturno, com o cenho franzido –, agora berrava, soltava as mais
injuriosas imprecações, exaltava-se e tornava-se destrutivo. Ninguém o ouvia.
Só a gata.
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(continua nas edições de 15 e 29 de
Dezembro de 2016).
Excerto do conto “O Natal do Homem Só”,
integrado na colectânea “Lugares e Palavras de Natal” (2016) da editora Lugar
da Palavra.
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