sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

DEIXEMOS FLUIR

TERESA ALMEIDA SUBTIL
Ontem, dia da Independência, olho, mais atentamente, a espada de El Cid, pendurada, carinhosamente, junto à porta de entrada. Um amigo trouxe-a um dia. Veio de longe, de propósito, e nem sequer se demorou. O tempo comia-lhe os passos, mas quis deixar um pouco de alma. É a espada do herói a que é afeito, de Burgos, a sua terra. Esta ideia de pertença a todo o mundo faz todo o sentido, através dos valores, da cultura e de algo primordial: a amizade. Chega a ser surreal uma espada ser símbolo de amizade. Mas tu ficaste na lâmina, no punho e na arte de quem ama a luta para fazer a paz – junto à porta de entrada ou de saída (talvez apenas de passagem- como a vida). Vieste e ficaste numa história de largos sorrisos, de cumplicidades e de lutas por um mundo melhor. Um gesto que traz à memória o tempo em que Miranda do Douro e Aranda de Duero viviam o auge da geminação e construíam pontes de cultura e desenvolvimento. Quantas vezes saltámos um rio que nos une, um salto num espaço que sempre foi nosso, apesar das fronteiras, apesar das hegemonias, apesar dos assaltos, apesar dos heróis nascidos nos altares. Também a língua nos foi berço e, se atentarmos que o mirandês é hoje entendido por 800 milhões de almas, como defendem alguns estudos iniciados por Amadeu Ferreira, percebemos a riqueza desta abrangência cultural.

Não te vejo, mas estás porque sabes estar. Ser amigo é dar a espada de despedaçar medos, sejam de que ordem forem. E se a fera vier pela calada da noite saberemos dobrar-lhe a sagacidade do olhar, porque a selva é em qualquer momento e em qualquer lugar (poderá ser esta uma das mensagens que quiseste deixar). Sempre perscrutei um potencial mundo num objeto singular, como um livro que nos viaja . E se viemos dos confins da desordem, como conhecerenos os caminhos infinitos que nos habitam? Cada vez sabemos menos, é verdade, mas uma espada pode ser um pequeno nada que, à entrada da porta, nos aporta a imensidão do que não sabemos, mas do que sentimos. E o medo sai, assim, pela porta e pela palavra. Deixemos fluir! dizia Jorge Nuno, outro amigo que, por aqui (Bird Magazine), vai semeando pérolas.

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