O Erro de Querer Ser Igual a Alguém
Aqui, neste misérrimo desterro
Onde nem desterrado estou, habito,
Fiel, sem que queira, àquele antigo erro
Pelo qual sou proscrito.
O erro de querer ser igual a alguém
Feliz em suma — quanto a sorte deu
A cada coração o único bem
De ele poder ser seu.
Ricardo Reis, in "Odes"
Heterónimo de Fernando Pessoa
MANUELA VIEIRA DA SILVA |
– Oh, mulher, traz lá a tal coisa!
A mãe colocou de imediato sobre a mesa uma tigela do pequeno-almoço cheia de cerejas. Sem olhar para os filhos mas com um sorriso de felicidade estampada no rosto, o pai mete a mão à tigela e começa a distribuir as cerejas:
– Um par aqui, um par neste lado.
E repete mais uma vez. Como eu era a mais nova, mimou-me com uma ternura que eu não estava habituada e, pendurando os pares de cerejas nas minhas orelhas, diz-me a brincar:
– Tens uns brincos muito bonitos, ficam-te muito bem.
Numa mistura de sentimentos, não sabia o que havia de fazer e um rubor inusitado invadiu o meu corpo, acabando por lhe devolver um olhar de gratidão sem nada dizer. Fiquei com os «brincos» nas orelhas durante algum tempo, com vontade de os comer, mas sem a necessária coragem para lhes tocar.
Na altura não tinha a mínima percepção do que se passava na cabeça do pai, nem as dificuldades que sofria para poder trazer comida para família e satisfazer as exigências da mãe. Era uma pessoa triste ao meu olhar, de poucas falas, e quase nunca o via, pois trabalhava durante a noite na mina e dormia de dia.
Depois de a mina de carvão fechar e cansado de tanto lutar, o pai acabou por aceitar uma proposta de um primo que vivia em França. Ia experimentar. Nem sabia por quanto tempo iria ficar, porque era um trabalho sazonal da época das vindimas, que duram apenas umas semanas, e o incerto era certo. Iria para um lugar onde já havia outros portugueses e não ficava só, tendo o primo para o ajudar quando lá chegasse. Isso deu-lhe coragem para deixar a família e partir de assalto, sem passaporte, mas cheio de esperança. E partiu mesmo, deixando a mulher e os filhos, com a promessa de dar notícias logo que pudesse.
Finalmente há notícias do pai: é para ficar!
Os meus irmãos andavam na escola primária e eu começara a primeira classe. O tempo foi passando… o dinheiro ia chegando... Até eu fazer a segunda.
Finalmente o pai regressara, forte e cheio de coragem. Já tinha uma casa à nossa espera e que ia correr tudo bem – uma grande reviravolta entre o que ficou para trás e o adiante, e que nenhum de nós fazia ideia do que iria acontecer. Deixar tudo e partir para novos começos, em terras desconhecidas, com novos rostos, novas escolas, em constantes mudanças… que nada mudaram. Em curtos períodos aqui e ali, à procura da felicidade, muitas viagens se seguiram, sem tempo para criar raiz.
Os temporais de emoções foram crescendo na terra das memórias, nos caminhos plantados pelo vento, de flores que nunca chegaram a florir.
A família desfragmentada, unida num destino de lonjuras, na saudade do que não viveu, tornado sonho na divisão subterrânea das raízes de cada um, é um poema de dor e desalento unido no verso do mesmo ventre, que deu à luz brumas de esperança incerta. Tudo se move em desalinho por mais de um caminho, no futuro que escapa a si mesmo. As raízes desprendem-se da terra regurgitando o sal que as consome, em busca do sol e da água que lhes permita viver, lutando por manter intacta a semente original, a essência do amor unida em filamentos de cristal, que ilumina a estrada ou a linha de comboio ramificada pelo tempo e multiplicada em várias telas de paisagens, pinceladas com o mesmo sangue, desmaterializado na etérea raiz do amor.
Serei pão da colheita de Abril duma semente manipulada pela fome e o frio nas águas de dois rios. Em ambos entrei para aprender a navegar e em nenhum deles naveguei.
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