REGINA SARDOEIRA |
DESTINO – «É aquela sensação que temos de conhecer qualquer coisa de nós que ninguém mais conhece e saber que se realizará, é qualquer coisa que tem que se manter no interior porque é frágil e se a tornamos exterior qualquer um pode matá-la e então é melhor guardá-la no íntimo.» (Bob Dylan, entrevista a Ed Bradley, no programa 60 minutes NBC, em 2004, aquando do lançamento do seu livro Chronicles – Volume I)
Há muitas teorias sobre o destino, muitas verdades e consequências, muitos mitos e superstições e até a sacrossanta definição do dicionário etimológico, «derivado regressivo de destinar, do latim destinare, fixar, sujeitar, afectar a, fixar, designar, decidir, fixar qualquer coisa como objectivo»…etc…Ora, assim sendo, o destino nunca é o que nos acontece como sendo a fatalidade, a sorte, o acaso ou a azar, o jogo malicioso ou benevolente de um deus manipulador, mas antes a consequência lúcida da nossa escolha, entrevista algures no dealbar da consciência, retomada dia após dia, ano após ano e depois fixada como objectivo, feita decisão, e a partir desse momento transformada no acto propulsor, na demanda, na busca tenaz e persistente, até o termos na mão e podermos afirmar: Cheguei!
O destino ou a consciência de nós mesmos, a convicção de que, mais para a frente e noutro lugar, reside o segredo do nosso agora (este em que um balbucio ainda confuso nos segreda o mistério da nossa verdadeira identidade) é o meio e o fim: meio, porque é na sua assunção que nos dispomos a terçar armas, fim, porque sabemos que vamos reconhecê-lo quando chegarmos. Somos, apenas nós, os nossos próprios senhores, os obreiros do nosso destino e, a maior parte das vezes, o trilho que somos compelidos a romper, oriundo dessa voz ancestral, mas ancestral na justa medida em que é a voz da nossa verdadeira origem, esteja ela onde estiver, venha ela de onde vier, adquire a forma de um chamamento ou «vocação» (termo que, etimologicamente, contém a palavra voz) e, sendo escutado atentamente, nos obriga a percorrer seja que caminho for, a travar seja que batalhas forem porque elas são a condição única de nos atendermos a nós próprios.
Evidentemente que nem todos acedem a escutar a voz, que é a manifestação da própria identidade, nem todos se lançam na caminhada capaz de os conduzir até às suas próprias cumeadas, nem todos ousam desbravar terrenos inóspitos, nunca percorridos e por isso assustadores, pois é esse susto engendrado na rotina insípida e morna a que os homens convencionaram chamar de educação, mas que não passa de um conjunto de actos de criminosa mutilação, que agarra cada um e quase todos à herança firmada com os progenitores, com o status quo, com a síndrome sócio-económica e tantas outras formas de auto-olvido e logo auto-mutilação em que todos e cada um acabam esquecidos do sussurrar inicial, fonte do seu destino e deixam-se imergir numa outra espécie de batalha, sem glória e sem declínio porque é uma batalha contra o eu, contra a voz ( de: vocação) contra o destino ( de: traçar um objectivo).
Porque a maior parte dos homens foge ao seu destino, estabelecendo compromissos dúbios com verdades alheias que transforma nas suas certezas, é uso dividir-se o mundo em duas partes no que concerne à humanidade: de um lado, a horda estruturada e legítima, mas, apesar de tudo, horda, no sentido literal do termo, e do outro, os designados inconformistas ou inconformados, aqueles que se desligam da horda alinhada partindo em demanda dos que adivinham como sendo pares ou aceitando permanecer sós e silenciosos enquanto constroem o seu próprio caminho, a sua própria morada.
Esta é a dicotomia trágica do mundo dos homens já que – é sabido à saciedade – é a horda que em última análise adopta ou rejeita os desalinhados e nem a adopção, nem a rejeição são ocasião de júbilo para aquele que ouviu a sua própria voz e demanda, seguindo-a, o seu próprio caminho. Não será mesmo possível aceder à compreensão plena desta ligação do inconformista com a massa (e logo conformista e conformada, enquanto tal) nem poderemos cabalmente interpretar o que deseja realmente aquele para quem seguir o destino (no sentido expresso antes) implica desalojar de si uma obra, seja ela qual for. A obra é o seu sangue, a sua seiva, o seu coração, a sua alma, o seu génio, a obra é a sua transmutação, a sua sublimação, a sua metáfora, a sua recriação, a obra é o nascido de si e logo, o derramamento de si, e nada pode haver de mais terrível do que este desapossamento, esta exposição contínua e continuada perante turbas, essas mesmas que se auto-cingiram a uma cápsula de valores, herdados na cultura ou no preconceito, e vêem no génio, que abraçou o seu próprio destino, a imagem do que não ousaram, não quiseram ou não puderam fazer. E contudo o desalinhado, o réprobo, o que segue o lado oposto da estrada de todos, paradoxalmente, necessita do mergulho, tem que ver-se reflectido no olhar absorto ou incrédulo da multidão. Se ela o aceita, quer endeusá-lo, apossar-se dele, render-lhe culto, construir-lhe um templo, encontrar-lhe uma definição, sondar-lhe as origens, verrumar-lhe as entranhas… e o desalinhado deve seguir o seu destino, ouvir o seu génio (o deus particular que com ele nasceu e o acompanha e guia), demandando a solidão, o olvido, ziguezagueando em todas as direcções para não ser encontrado, mascarando-se milhares de vezes para não ser reconhecido. Mas se ela não o aceita, o então renegado vai sofrer os delírios da sétima solidão e pregar no deserto e gemer no seu gélido tugúrio e parir em segredo os seus fetos sanguinolentos tornados inúteis e logo nados mortos.
E é por essa razão que empreender a viagem do nosso próprio destino acompanhado do deus particular, que é afinal o nosso génio, se transforma num feito prodigioso e terrível e só poucos, de entre os homens, conseguem arriscar nessa senda toda a vida, jogando a cartada decisiva da escolha e marcando o caminho, apenas para a frente, indiferentes às pisadas que deixaram e que o tempo varrerá. Quanto aos outros, a horda organizada e consequente, instala-se nos cadeirões da suficiência sempre igual, indiferente ao génio, desdenhosa do destino, todos submersos na morte, mesmo enquanto o coração ainda pulsa.
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