ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA |
A relação entre a literatura e o cinema estrutura-se numa contínua conjugação entre as óbvias diferenças e os possíveis paralelismos. O cineasta precisa de espaços, cenários, objetos para explicar o sucesso social de determinada personagem, o teatro suprime tudo e escolhe um só aspeto, o romancista constrói tudo numa só frase. O romancista pode evocar a multidão, o dramaturgo simboliza-a com poucas personagens que funcionam como coro, o cinema mostra as massas a um número infinito de espectadores.
O cineasta precisa de toda uma quantidade de meios para justificar uma só frase do romancista. A especificidade cinematográfica fica incompleta só com palavras. É muito difícil contar um filme através de palavras porque se esquece o valor do som, da música e do ritmo. É muito difícil contar por palavras a luz e as tonalidades de uma paisagem, a expressão e o olhar dos atores.
As vulgares denominações de “romance cinematográfico” ou de “filme literário” negam a essencial convergência entre os dois modos de expressão, porque o cinema não é só objetividade e a subjetividade não é exclusiva da literatura. O texto literário não pode ser apelidado de “cinematográfico” só por estar repleto de visualizações, só por ser graficamente apresentado como um guião ou só por ser fácil filmá-lo. Não se pode afirmar que a mudança de ponto de vista de determinado romancista se deve à influência do cinema, quando os filmes da sua época eram elaborados só com enquadramento fixo e sem técnicas de montagem. O texto fílmico pode ser inspirador para a literatura, como pode ser estruturado no mundo e nos códigos da literatura. Eles são elementos constantes e fundamentais na atualização de sistemas narrativos, sem qualquer situação de dependência de um em relação ao outro. A tradição ficcional do cinema é apenas a tradição narrativa comum a todos os contadores de histórias.
Quem é que nunca comentou calorosamente as diferentes transposições fílmicas de Harry Potter (J.K.Rowling) O Nome da Rosa (Umberto Eco), O Senhor dos Anéis (Tolkien), O Delfim (José Cardoso Pires), O Crime do Padre Amaro (Eça de Queirós) - a versão mexicana e a versão portuguesa) – e das obras de Júlio Dinis e de Eça de Queirós (nomeadamente as dos anos 30-40)?
Quem é que nunca viveu estas múltiplas experiências de receção e as opiniões radicais daqueles que, nestes filmes, procuram o pior e o melhor das duas artes? As experiências de receção são múltiplas. A receção da leitura, lenta, interrompida, sujeita a muitos fatores ambientais, sublinha detalhes, percorre as descrições de personagens, a narração de gestos e de movimentos. Na visualização do filme, o leitor/espetador é confrontado com a realidade da imagem. E aí faz sempre inevitáveis comparações com o anteriormente imaginado. Se vê primeiro o filme, mergulha na imagem, na cor, no movimento, na sucessão dos planos, na música e adora. Durante a posterior leitura, a imaginação já está condicionada, o leitor já visualiza em função do que viu.
Na análise de uma transposição fílmica, quando se compara e se emite juízos de valor fala-se de quê? Das personagens? Do enredo? Das imagens? A adaptação cinematográfica/transposição fílmica contribui para um aumento da leitura, torna o romance um fenómeno de massas, torna os escritores verdadeiras vedetas: temos o recente exemplo de Tolkien. Os best-sellers da atualidade também fomentaram a corrida às salas de cinema, nomeadamente com a saga de Harry Potter de JK. Rowling e o caso de O Código da Vinci de Dan Brown. A projeção literária que o Prémio Nobel concedeu a José Saramago também contribuiu para a concretização e consequente sucesso dos filmes Blindness (2008), de Fernando Meirelles (a partir do Ensaio sobre a Cegueira, A Jangada de Pedra (2008), de Georges Sluizer e Enemy (2014) de Denis Villeneuve, (a partir de O Homem Duplicado).
A transposição fílmica deve ser vista como uma crítica literária. O cineasta deve penetrar no espírito do texto, fechar o livro e pensar unicamente nas imagens que o texto evoca? Será este o único método de transposição? Será o cineasta o vampiro ávido que, saindo do túmulo, chupa o sangue do romance e que, para dele tirar a força vital, torna-o compatível ao seu grupo sanguíneo?
No imenso lago dos preconceitos e mal entendidos, apenas uma morte é exigida: a morte da fidelidade. Mas nem todos pensam assim. São muitos os escritores – e até os críticos – que se recusam a encarar a fidelidade como uma utopia: o caso de Marguerite Duras que escreveu O Amante da China do Norte, com uma linguagem marcadamente cinematográfica, como uma reação negativa à transposição de O Amante, realizada por Jean Jacques Annaud. Willa Cather, escritora norte-americana, protagoniza o caso mais paradigmático de fundamentalismo contra as transposições fílmicas: no seu testamento, proíbe os seus herdeiros de ceder os seus escritos, os direitos das suas obras – “ao cinema, teatro, rádio, televisão ou qualquer outro meio de reprodução mecânica que possa ser descoberto ou aperfeiçoado no futuro.”
Será que há obras inadaptáveis? Não! Todas permitem uma interpretação! As obras de arte são sempre suscetíveis de múltiplas leituras e interpretações: essa é a aceitação da verdadeira literariedade do texto. A adaptação é uma reconfiguração estética.
E então? Podemos ler os filmes? Como? E os livros veem-se? Como? O que diremos? É proibido dizer: O livro é melhor que o filme! É proibido dizer: O filme é melhor que o livro! Os filmes podem ser lidos - por nós! Os livros podem ser vistos pelos cineastas. E é este comportamento que nos vai a criar e a receber as homenagens que cada uma das artes pode conceder à outra.
Sem comentários:
Enviar um comentário