segunda-feira, 14 de novembro de 2016

À CONVERSA COM UM DEUS VAZIO

ALVARO GIESTA
Em 1999 concluí a 1.ª parte dum livro de poesia – que ainda se encontra a amadurecer em três sebentas, ou antes, a ganhar coragem para se dar à luz, composto por duas partes (a 2.ª terminada em 2009), e cada uma delas composta por 44 poemas, a que dei o nome, no conjunto formado para obra única: DOIS CICLOS PARA UM POEMA. À 1.ª parte chamei-lhe, em subtítulo: CICLO UM – ABISMO; à 2.ª parte (depois de alguns nomes pensados como “entre a Terra e o Céu” e “a Luz nublada na vertigem”, acabei por me fixar no seguinte nome para subtítulo: CICLO DOIS – ACERCA DO HOMEM QUE PERDEU A LUZ. Assim, o segundo completava o primeiro como explica a nota introdutória (aqui apenas na parte que interessa): “Se no ABISMO do pouco que sabemos da relação do Homem com Deus fica a grande dúvida, no ACERCA DO HOMEM QUE PERDEU A LUZ, temos dele a outra dimensão e a outra face da angústia”. 

E começa o ABISMO (ciclo um) com uma Carta a Deus que em Junho deste ano de 2016 publiquei, embora em versão reduzida, no facebook, sob o título “À CONVERSA COM UM DEUS VAZIO”. Carta que, desde 1999, até hoje, tem sofrido alterações (e continuará a sofrer, certamente, até que a obra seja publicada), consoante os acontecimentos o exigem (facilmente deduzidas na leitura) e os estados de alma o imponham. Assim tem acontecido, como em toda a obra (que segue, de perto, a estrutura poética que me influenciou Miguel Torga).

E foi este “À CONVERSA COM UM DEUS VAZIO”, que na BIRD agora publico na íntegra e no estado em que ela se encontra, que despoletou, no facebook, aquando da sua publicação apenas em parte (em 26 de Maio deste ano de 2016), muitas posições de entendimento com comentários que muito me agradaram, e na sua totalidade, mas que, também, e a partir desta data, geraram, por parte de alguém, até hoje ainda desconhecido, posições menos dignas que resultaram em denúncias constantes à administração do facebook até à data de 10 de Outubro, também deste ano de 2016, e que tiveram como consequência apagões de poemas e textos (sempre muito comentados) levados a efeito pela administração deste espaço argumentando os mais díspares motivos como, por exemplo, “plágio”, “ofensa à moral”, “imagem ofensiva que lesava sensibilidades” (nesta era uma imagem colhida na net que mostrava Deus a olhar para o Universo).

Não me admira (nem se admirem), portanto, que quando aqui inserir este artigo – esta Carta a Deus – não tenha o mesmo destino que tiveram os artigos e poemas, aqui deixados e aqui apagados nestas datas, que seguem como memória descritiva:

26/05/2016 – À CONVERSA COM UM DEUS VAZIO (epístola)

29/05/2016 – DEL SER / DO SER (de um projecto a 4 mãos - poesia)

04/06/2016 – RISCAR A PALAVRA MENTIRA NO QUADRO NEGRO DA DOR (poesia)

08/06/2016 – AS CONSCIÊNCIAS CRIADORAS NÃO VIVEM POR REPRODUÇÃO E ROTINA (colagem da crónica na minha coluna “Palavras Quase” do Jornal impresso O Comércio do Seixal

09/06/2016 – COMO SE DA VIDA SE TIVESSE ESGOTADO A VOZ (poesia)

15/06/2016 – NA VISÃO DUM CÉU ONDE DIFÍCIL É ENCONTRAR A LUZ

16/06/2016 – TENS AS CAMÉLIAS CRAVADAS NA SENSUALIDAE DO CORPO (poesia)

18/06/2016 – ENTRE A EXALTAÇÃO E A MELANCOLIA (poesia)

29/08/2016 – O STATUS QUO DA POESIA (crónica da BIRD)

13/09/2016 – REFLEXÃO EM TORNO DO FAZER POÉTICO VIDA-MORTE (crónica da BIRD)

26/09/2016 – AS FRONTEIRAS ENTRE A PROSA E A POESIA (crónica da BIRD)

10/10/2016 – A CRÍTICA LITERÁRIA E A CEGUEIRA (crónica da BIRD)

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Deixa que Te abra o coração e Te escreva, uma vez na vida, para Te dizer, cara a cara, ainda que nunca Te tenha visto nem Te conheça, a ideia que tinha de Ti nos tempos longínquos da minha meninice. A ideia que conservei de Ti nos anos idos da minha adolescência. A ideia que tinha de Ti e que não queria perder, mas me forçaste a fazê-lo, a pouco e pouco, ao longo dos anos.

De Ti, de quem recebi o sagrado sacramento na pia baptismal e confirmado depois pelo crisma e penitência; de Ti, a quem orei tantas vezes, nas súplicas das orações que minha mãe me ensinou, antes de adormecer; de Ti, quando aos sete anos de idade já sabia de cor todas as respostas em latim que tinha de dar ao padre, a quem eu ajudava na homilia dominical na velha capela da minha aldeia escondida numa vertente em abismo para o Douro; de Ti, a quem empenhadamente me devotei, durante anos, ao Teu serviço e, também guiado pela mão de Baden-Powell; de Ti, a quem eu estive quase a seguir pela via, talvez mais curta mas mais duvidosa, do seminário, após fazer o exame de admissão, servindo-te largos anos até que a razão e o entendimento me abriu os olhos para ver o mundo de outro modo; de Ti, a quem neguei lugar no sexto sacramento – o matrimónio – por começar a duvidar que fosses o justo que não perdoa, afinal, antes de primeiro castigar. Nesses tempos de criança eras o meu refúgio das horas amargas quando minha mãe me castigava sem razão aparente para o fazer. Foste quem me inspirou os primeiros poemas ao transformar em versos as orações que Te rezava.

Mas deixa que Te diga, também, que com imensa pena minha deixei de ver em Ti o Pai, mas apenas o Padrasto. Aos poucos, já bem depois dos vinte anos, fui-me afastando de Ti. O primeiro abalo que me fez duvidar de Ti foi quando impediste que a minha primeira filha visse a alegria e a luz do sol que dizem que Tu criaste. Houve na altura quem me dissesse, mais para me acalentar que outra coisa, que os anjinhos iam para o Céu onde tinhas para Eles um lugar especial. E a ela estava reservado esse lugar. Secaram-se-me as lágrimas mas não secou a dor nem se extinguiu a ira que começava a sentir dentro de mim contra Ti. Onde estavas Tu nessa altura enquanto a morte me mostrava o verdadeiro inferno? Quando me nasceram mais tarde as outras duas filhas cheguei até a pensar, dessa minha obra e dádiva Tua, que era tempo de Te reconhecer. E agradeci-Te por isso. Durante algum tempo Te consenti no meu coração. Mas foi sol de pouca dura…

Lembras-Te quando Te negaste, pela mão do Teu pároco Henrique, que se julgava o dono de todos os paroquianos de Numão e aldeias anexas, a reconhecer nos registos paroquiais, como legítima, a minha filha mais velha que a custo, muito custo, lhe deu o primeiro sacramento? Ou antes, lho mandou dar por velho acólito Teu e dele, de outra paróquia diferente, pois preferiu partir em devaneios para o Porto com a sua desavergonhada amante Lídia do que baptizar-me a filha, apenas porque eu estava simplesmente casado com minha mulher num registo civil! Aqui Te comecei a negar a valer! E devo dizer-Te, quase a odiar, até!

Já me faziam sentido aquelas velhas figuras pintadas no tecto da capela da minha aldeia, entre castelos de nuvens, de branco vestidas mas cenho franzido e olhar punitivo. E, para enganar os incautos crentes, rodeadas, tais figuras, de inocentes anjinhos. Velha técnica inquisitória. Como o lobo, que veste a pele da ovelha para lhe comer os tenros e incautos cordeiros. Atormentavam-me os olhares intimidativos dos Teus santos que pareciam voar por sobre as cabeças dos pobres mortais como eu que, se pecassem, deixavam de ir para o céu, como os anjinhos, mas eram atormentados por diabos nas profundezas do inferno. Do Teu inferno, de quem És dono e senhor, pois o inventaste para Teu gáudio e Teu prazer, tal qual inventaste o céu. 

Ainda hoje, em certos momentos da vida, vou até perto de Ti e procuro, no silêncio dos claustros da velha e martirizada igreja de S. Domingos, em Lisboa, a Tua voz que não vem. A Tua voz que já não consegue penetrar as ancilosadas paredes do meu coração. E vou dali, ainda que pareça mais leve da alma, mais pesado do coração e da mente. Arrasto-me, isso mesmo, arrasto-me dali com a sensação de que perdi mais um bocado de mim por não Te encontrar mais uma vez. Apenas o silêncio daquelas paredes me falou, sem nada me dizer de novo, enquanto esperava algo diferente sentado no banco mais longínquo do Teu altar.

Habituei-me a viver cada vez mais comigo mesmo, enfrentando sozinho todas as arrelias da vida. Às vezes, não sei se com excessos de lucidez se com a falta dela, recorria a Ti, em preces mudas, que até deixei de rezar, para me salvares duma ou outra afronta mais grave para a qual parecia não ter solução, nem outra alternativa, sequer. E até chegava a crer que efectivamente me acudias. Mas concluía logo que não. Era tudo ilusório… como os nichos vazios da velha igreja de S. Domingos, onde antes havia santos a velar pelos crentes que se arrastavam de joelhos em oração a seus pés.

Gradualmente e de forma não calculada esqueci-me das orações que minha avó maternal e minha mãe me ensinaram. Até deixei de me benzer. Assistia, sem indignação, a cada noite, ao persignar da minha mulher que, voltada para o outro lado da cama, Te dedicava as suas orações em silêncio mudo. E eu até perdi o hábito de me benzer. Achava que blasfemava benzer-me para fingir que Te amava quando, afinal, há muito Te punha em dúvida. Mesmo quando agonizei durante vinte e dois dias na cama do hospital militar penso que nunca me agarrei a Ti. E se alguma vez o fiz foi pedindo a intercessão de algum dos Teus santos e santas, mas duvido que me tivessem valido. 

Durante a longa agonia do meu pai, naquele velho hospital da Guarda, quantas vezes Te procurei no silêncio da capela? Quantas vezes Te pedi que o não deixasses partir? Quantas foram as mortes desse longo suplício de vinte e tal dias nesse velho hospital? Tu sabes tão bem como eu que “morreu” e “ressuscitou” muitas vezes. Tu sabes como ele me contava, depois de “retornar à vida”, do buraco, do abismo negro e profundo em que caía e que depois se transformava num azul luminoso e fulgurante. E como me dizia, ainda que por poucos minutos, que tinha viajado por um mundo diferente daquele em que sofria. Se lhe davas um sopro de vida por alguns instantes, logo lho retiravas no momento a seguir. Como se por sadismo o fizesses. Dizia-me o Teu velho acólito, das vezes em que nessas alturas era chamado a dar-lhe a extrema-unção, sempre adiada, que era para avaliares a solidez das virtudes daquele que mais amavas. Que forma tão estranha e tão esquisita de amar TU tens!

Bifurcaram-se de vez aqui os nossos caminhos. Perdi, inexoravelmente a fé em Ti, quando perdi minha mãe, crente fervorosa que em Deus acreditava piamente e até se esquecia dos filhos preferindo as dádivas a Ti, com as promessas que o teu acólito padre Henrique lhe fazia de que lhe garantias um lugar nos céus. Sempre ironizei, revoltado, destas oferendas e me ri destas crendices. Oferendas algumas bem chorudas que mais não serviam do que para encher os bolsos ao padre e até me valeram as críticas que então teci, a Ti e a ele, animosidades cerradas da parte dela. E partiu, de um momento para o outro, com aquilo que parecia uma simples dor de cabeça sem Te dares ao trabalho de lhe reservares mais do que seis curtos meses de vida, cinco dos quais no estado vegetativo do coma. 

Diz-me se tenho ou não razão de Te pôr em dúvida, de pôr em dúvida a Tua existência, de me debelar contra a Tua falta de amor se é que existes e o tens para dar. Sei que tenho razão! E Tu também sabes embora não dês o braço a torcer na filosofia medieval e no rigor escolástico dos teus acólitos padres, que mais não fizeram do que apressar-se a dizer que Deus gosta de pôr à prova aqueles que mais ama. As minhas dúvidas são grandes e legítimas acerca de Ti. Deixei de falar Contigo há muito. Mas falo acerca de Ti. Sou alguém que não hesita em dizer que por Ti e em Teu nome se cometeram e continuam a cometer os maiores crimes e atrocidades que devastam a humanidade. Porque não calas Tu de vez a ira desse terrorismo islâmico que destrói esse mundo que criaste? Onde estás Tu que assistes impávido e sereno à mortandade que fazem em Teu nome? Não me venhas dizer que é para pores à prova a fé do Teu povo, que eu não acredito em Ti. És tão sanguinário quantos aqueles que matam em Teu nome. Ou mais sanguinário que eles, por consentires que o façam!

Interrogo-me tantas vezes por isto. E interrogo-me tantas vezes acerca de Ti. Só nestas interrogações me aproximo de Ti mas, estando sempre de cada vez que me interrogo, mais afastado. Somos pólos opostos. Atraímo-nos sem saber porquê. Eu, apenas para Te contestar e negar a existência; Tu, para me fazeres duvidar cada vez mais de Ti, pela Tua ausência em mim de que sou forçado a falar nos meus versos. Vivo sem fé em Ti mas continuo com a fé na vida que me deste. Com fé na liberdade de pensar e de poder dizer o que penso. E quando, enfim, partir deste mundo, se te cruzares comigo noutras esferas, se é que existem, intercepta-me e diz-me se alguma vez tive razão do que pensei de Ti e de mim nestes nossos encontros e desencontros tão duros quão amargos.

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