sábado, 12 de novembro de 2016

A TENTAÇÃO DA ARTE, INSENSATEZ, ESTUPIDEZ E CRIME

JORGE NUNO
Delicio-me quando entro num museu. Adoro absorver, ao máximo, o seu conteúdo, refletir e aprender com o que vejo. É-me indiferente o tipo de museu ou temática abordada, pois em qualquer deles consigo sentir a sua enorme riqueza cultural. É frequente dizer, após cada visita, que saio mais rico, mesmo com a carteira mais leve. Subentende-se, nestas circunstâncias, que o museu terá cumprido a sua missão.

Um dos museus que muito admirei foi o British Museum, uma grande instituição museológica em Londres, com entradas gratuitas. Desde 1759 que delicia quem o visita. Tem peças como a “pedra de roseta”, do Egito Antigo, levada para Londres após a capitulação de Napoleão, quando as suas tropas ocupavam aquele território; ou o conjunto de peças, conhecidas como os “mármores de Elgin”[1], com esculturas da Grécia Antiga, que não deixava de ser um saque a envolver subornos, mesmo que efetuado por um privado e, posteriormente, adquirido pelo governo britânico. Sucessivos governos gregos e egípcios têm feito campanhas para a devolução das obras, mas tudo fica na mesma.

O Museu do Louvre – o mais visitado em todo o mundo – situado em Paris, está cheio de obras riquíssimas, em termos de arte e cultura humana, representando cerca de “oito mil anos da cultura e da civilização, tanto do Oriente como do Ocidente”. Foi muito enriquecido com as peças obtidas nas conquistas napoleónicas. Napoleão sabia bem o que fazia, pois quando preparou a invasão do Egito. Pretensamente, esta teria como objetivo principal exercer maior domínio no Mediterrâneo e cortar a rota usada pelos britânicos para chegarem ao Médio Oriente. No entanto, teve o cuidado de levar consigo aproximadamente 150 cientistas, professores e conhecedores de arte, para fomentar o estudo da antiguidade egípcia e, supostamente, preservar o maior número de peças com valor escultórico e arqueológico. Algumas delas acabariam por ser devolvidas aos países de origem, com a queda do imperador. Certo é que ainda se podem ver várias peças escultóricas assírias, etruscas, egípcias e gregas, entre outras, com vários séculos a.C.

Também Hermann Göring[2], destacado entusiasta do colecionismo, particularmente de arte, foi o impulsionador do plano de Hitler para juntar o maior número possível de obras de arte, que ficariam na posse do estado alemão. Claro, os museus dos países ocupados estiveram nos holofotes do ocupante e do próprio Göring. Este teria acumulado, na sua residência de verão,próximo de Berlim, cerca de 2000 obras de inestimável valor, entre pintura, escultura, peças diversas e tapeçaria, não fosse a guerra ter terminado e ele vir a ser julgado em Nuremberga por “crimes de guerra, onde se incluía a pilhagem e roubo de obras de arte, e outros bens”, além de muitos outros crimes, com inclusão de crimes contra a humanidade. A situação do roubo de obras de arte foi muito bem parodiada na célebre sitcom britânica de sucesso “Allo Allo!”. Retratou a ocupação alemã em França, durante a Segunda Guerra Mundial, em que as tropas invasoras tinham roubado todas as obras de arte da vila de Nouvion, onde o René tinha o café e escondia elementos da resistência. Entre essas obras estava a pintura “A Madonna rendida, com peitos grandes”, que o coronel Von Strohm queria juntar à sua coleção de obras roubadas, apesar de desassossegado pela presença constante do oficial de Gestapo, Herr Flick, que queria encontrar o paradeiro das obras.

Em 2001, Moahmmad Omar, líder do grupo extremista talibã, mandou destruir todas as imagens no Afeganistão, por entender que eram ofensivas. Foram 10 anos, afanosamente, a usar dinamite. Entre essas, estavam duas estátuas gigantes budistas –

Os Budas de Bamiyan –, com cerca de 1500 anos, esculpidas diretamente na rocha de um desfiladeiro. Com 53 e 38 metros de altura, tinham sobrevivo a séculos de guerra.

Em 2003, após a tomada da capital do Iraque pelos militares americanos, que levou à queda do regime de Sadam Hussein, estes não evitaram que iraquianos pilhassem e vandalizassem o Museu Nacional de Bagdad e incendiassem a Biblioteca Nacional, sinal claro de degradação social, económica, moral e até civilizacional de um povo que vivia oprimido. Ainda hoje revivo as imagens obtidas neste museu, relacionadas com a entrada de dezenas de homens e com a directora do museu a tentar afugentar quem pilhava e destruía, com uma coragem a fazer lembrar a freira timorense que afastava os indonésios invasores, esbracejando e gritando “xô… xô…. xô!...”, como se fosse fácil enxotar aquelas “galinhas”. Imagino o sofrimento daquela directora do museu, guardiã de um espólio com vários milhares de anos. 

Quando em 2004 visitei o Museu Nacional de Praga (República Checa), foi-me dito que em agosto de 1968, aquando da invasão por tropas soviéticas para deter a chamada Primavera de Praga, a fachada do belíssimo edifício em estilo neorrenascentista, situado na praça Venceslau, foi bombardeada por tanques, supondo tratar-se do parlamento da ex-Checoslováquia. Recuperada grande parte dos estragos e desconhecendo [eu] o que ficou irremediavelmente perdido, foi outro dos museus que me deliciei a ver, contendo desde objetos pré-históricos a mineralogia, zoologia, antropologia, história, ciências naturais… 

Os protestos contra o presidente e o regime de Hosni Mubarak, em 2011, mesmo perante as armas dos militares, levaram à destruição e vandalização de peças milenárias no Museu Egípcio do Cairo (com decapitação de múmias, como exemplo), mas grupos operacionais sabiam o que lhes interessava e onde estava, tendo efectuado pilhagens, com o intuito de obter lucros, através de marchands e traficantes de arte, o que viria também a acontecer nas estações arqueológicas de Mênfis e Abusir.

Mais recentemente, com a ocupação de um vasto território na Síria e no Iraque, por parte de grupos extremistas do autoproclamado Estado Islâmico, continuou a destruição de preciosidades históricas, com inestimável valor. Aconteceu por todo o lado, particularmente em zonas em que era suposto proteger-se esse património. Foi evidente no Museu de Mossul (Iraque), com a destruição de antiguidades de relevo. Assim como o foi a destruição das ruínas greco-romanas de Palmira (Síria), até aí preservadas e classificada, pela UNESCO, como Património Mundial da Humanidade, tal como outros cinco locais que figuram na lista da UNESCO. Ainda se deram ao cuidado de deixar um vídeo para a posteridade, deixando bem claro o seu fanatismo, através da destruição de estátuas e múmias, assim como da afirmação legendada no vídeo: “Destruímos os ídolos seja onde for, onde quer que os vejamos, destruímo-los, não há mais deus que Alá nesta terra”. 

Um olhar histórico, face aos acontecimentos mais recentes, não impede a polémica: as peças preciosas à guarda dos grandes museus mundiais deveriam manter-se, ou ser devolvidos aos respetivos governos e colocados nos seus locais de origem?

Quanto a lucidez, não é preciso fazer um grande esforço, pois sabemos que os símbolos iconográficos destruídos são, tão só, o património arqueológico mais antigo da humanidade. Assim como os bens materiais – incluindo os alheios, mesmo que gostemos muito de arte – não vão connosco para a cova! Como admiro o pensamento lúcido de Alberto Einstein, que afirmou: “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta”.

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[1] Alusivo a Lord Elgin, de nome Thomas Bruce, embaixador britânico em Constantinopla [Império Otomano], que em 1801 fomentou as escavações em Atenas e “recolheu” várias esculturas, com o intuito de as preservar (alegando que os otomanos mostravam indiferença pela cultura grega) e terá mandado partir muitas dessas esculturas para as fazer chegar a Inglaterra.


[2] Membro do Partido Nazi e militar de alta patente, a quem Hitler terá dito que seria o seu substituto, caso lhe “acontecesse alguma coisa”.

1 comentário:

  1. Uma crónica de inegável valor. Haja quem se indigne com os atentados culturais, feridas inscritas na pele da história e no coração da humanidade.

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