RUI SANTOS |
O conceito de Estado-nação, tal como foi desenvolvido desde o século XVIII, assenta na ideia de uma unidade política e cultural. Stephen Castles e Mark J. Miller referem que: «In many countries, ethnic homogeneity, defined in terms of common language, culture, traditions and history, has been seen as the basis of the nation-state. This unity has often been fictitious – a construction of the ruling elite – but it has provided powerful national myths. Immigration and ethnic diversity threaten such ideas of the nation, because they create a people without common ethnic origins» (Castles e Miller 2009: 15).
De acordo com o raciocínio de João Maria André, pode definir-se o conceito de Estado-nação como «a coincidência de um espaço geográfico e territorial unificado no exercício do poder e das instituições políticas, e de uma população que partilha uma constelação de crenças e de culturas, de língua, de etnia, de memória, costumes e valores relativamente consolidada por um passado histórico» (André 2009: 9).
Pode afirmar-se que o surgimento de sociedades multiculturais suscita importantes desafios às identidades nacionais. Stephen Castles define multiculturalismo da seguinte forma: «O multiculturalismo é um modelo conceptual que define princípios orientadores das políticas públicas e da identidade nacional em sociedades onde se verifica imigração e uma crescente diversidade étnico-cultural. O multiculturalismo significa, de um modo geral, a aceitação pública dos grupos imigrantes e minoritários enquanto comunidades distintas, diferenciáveis da maioria da população através da língua, da cultura e do comportamento social, e que têm as suas próprias associações e infra-estruturas sociais. O multiculturalismo implica o reconhecimento de direitos iguais aos membros desses grupos em todas as esferas da sociedade, sem que exista a expectativa de que abdiquem da sua diversidade, esperando-se, contudo, que se conformem a alguns valores fundamentais (Castles 2005: 132-133).
Ao falar-se de multiculturalismo não se deve inferir que multiculturalismo e sociedade multicultural são sinónimos ou causas diretas, mas ao invés, ter-se presente a distinção que Denys Cuche efetua entre estes dois conceitos: «Não devemos confundir multiculturalismo com o simples reconhecimento da existência de uma sociedade multicultural. Sempre existiram sociedades multiculturais e, de certo ponto de vista, podemos afirmar que, hoje, praticamente todos os Estados-nação são, queiram ou não admiti-lo, sociedades pluriculturais, devido precisamente à variedade dos grupos e das populações que os compõem. Nas grandes metrópoles contemporâneas, o espectáculo da diversidade cultural dá-se a ver praticamente em todo o lugar e a todo o momento» (Cuche 2006: 166).
É de vital importância ter-se a noção da distinção entre «multiculturalismo» e «sociedade multicultural», do quanto diferentes eles são por vezes. Não efectuar esta distinção é da conveniência de muitos governos que se escudam no facto das suas sociedades serem multiculturais para afirmarem que possuem práticas multiculturais e dessa forma desviarem as atenções que recaiam nos seus Estados.
Actualmente, ocorre um processo de erosão dos grandes Estados-nação do século XIX. Este processo teve o seu início na segunda metade do século XX – na sua origem estiveram factores económicos e políticos –, e provocou o surgimento de uma nova geografia político-cultural, constituída por estados que acolhem no seu seio importantes comunidades de etnias e nacionalidades diferentes ou Nações que se dispersam por diferentes Estados.
As migrações têm um papel importante no desgaste, na erosão do estado-nação. O controlo fronteiriço – um dos pilares em que assenta a soberania do Estado-nação – é uma das áreas em que este fenómeno é particularmente evidente. A razão pela qual muitas pessoas se veem obrigadas a deslocarem-se para o estrangeiro na busca de melhores condições de vida, mostra «a incapacidade do Estado para suscitar o desenvolvimento económico, o que pode gerar uma crise de confiança» (Castles 2005: 38).
Com o advento da globalização, os transportes tornaram-se mais baratos e as comunicações facilitadas, o que provoca uma maior dificuldade em controlar o número de migrantes que, impulsionados pelas mais distintas motivações, se deslocam. Estes movimentos migratórios transfronteiriços questionam a soberania nacional, enquanto a emergência de populações multiculturais é, por muitos, tomada como uma ameaça às identidades nacionais. A respeito disso, Ortelinda Gonçalves afirma: «Com a globalização, as migrações internacionais e a construção de uma cidadania europeia, aprendemos a conviver/comunicar com a diversidade, numa óptica de enriquecimento. Contudo, torna-se necessário uma maior compreensão e análise destas mudanças ocorridas na sociedade, em contexto de globalização, para a construção de processos, em vários domínios, promotores da igualdade de oportunidades, que possibilitem a redução das assimetrias internas territoriais e o aumento do bem-estar social» (Gonçalves 2009: 17).
Esta nova realidade faz esmorecer a ideia de que um indivíduo pertence apenas a um Estado-nação. Num mundo com uma economia cada vez mais global, torna-se difícil colocar as fronteiras abertas a movimentos de informação, de mercadorias e de capital, e fechadas às pessoas. A maioria dos Estados acolhe positivamente turistas e estudantes e favorece os mercados internacionais de trabalho de profissionais de elevadas qualificações, mas procura, por outro lado, limitar os fluxos de trabalhadores manuais, de membros da família e de requerentes de asilo, o que representa um contrassenso.
A Europa depende, desde a sua origem, de um multiculturalismo materializado em diversidades linguísticas, institucionais e culturais. O actual projeto político europeu não pode, nem deve, ignorar esta pluralidade na qual se exprimem e se impõem as diferentes culturas nacionais. Quando se pensa na criação de novo espaço político europeu, tem de se considerar a constituição de um novo modelo social, nomeadamente um modelo de sociedade multicultural fundado em princípios estabelecidos pelos contributos de diferentes culturas nacionais e/ou minoritárias, tendo em vista a criação de uma cultura comum europeia.
Apesar das políticas de imigração e de integração pertencerem às diversas competências nacionais é desejável que as populações resultantes da imigração, que revelam pertenças distintas das dos Estados-nações de residência, encontrem apoio neste novo espaço político em construção, de identidade incerta, para a promoção das suas identidades coletivas, sejam elas religiosas ou nacionais.
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Leitura de apoio:
André, João Maria (2009): Interpretações do Mundo e Multiculturalismo: Incomensurabilidade e Diálogo entre culturas. In: Revista Filosófica de Coimbra, Vol. 18, Nº. 35. (pg 7-42). Disponível emuc.pt/fluc/dfci/public_/publicacoes/interpretacoes_do_mundo
Castles, Stephen (2005): Globalização, Transnacionalismo e Novos Fluxos Migratórios. Lisboa: Fim de Século.
Castles, Stephen, e Miller, Mark J. (2009): The Age of Migration. Basingstoke: Palgrave Macmillan
Cuche, Denys (2006): A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. Lisboa: Fim de Século
Gonçalves, Ortelinda (2009): Migrações e Desenvolvimento. Porto: Fonteira do Caos.
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