quarta-feira, 17 de agosto de 2016

SOBRE A IDENTIDADE CULTURAL EUROPEIA

RUI SANTOS
A ideia de identidade cultural europeia não é normativa, mas o tempo e os processos sociais geram cânones que perduram ao longo dos séculos. De acordo com Vasco Graça Moura, identifica-se instintivamente um conjunto de valores, exclusivos da Europa, ligados à cultura, «Criadores como Dante e Petrarca, Ronsard e Camões, Shakespeare e Racine, entre muitos outros que poderíamos ir buscar às restantes artes e a todas as nações europeias embora em períodos diferentes, nunca esconderam a sua dependência dos grandes modelos clássicos gregos e latinos, agregando-lhes importantes linhas de inspiração bíblica, tudo isto com grandes intervalos de tempo entre si e a muitos séculos de distância do aparecimento originário de tais modelos. Através dos tempos, dos espaços, das línguas e das diversidades étnicas, foram ocorrendo fenómenos a que quadra bem o nome de manifestações dessa identidade cultural. O mesmo aconteceu noutras áreas do pensamento humano, das ideias políticas à filosofia, à ciência e à técnica» (Moura 2013: 23).

Tony Judt defende que a Europa tem consciência dela própria, e que como tal ser europeu é «possuir uma identidade bastante mais precisa do que aquela associada a pessoas que são “africanas”, ou “asiáticas” ou “americanas” em virtude da sua origem geográfica. Apesar de tentativas esporádicas para se construir uma consciência “pan-africana”, os povos de África, por exemplo, estão unidos por pouco mais do que a experiência comum do colonialismo. Em contraste, a “europeidade” é algo por que os povos da Europa são responsáveis. Entre a sua contiguidade demográfica e o seu passado comum, parecem partilhar algo nativo e fundamental» (Judt 2013: 53).

E a que elementos de partilha se refere Judt? Que elementos, que características distintivas da Europa se verificavam antes da modernização? Segundo o raciocínio de Samuel P. Huntington, são seis as características que contribuem para a especificidade da identidade europeia:

1) O legado clássico – A Europa moderna, contemporânea, herdou muito das civilizações anteriores, nomeadamente da civilização clássica: a filosofia grega e o racionalismo, o direito romano, o latim e o cristianismo, por exemplo;

2) Catolicismo e protestantismo – O cristianismo ocidental, inicialmente sob a forma de catolicismo e depois de catolicismo e protestantismo, é, historicamente, a característica singular mais importante da Europa. Durante o seu primeiro milénio de existência, o que de facto é agora reconhecido como civilização ocidental era designado por cristandade ocidental; entre os povos cristãos ocidentais existia um sentimento de comunidade bem desenvolvido. A Reforma e a Contra-Reforma e a divisão da cristandade ocidental – Norte protestante e Sul católico –, são características próprias da história europeia;

3) Línguas europeias – À semelhança da religião, a língua é um fator que permite distinguir diferentes culturas umas das outras. A Europa herdou o latim, mas emergiram uma série de nações e, com elas, as línguas nacionais agruparam-se, sem grande rigor, nas categorias abrangentes de românicas e germânicas. Regra geral, estas línguas assumiram no século XVI as suas formas contemporâneas;

4) Separação da autoridade espiritual da temporal – Ao longo da história europeia, primeiro, a Igreja Católica e, depois, muitas outras confissões religiosas existiram independentemente do Estado. Deus e César, Igreja e Estado, autoridade espiritual e autoridade temporal, têm sido um dualismo predominante na cultura ocidental. Não se pode negar que esta separação de poderes contribuiu imenso para o desenvolvimento das liberdades na Europa;

5) Primado da lei – Esta característica foi herdada dos romanos e refere que a lei desempenha um papel central numa existência civilizada. Os pensadores medievais desenvolveram o conceito de lei natural, de acordo com o qual os monarcas deviam exercer o seu poder, e na Inglaterra, desenvolveu-se uma tradição de common law. No entanto, durante a fase do absolutismo na Europa, isto é, nos séculos XVI e XVII, o primado da lei era mais uma ficção do que uma realidade. Contudo persistia a ideia da subordinação do poder humano a um certo tipo de constrangimento externo;

6) Individualismo – O individualismo desenvolveu-se nos séculos XIV e XV e a aceitação do direito de opção individual prevaleceu durante o século XVII. Mesmo as reivindicações de direitos iguais para todos os indivíduos foram claramente enunciadas, embora não universalmente aceites. Ainda hoje o individualismo continua a ser um sinal distintivo da Europa, embora não exclusivo (Huntington 2009: 79-81).

A importância dos valores e dos bens – materiais e imateriais – pertencentes à cultura é sublinhada por Moura que considera aqueles desempenharem um papel preponderante e não displicente não só nas identidades nacionais mas também na identidade europeia, «São eles que nos permitem reconhecermo-nos como pertencendo a uma nacionalidade e ao mesmo tempo a um conjunto civilizacional. São eles que, no nosso caso concreto, nos permitem reconhecermo-nos enquanto europeus e bastaria isso, por si só, para justificar a sua importância na construção europeia» (Moura 2013: 80).

Para que consigamos perceber a identidade europeia, Guilherme d’Oliveira Martins considera que depois de uma leitura de obras centrais da cultura europeia, verificamos estar defronte de uma série de referências de caráter universalista: «A Bíblia, a Odisseia, a herança de Sócrates e a obra de Platão e de Aristóteles, as Confissões de Santo Agostinho, A Divina Comédia de Dante,O Elogio da Loucura de Erasmo, Guerra e Paz de Tolstoi, A Montanha Mágica de Thomas Mann não são obras exclusivamente europeias, abrem caminhos que não se confinam a fronteiras fechadas ou a limites redutores. A cultura europeia, no seu sentido cosmopolita, paradoxal e heteredoxo, aponta, para a recusa de um eurocentrismo fechado. O reconhecimento da importância da pessoa humana (do grego “prosopon”, que significa a máscara do teatro) põe a tónica na dignidade universal da pessoa humana e nas identidades colectivas como “pessoas de pessoas”. Daí a importância do reconhecimento das diferenças e da valorização do diálogo entre culturas e civilizações, não como a oposição das diferenças, mas como o enriquecimento mútuo» (Martins 2013: 286).

A Carta da Identidade Europeia, sugerida por Vaclav Havel e discutida e votada no 41º Congresso da Europa-Union Deutschland (organização não governamental defensora do federalismo europeu) a 28 de Outubro de 1995, considera a Europa como uma comunidade de valores e valorizando a tolerância, o humanismo e a fraternidade. Zygmunt Bauman refere a propósito da Carta da Identidade Europeia o seguinte: «Os autores do documento admitem que no passado, em mais de uma ocasião, a Europa chegou a violar estes valores com toda a leviandade; não obstante, manifestam a sua esperança de que, ultrapassadas as penosas realidades do nacionalismo, imperialismo e totalitarismo sem freio, a Europa regresse a tais valores e os empregue na sua luta por relações internacionais assentes na liberdade, na justiça e na democracia. Os autores acrescentam ainda que “Europa” significa também uma comunidade de responsabilidade. A Europa é obrigada a partilhar as suas experiências e as respectivas lições com o resto da humanidade. A sua missão, e o seu dever, é contribuir de uma forma activa para a solução dos problemas globais através da cooperação, da solidariedade e da união, e também através dos seus exemplos de sacralização dos direitos humanos e da corajosa defesa dos direitos das minorias». (Bauman 2013: 351)

Apesar de tudo o que já foi referido até aqui, são várias as personalidades europeias que ao longo dos anos têm colocado algumas objeções à ideia de identidade europeia. Delanty refere alguns desses casos que de forma mais ou menos veemente têm revelado o seu ceticismo: «Massimo Cacciari descreve a Europa como um arquipélago de espaços ligados por vários elos; é uma rede de diferenças, um mosaico de sobreposição e conectando diversidades; ele não tem uma unidade abrangente, mas ligações. Num espírito semelhante, Rémi Brague argumentou que o Europeu unicamente pode ser encontrado na natureza da transmissão da cultura, em vez de qualquer conteúdo cultural específico. Europa baseia-se em uma forma cultural particular, que transforma aquilo que ele assume, mas ele não tem uma cultura própria. A essência da Europa é a sua capacidade de transformar a cultura. Esta é uma leitura da cultura europeia como já descentrada, "excêntrica" e contendo alteridade dentro dela. Para Brague, a Europa não pode ser definida pela geografia, pela política, ou por uma ideia platónica desencarnada. Não é um lugar ou uma ordem política particular, mas um modo de comunicação cultural» (Delanty 2003: s/p).

Quem também partilha o ceticismo de Delanty é José Maria Rodrigues da Silva que é de opinião que o projeto europeu continua inacabado pois a Europa «ainda não conseguiu definir um núcleo cultural que seja a matriz comum a todos os Estados membros e sirva de ponto de partida para a formação de uma identidade própria nem conseguiu fazer passar a ideia de que os órgãos que exprimem a sua vontade exercem o seu poder de decisão» (Silva 2014: 110-111). Na mesma linha de raciocínio, Almeida coloca algumas objeções sobre a existência de um cimento que una os europeus, sobre a existência de uma identidade cultural comum: «Não existe nada de comum entre os europeus, à excepção do Catolicismo, mas até isso aconteceu só até à primeira cisão, quando ocorreu o Cisma Ortodoxo, ao qual se seguiu, séculos depois, a imensa divisão da Reforma. Para além disso, não é difícil demonstrar que a Cristandade tem muito pouco em comum com as culturas clássicas grega e romana.

Efectivamente, ao tentarmos conceber a Europa como uma unidade baseada num passadocomum (e reforço: comum), não encontramos nada disso. Talvez a guerra. Mas até as muitas línguas faladas constituem o sinal mais óbvio de que os países da Europa não têm nada em comum» (Almeida 2013: 76).

Como se verifica pelas posições assumidas pelos autores referidos, não existe uma opinião consensual sobre a identidade cultural europeia embora, como refere Sloterdijk, seja de vital importância que os políticos europeus encontrem mais informações relativas à dramaturgia da história europeia e adquiriram claras orientações proféticas para dessa forma a Europa poder olhar de forma confiante para o seu futuro (Sloterdijk 2008: 45). É urgente que a Europa descubra se possui uma identidade cultural. É vital para o futuro dos europeus que a Europa se prepare da melhor forma para lidar com os desafios que lhe são colocados no arranque do século XXI.

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Leitura de apoio:
Almeida, Onésimo T. (2013): “O despertar do Iluminismo ou a condenação da modernidade como a única saída para a identidade europeia”. In: Franco, José Eduardo e, Cieszynska, Béata e Pinheiro, Teresa (org),Repensar a Europa – Europa de Longe, Europa de Perto. Lisboa: Gradiva, 75-84.
Bauman, Zygmunt (2013): “Tornar o planeta acolhedor para a Europa”. In: Franco, José Eduardo e, Cieszynska, Béata e Pinheiro, Teresa (org), Repensar a Europa – Europa de Longe, Europa de Perto. Lisboa: Gradiva, 351-354.
Delanty, Gerard (2003): “Is There a European Identity?”. Centre for World Dialogue. Internet. Disponível em
Huntington, Samuel P. (2009): O choque das civilizações. Lisboa: Gradiva.
Judt, Tony (2013): Uma grande ilusão?. Lisboa: Edições 70.
Martins, Guilherme d’Oliveira (2013): “Que cultura para a Europa?”. In: Franco, José Eduardo e, Cieszynska, Béata e Pinheiro, Teresa (org), Repensar a Europa – Europa de Longe, Europa de Perto. Lisboa: Gradiva, 283-287.
Moura, Vasco Graça (2013): A Identidade Cultural Europeia. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Sloterdijk, Peter (2008): Se a Europa Acordar – Reflexões sobre o Programa duma Potência Mundial no Termo da sua Ausência Política. Lisboa: Relógio D’Água.

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