RAUL TOMÉ |
Podem chamar-me Velho do Restelo, pouco me importa. Não quero acompanhar os tempos, não quero modernizar-me nem globalizar as minhas raízes e o meu Portugal que, de tão genuíno, é apreciado além fronteiras.
Estava eu ontem, sentado no sofá, confortavelmente recostado, quando ouvi o tocar da campainha. Levantei-me de um salto, perguntei quem era e fui trespassado no meu orgulho nacionalista quando, do outro lado da porta, ouvi a frase "doçura ou travessura".
Era eu miúdo no decorrer dos anos 80 do século passado e lembro-me do cheiro das manhãs húmidas de novembro, sempre que a chuva atraiçoava o amado verão de São Martinho. O Dia de Todos os Santos era marcado pela romaria de miúdos que andavam pelas ruas aos magotes.
A manhã começava cedo, por volta das 8 e terminava por volta das 13, hora em que corríamos em direção a casa para separar cada um dos doces de acordo com a sua pertença . O saco de pano, que durante o resto do ano servia para transportar pão era, nesse dia, alforge para as mais variadas gulodices. Rebuçados de todas as cores e formatos, línguas de gato, beijinhos, chocolates (que eram mais raros) e, naquela casa dos senhores ricos, caía todos os anos uma moeda de 100 escudos que se misturava, sem nojo, por entre os apetitosos e desejados biscoitos.
Em cada porta que batíamos dizíamos "pão por Deus"… por vezes mal nos conseguíamos ouvir porque, em todas as portas, de todas as ruas, todos gritavam "pão por Deus, pão por Deus, pão por Deus".
Nem a velha Donzília faltava. Senhora pobre e pouco dada a vergonhas, já que a fome não é dada a orgulhos, misturava-se no meio da criançada e, de saco de plástico na mão, também ela gritava de porta em porta, abrindo o saco, aceitando tudo o que lhe dessem.
Não andávamos mascarados, não batíamos às portas na noite de 31 de Outubro. Éramos puros e singelos, sem americanismos pós-modernos e imbuíamos dos nossos pais, e de modo totalmente inato, todas as tradições que eles nos transmitiam.
Mas os pais dos miúdos de hoje, são os miúdos de ontem que, tal como eu, andaram, de saco na mão, batendo de porta em porta, pedindo pão por Deus.
Não sei em que momento é que esta tradição se perdeu, nem porque é que achamos que o que é nosso é ridículo e que o que é dos outros é mais interessante.
Não sei em que momento o mundo evoluiu nem porque é que envelheci sentado no Restelo, mas sinto-me bem aqui, a olhar o rio e a recordar o menino que um dia fui e que hoje volta à tona, refletido nas águas do Tejo, nesta manhã solitária e soalheira do primeiro de Novembro e que para mim será, para sempre, o dia do "Pão por Deus".
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