domingo, 12 de novembro de 2017

INEXISTÊNCIA

MIGUEL GOMES
A tarde vai-se cedo para que a noite de inverno, ainda que outonal, traga a matiz oblíqua do distante astro e me faça perder uns segundos a apreciar as partículas de pó que volitam no vazio, cada vez mais vazio, que permeia o que sou e o que me rodeia. No nada, há espaço para mais algum inexistente?

Antes de subir o ocupar o espaço, um pouco como se me deslocasse por entre um fluído que se torna mais espesso à medida que envelhecemos, ou a paciência se nos esgota, vejo a mesma sombra de outrora, agora mais senhora de si, encostada às paredes velhas da oficina velha, aos meus olhos talvez sombrios, por isso velhos. 

Nas mãos, depois de as sacudir sobra o cheiro a verniz, os dedos algo sujos percorrem algumas teclas cegas e gastas, as mesmas que mais primo quando digito. Será que temos partes igualmente gastas, nos locais onde a vida nos prime?

O Outono espreguiça as nocturnidades e obriga a luz adormecida a acordar cada vez mais cedo. Cá entre nós, nada disto incomoda, apenas o divagar me deixa um pouco inquietado pela tendência borboleteadora do meu pensamento, mas como poderei manter uma sequência lógica quando ao meu lado direito, sobre um velho pano de cozinha com padrões desusados e cores desnudadas estende-se o sabor ameno de um chã quente na cerâmica vidrada de uma caneca, cuja peculiaridade é ter uma seta no sentido ascendente, não fosse eu esquecer-me onde colocar os lábios gretados. Mas, como referi, nada disto apoquenta até porque não vou ler isto. Nem tu.

Tiro a gorjeta do bolso, logo pago eu as castanhas. O ritual repete-se, tenha eu 11 ou 41 anos, depois de um dia de trabalho a lazer que se compacta em duas ou três horas, entre embrulhar (ou encelofanar), carregar, acomodar e proteger, rir e praguejar não necessariamente nesta ordem, percorrer uns quantos metros que converto em quilómetros para a distância parecer menor, passar em terras cujo nome não decoro para me deliciar mais tarde, quando vir novamente as placas na estrada, com a estranha nomenclatura atribuída ao lugar ou freguesia.

Para trás ficaram os olhares dos esplanadeiros do café, o sorriso desdentado da senhora que me saúda e se desculpa “se tivesse saúde ajudava-o a levar isso”, o ingrime carreiro e o suor escorrido, as lentes embacias, a roupa colada ao corpo. Ficaram ainda a trindade menina senhora avó mais nova que eu, o pequeno que espreita por detrás das próprias mãos “já acabou o barulho?”, o chão deformado e os pequenos e brincalhões gatos que teimam em subir-me pelas pernas acima, agarrados com aquelas afiadas agulhetas a que chamam garras. O caminho mostra-me uma velha casa de pedra, um espigueiro que cobiço e meço mentalmente, caberei eu lá? 



Por entre folhagem ocre de um incêndio, uma senhora sorridente carrega uma criança que parece apontar para as cinco ovelhas pintalgadas que pastam no verde socalco abaixo, alheias ao mundo, talvez porque saibam que até este se carrega já cansado, por nós moribundo.

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