"A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico; significa, numa palavra, a conquista da liberdade.E para atingir esse cume elevado, acessível a todo o homem, como homem, e não apenas a uma classe ou grupo, não há sacrifício que não mereça fazer-se, não há canseira que deva evitar-se. A pureza que se respira no alto compensa bem fadiga da ladeira. "
Bento de Jesus Caraça, A Cultura Integral do Indivíduo, Editora Gradiva, 2008
REGINA SARDOEIRA |
Não me tornei professora de imediato, logo que terminei o curso, porque, de facto, não era para aí que eu tendia. Pelo contrário.
Fiz uma experiência isolada, de professora de Francês, numa escola preparatória em Braga, antes mesmo de ter a licenciatura e, ao contrário de outros que começaram a leccionar, antes de concluir os estudos e puderam prosseguir, eu não quis. Mais: nesse ano, prometi a mim mesma, nunca mais leccionar, nunca mais ser obrigada a postar - me à frente de uma turma para ensinar fosse o que fosse.
Percebi, durante esse ano lectivo, que estava tudo errado no sistema de ensino. Vejamos, então , o resumo do que me aconteceu.
Estive, logo na primeira semana do ano, numa acção de formação, cujo objectivo era mostrar aos docentes como ensinar francês a crianças dos 5° e 6° anos. E era assim: no primeiro ano de ensino da língua, o professor nunca falava português, exprimia - se exclusivamente em francês, procurando, através de gestos ou outros sinais, que os alunos o entendessem e repetissem o que iam entendendo. No primeiro período, a leitura e a escrita não eram permitidas, limitando - se o ensino da língua à oralidade. Era necessário recorrer a múltiplas formas, gráficas ou ilustrativas, para que eles tivessem uma ideia da sonoridade da nova língua e fossem assimilando os nomes para os objectos ou as fórmulas comuns da conversação no quotidiano. No segundo período, iniciava -se, então, a leitura e a escrita, e o recurso predominante era um livro - um manual - que seguia a vida de uma família - os Dupont - com destaque para duas crianças e um cão : Robert, Nicole e Patapouf.
Começava, então, outro tipo de luta. Se, no período anterior, era difícil tornar as frases perceptíveis, recorrendo a imagens e gestos, quando se passava à leitura e à escrita as dificuldades redobravam.
Os alunos já conheciam os protagonistas do seu instrumento de trabalho. O objectivo, doravante, seria aprenderem a tratar, por escrito, todas as designações, antes papagueadas. E isso exigia - lhes um esforço para o qual não estavam preparados.
Sabiam que "sim" , em português, soava "ui", em francês; que, quando se apontava a imagem do menino, dizendo: "C'est Robert", lhes soava "Sé Rober". E por aí adiante.
Durante o resto do ano foi uma luta para lhes fazer assimilar, agora correctamente, ao contrário do que havia, naturalmente, acontecido nos três meses anteriores, a fonética diferente da língua e a sua grafia.
E eu concluí. "Muito bem: efectivamente, uma criança aprende, primeiro, a falar e imita os sons que ouve, até conseguir assimilar a língua e formular, ela própria, frases originais. Mas, com dez anos, já conhece a escrita, já sabe ler na sua língua materna e, com toda a naturalidade, interioriza os sons da língua estrangeira,visualizando -os, mentalmente, à semelhança do modelo conhecido. E então, "oui" é "ui" ; "C'est Robert" é "Sé Rober". Dificilmente se habituavam a escrever estas e outras palavras e expressões de modo correcto.
Pelo que observei nos alunos do 6° ano, a necessária aprendizagem, com a reversão dos defeitos que três meses de oralidade haviam criado, da fonética e grafia correctas não era conseguida de forma completa. E os resultados dos alunos ou a motivação para a aprendizagem de uma língua estrangeira eram diminutos.
Alguns diziam -me: "Não quero aprender francês, porque não vou para França! " Eu argumentava, dizendo -lhes ser necessário e importante conhecer outras línguas, falava -lhes de cultura geral, etc. Mas mediocremente os ia convencendo.
No final desse ano frustrante, por esta e por outras razões, percebi que o ensino deve dar aos alunos instrumentos que permitam facilitar - lhes a compreensão de si mesmos e dos outros; e que, mais especificamente, aprender uma língua desse modo, contribuindo para a criação de imagens mentais distorcidas das palavras, mais tarde corrigidas, constituía um erro. E foi por isso que, a certa altura, decidi esquecer o método presenciado na acção de formação do início do ano e recorrer à língua materna para lhes explicar as diferenças.
Eu era muito jovem, na altura, mas aquela experiência permitiu - me compreender as deficiências alarmantes de um sistema de ensino retrógrado que, apesar de tudo, era apresentado como novo e inovador. Percebi que nada mudara, de essencial, relativamente aos métodos usados no meu tempo de estudante do liceu e, provavelmente, ainda antes.
Alguns anos mais tarde, já concluído o curso, e depois de uma experiência profisissional pouco interessante, aceitei, com alguma preocupação, tendo por critério essa primeira experiência docente, regressar ao ensino.
Para meu desespero, o meu horário tinha turmas de 5° e 6° ano, a quem leccionaria Português, e outras de 10º e 11º, a quem daria Filosofia. Mas, contrariamente às piores expectativas, esses primeiros anos de ensino, em nada se compararam à minha experiência de Braga. Durante anos pude dar aulas ao meu modo, principalmente quando assumi em pleno a minha função de professora de Filosofia.
Compreendi que o programa me permitia amplas abordagens e ainda que poderia pôr o aluno no centro, estimulando nele a capacidade de pensar por si mesmo, construindo a sua própria visão do mundo, em ordem a uma posterior integração humana e social. Aboli o manual : éramos nós - eu e os alunos - que o íamos fazendo, aula após aula, registando cada lição num caderno, cuja leitura era o ponto de partida para o dia seguinte (ainda conservo esses cadernos, onde cada aluno da turma resumia, e comentava, porque eu estimulava -os nesse sentido, o cenário das aulas.).
Lembro - me da preocupação dos meus alunos quando surgiu a obrigatoriedade das provas globais e eles perceberam que, contrariamente aos colegas, não seguíamos um manual e até divergíamos na calendarização dos conteúdos. Ora, a prova seria igual para todos e corrigida, sob anonimato, por qualquer um dos professores. Eu sossegava-os: "Não se preocupem : no fim, perceberão que estão em vantagem!"
E assim foi: as melhores notas das provas globais eram as dos meus alunos!
Aos poucos, porém, tudo foi mudando. As "inovações " introduzidas transformaram o ensino da Filosofia numa fraude : já não era necessário aprender a pensar autonomamente, a crítica fora abolida, chegaram os itens de escolha múltipla e os enunciados, repetidos, de cor, a partir do manual, garantiam boa nota no exame nacional (ele próprio, uma tremenda aberração. ).
Enquanto pude, lutei contra esse estado de coisas. Quando deixei de o conseguir e fiquei em minoria, num contexto de aceitação passiva do descrédito da autonomia do pensamento, não somente em Filosofia, mas no sistema de ensino como um todo (porque eu fui observando sempre o que se passava à minha volta ), arrumei armas e bagagens e voltei a sentir o incómodo da minha primeira experiência de professora, do manual de Francês, "Je commence", e da família Dupont, com o Robert, a Nicole e o Patapouf.
Soube então que tudo terá que mudar, principalmente os "programas" das "disciplinas " , a atitude e formação dos professores e até os espaços das aulas, onde todos se sentem desconfortáveis e alienados. A vida começa, exactamente, à saída dessas salas descaracterizadas, com mesas, cadeiras, secretária, quadro (que até pode ser interactivo ) projectores de vídeo, etc. Fui percebendo que os powerpoints ficaram, progressivamente, obsoletos e arrumei-os; que mostrar filmes era uma manobra de diversão e que dificilmente poderia estabelecer -se uma articulação entre o filme e a "matéria" - e deixei - os para trás; que de pouco servia apelar à capacidade crítica ou construtiva dos alunos porque, no final, o importante, mesmo, era saber os conteúdos, de cor, embora escassamente compreendidos.
Ainda tentei ser a professora de outros tempos ou (quem sabe?) a do futuro. Uma vez por outra, dava uma aula viva, questionava os alunos, mostrava -lhes o seu próprio poder e a vantagem de descobrir novos rumos. Percebia, nessas horas, um fulgor diferente nos olhos dos jovens, habitualmente baços e vazios. Eles diziam - me : "Gostámos muito desta aula; porque não são todas assim?" Era obrigada a reconhecer :"Eu sei. Mas deste modo é impossível dar o programa e preparar-vos para o exame."
Eu sabia que estava a enganá -los e que nenhuma daquelas aulas, extraídas de um manual desfasado da vida, tinha o mínimo interesse . Eu sabia que o objectivo do ensino não pode ser o resultado, ou seja, as notas obtidas nos testes, nos exames e as médias. Cheguei a dizer -lhes, perante a estupefacção geral, que ficaria muito orgulhosa deles caso tirassem zero no exame e bastante desgostosa se tirassem vinte. Houve alunos que me compreenderam e fizeram as provas pela própria cabeça : mas os correctores, comandados por critérios, descritores e demais orientações, não deram a esse esforço a menor oportunidade.
Agora observo a escola a partir de fora. Vejo exactamente o mesmo: hordas de estudantes desmotivados, hordas de professores sem esperança, o tempo útil passado em salas com filas de estudantes sentados e o professor à frente. Nada de muito importante acontece nessas salas, com esses protagonistas. E creio que todos o sabem. Porque aquilo que realmente conta está fora das salas de aula, no mundo complexo e em contínua e avassaladora mudança, e muito pouco do que é ensinado ou aprendido corresponde à vida na sua intensidade.
Há solução para esta enfermidade da escola, dos seus protagonistas e do sistema de ensino em geral? Há. Mas é necessário romper o paradigma de uma vez por todas. Eu diria (e penso - o há muitos anos) que, no limite, deve suspender - se toda a actividade lectiva, durante, pelo menos, um ano, conduzir professores, alunos, encarregados de educação e, também no limite, os demais sectores da sociedade - porque, de uma forma ou de outra, todos são responsáveis pela escola - a uma profunda reflexão, antes de mais, seguida da acção tendente a fazer do ensino o que ele deve ser. E acima de tudo é a formação do homem integral o que hoje mais importa - e, afinal, sempre importou.
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