segunda-feira, 20 de novembro de 2017

A CONSCIÊNCIA CÍVICA E AMBIENTAL DAS MULHERES FELUPES

CRÓNICA DE JOANA BENZINHO
A praia de Varela fica na região de Casamansa, a parte guineense que faz fronteira com o Senegal. Ali, um pequeno curso de água separa as margens dos dois países e dois povos que, apesar das diferentes nacionalidades que a herança histórica lhes atribuiu, partilham uma mesma etnia, a Felupe, e lembram recorrentemente a quem os interpela o facto de serem um só povo dividido por vontades alheias. É uma gente guerreira, que tem ainda em si a arte da caça com arco e flecha, agora substituída pela arma de fogo quando as posses assim o permitem, e não é raro cruzá-los na beira da estrada com uma gazela às costas pronta para servir de refeição à família alargada que habitualmente patilha a mesa ou a quem a queira comprar. Pessoalmente já partilhei o assento de trás de um carro com uma gazela paga ao preço da chuva pelo condutor, para seguir para a capital. Mas isso são outras histórias.

Nesta praia de Varela, existe um importante depósito de jazidas de areias pesadas, muito cobiçadas por empresas estrangeiras, nomeadamente chinesas e russas, que obtiveram em tempos diferentes a concessão da exploração desta extração. Uma concessão polémica, com o governo a ser acusado por ambientalistas e pela sociedade civil de não ter feito nenhum estudo de impacto ambiental, mas que acabou por avançar. Em 2013, pude testemunhar a maquinaria russa instalada e a funcionar em pleno, com os camiões carregados de areias a destruir a já de si frágil picada de 53km que liga Varela a São Domingos e ao alcatrão que nos leva até Bissau ou ao Senegal, ali mesmo ao lado.

AREIAS PESADAS
Com a exploração das areias, começou a ser evidente o impacto ambiental negativo na paisagem. As águas subterrâneas começaram a ser afetadas pela salinização o que provocou a destruição e a fragmentação dos habitats naturais da fauna terrestre e marinha. As bolanhas, campos onde é cultivado o arroz que funciona como base e sustento da alimentação, começaram a ser inundadas por água salgada, o que as tornou inaptas para o cultivo. O peixe, por outro lado, começou a dar à margem, sucumbindo aos produtos químicos com que se procedia à lavagem das areias pesadas. As árvores que cresciam aqui e ali nas dunas e que davam frutos com que as mulheres faziam sumos e infusões, foram arrancadas da terra por máquinas que alargavam a passagem para os camiões. E lá no fundo da praia de Varela, para quem se aventurava para lá da bonita praia de Niquim, viam-se os montes de areia escura resultante da lavagem, as máquinas a trabalhar ininterruptamente e a lagoa de água de cor quase carmim que tinha ar de tudo menos de permitir vida dentro de si.

Foi este o quadro que encontrei em 2014, numa das minhas frequentes passagens por Varela e que me foi descrito e confirmado pela voz de um grupo de mulheres Felupes que se uniu em torno da defesa do seu meio ambiente.

Estas mulheres, enraízadamente animistas, tinham acabado de fazer um "manjo" junto do local onde trabalhavam as máquinas e tinham deixado tudo num alvoroço. Armadas com catanas com que cortaram as folhas das palmeiras, chegaram junto dos funcionários numadança frenética com as saias levantadas ao som de inflamados cânticos, e quiseram com esta cerimónia convocar os deuses para proteger a sua aldeia e o seu sustento. Perante a estupefação dos técnicos russos ali presentes, os funcionários guineenses levaram a sério a ameaça dos espíritos ancestrais convocados e abandonaram imediatamente o local, recusando-se a trabalhar. Foi um alvoroço total que culminou em simultâneo numa parte legal mais estruturada, sob a forma de uma providência cautelar, que suspendeu a extração das areias.

Não me ocupo aqui do ponto de vista legal desta concessão, que daria muito que escrever e falar. Ocupo-me sim, da consciência ambiental e cívica destas mulheres que encontrei à volta de uma mesa em que preocupadas pediam ajuda para defender a sua praia de Varela. Diziam que lhes tinha sido prometida a construção de um hospital, de uma escola e o asfaltamento da estrada, que à data (e ainda hoje) tinha mais buracos que áreas planas. Foi por acreditarem na melhoria de condições para os seus filhos que acolheram de bom grado aquela gente de fora e as suas máquinas que trabalhavam ao som de um potente gerador que se ouvia bem à distância. Mas, passados meses sobre a sua presença, a única coisa que viram foi a degradação ambiental e o estrangulamento do orçamento familiar com a aniquilação dos recursos com que conseguiam juntar algum dinheiro para dar de comer aos seus filhos e pô-los a estudar lá longe, em São Domingos ou Varela, para poderem sonhar com um futuro melhor.

Juntaram-se assim vontades da população para a defesa da praia de Varela, detentora de uma beleza única e que perigava à mercê da extração dos seus recursos naturais. O assunto pode não estar ainda concluído nem resolvido, mas o papel destas mulheres foi essencial para alertar consciências e suspender um processo de destruição sem retorno que estava ali a acontecer. Deram-me uma lição de vida quando me disseram que dispensavam o dinheiro, a escola ou hospital que lhes prometiam quando, em troca, viam o seu ecossistema definhar.

Porque o progresso prometido não pode surgir a qualquer preço. Principalmente quando segundo elas, o preço de ficar sem os recursos naturais da sua praia de Varela era alto de mais.

Hoje a maquinaria continua parada, o gerador deixou de fazer aquele barulho ensurdecedor que foi durante meses parte da paisagem, as bolanhas que sobreviveram à salga continuam a dar arroz e os peixes deixaram de dar à costa. Voltaram a colher frutos silvestres para fazer os sumos que lhes dão algum retorno utilizado na alimentação e educação dos filhos. Não se sabe até quando, nem se foi a cerimónia das mulheres, ao convocar os seus ancestrais que resolveu o assunto. Mas lá que acabou de feição para elas, lá isso acabou. Felizmente para todos nós.

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