terça-feira, 5 de setembro de 2017

SERVIR FILOSOFIA (A PROPÓSITO DO NOVO ANO LECTIVO)

REGINA SARDOEIRA
Juntem um professor de Filosofia com grupos mais ou menos homogéneos de jovens, entre os 15 e os 17 anos e experimentem observar o resultado, quando o tema a leccionar é a Filosofia.
Agarrem um desses manuais compactos que as escolas mandam os alunos comprar e tentem pôr-se no lugar dos seus destinatários. Recuem no tempo, se for preciso; ou, se não forem já capazes dessa viagem, observem qualquer um desses exemplares humanos em crescimento. Oiçam-nos conversar. Analisem o que – ou se – eles lêem, perguntem-lhes como ocupam os tempos livres. Ou então, o que querem da vida. Que preocupações têm; como vêem o mundo, e tudo o mais que vos ocorrer, de forma a que vos deis conta de quem são, de facto, esses jovens.
Em seguida, folheai uma vez mais o manual. Não, não vos limiteis a folhear: lêde os capítulos iniciais, passai aos intermédios, para vos deterdes nos finais.
Face a essa vossa investigação, que vos parece que acontece duas ou tres vezes por semana, durante noventa/cinquenta minutos, nessas horas em que os jovens de 15 a 17 anos têm aulas de Filosofia?
Eu já sei a resposta e, por isso, escusais de perder mais tempo em conjecturas: não acontece NADA nessas aulas de suposta Filosofia. Nem o professor comunica, nem o aluno recebe o que quer que seja, nem tão pouco lhe é permitido inventar alguma coisa.
O programa está feito, o manual também, o professor elaborou, por seu turno, uma planificação prévia que acha necessário pôr em prática e que obedece ao programa e ao manual. Daí que nada possa acontecer nessas aulas pré-fabricadas, porque não é possível escapar ao guião. E, após dois anos destes encontros, 180/150 minutos por semana, numa sala de aula, após dois anos de audição da voz, nem sempre clara, nem sempre agradável do professor de Filosofia, com testes escritos e outras provas à mistura, apanhai um desses jovens e perguntai-lhe à queima-roupa: O que é a Filosofia? Que proveito tiraste das aulas de Filosofia?
Escolhei um capítulo do manual, ao acaso, e tentai que ele vos fale do assunto em questão.
Por exemplo: qual a especificidade da Filosofia em relação a outras matérias? Como distingues o facto do valor? Ou os «actos humanos» dos «actos do homem»? Como fazes a análise fenomenológica do acto de conhecer? Que modelos de conhecimento aprendeste? Como distingues o senso-comum da ciência?
Ou então, ide mais longe e perguntai: Quando viveu Sócrates? O que fez ele de importante? E Descartes? Era francês, grego ou alemão? Terá sido Kant um filósofo? Porquê?
Se algum dos vossos inquiridos conseguir responder correctamente a uma ou duas destas questões possíveis sobre o programa de Filosofia, garanto-vos que representa uma excepção.
Portanto, para quê persistir na obrigatoriedade desta disciplina no ensino secundário se, a avaliar pelos resultados, nada fica de importante na mente dos aprendizes?
Quando, há anos, o norueguês Jostein Gaarder publicou O Mundo de Sofia eu rejubilei: ali estava um modo adequado de servir Filosofia aos adolescentes! Qualquer pessoa, a partir daquele livro, poderia percorrer com agrado os meandros do pensamento, ainda por cima guiada por uma adolescente, a Sofia que, de acordo com o significado do seu nome, anda à procura do saber…
Porém, os professores de Filosofia portugueses não entenderam o que o norueguês transmite através do seu livro. E é bem simples: os jovens precisam da Filosofia, ela não pode ser abolida dos curricula, sob pena de estarem a privá-los da única oportunidade que eles têm de exercer a autonomia do pensar.
Mas, se o corpo docente dos grupos de Filosofia continuar a seguir à letra o palavreado dos programas e dos manuais , como vai cumprir-se o objectivo único da disciplina de Filosofia no Ensino Secundário: FORMAR PARA A AUTONOMIA DO PENSAMENTO?
Poderão perguntar-me: sem programa, sem manual, sem guião como se chega a poder dar uma aula? Sem programa, sem manual, sem guião como se conseguem os objectivos pretendidos?

Posso dizer que, em Filosofia, não pode haver guião, não pode haver manual único, não pode inclusivamente haver um programa! A Filosofia, servida aos adolescentes só pode ser uma actividade, uma ocasião de encontro entre dois aprendizes: o mais velho, mais sagaz, mais treinado nas arenas do pensamento e da existência, e o mais jovem, ainda áspero e embotado, ainda preso aos dogmas e aos preconceitos, ainda estribado no senso-comum e no preconceito. Cabe ao primeiro abrir a mente do segundo, não para lhe despejar em cima novas banalidades mas, exactamente, para o levar a deconstruir tudo o que a educação lhe acrescentou, aprisionando-lhe o espírito, levá-lo ao questionamento de si para si mesmo até ao limite e depois fazê-lo perceber que há uma expansão extraordinária capaz de lhe alargar as asas num voo sem fim! Cabe ao segundo, aproveitar cada minuto dos 90/50 que cada aula dá, extrair do aprendiz mais velho tudo o que puder, pois, desse modo, estará a obrigá-lo a desconstruir eventuais certezas e mitos e, nessa perspectiva, poderá igualmente ajudá-lo a caminhar para si próprio!

E por fim, é essencial que o aprendiz mais velho, coloque à frente dos olhos do mais novo os exemplos paradigmáticos dos obreiros da filosofia já feita, quer os muito antigos, quer os que connosco vivem a contemporaneidade: excluir do programa de filosofia os seus obreiros – os filósofos! – é um crime, um lapso grosseiro e uma vergonha! Jostein Gaarder, há mais de uma década atrás, perante a emergência do desaparecimento da filosofia nas escolas secundárias noruegueses, engendrou uma Sofia adolescente, apta para o exercício do pensar, ainda que privada dessa oprtunidade, e construiu uma excelente ficção onde os filósofos se enunciam perante o seu espírito ávido e lhe fazem sentir a necessidade do exercício dinâmico do pensamento.

E então estará cumprido o programa de Filosofia, mas cumprido no fim, com um guião e um programa nascidos na cumplicidade entre os dois aprendizes, com um programa e um guião que podem, quando terminam os dois anos de experiência filosófica produzir um argumento fecundo, porque da Filosofia brotou vida e nova vida se lhe acrescentou…

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